Offshores
e subsídios para lavar carros
Precisamos
de acabar com os grandes privilégios de poucos. E precisamos de
acabar com os pequenos privilégios de muitos.
JOÃO MIGUEL TAVARES
23 de Fevereiro de
2017, 6:54
De cada vez que um
liberal se queixa do tamanho do Estado português e de certos
privilégios inaceitáveis de alguns trabalhadores do sector público,
escuta imediatamente de volta queixas sobre banqueiros, lamentos
acerca da protecção dos mais poderosos e críticas violentas aos
offshores. Sempre que tal acontece comigo (e acontece muitas vezes),
tento timidamente explicar ao meu interlocutor: “Não vale a pena
usar esses argumentos como se eu discordasse de si. Nesse aspecto,
estamos totalmente de acordo.” Onde a maior parte das pessoas vê
uma conjunção disjuntiva (ou criticas os privilégios dos
trabalhadores ou criticas os privilegiados), eu vejo uma conjunção
copulativa (criticas os privilégios dos trabalhadores e criticas os
privilegiados). Não percebo porque teremos de escolher entre uma
coisa e outra. Pegando em dois exemplos retirados do PÚBLICO de
ontem: não gosto de offshores e não gosto de subsídios para
motoristas lavarem os seus carros.
Agora peço-lhe só
para esperar um momento, caro leitor, antes de gritar aos céus:
“Como é possível que este tipo compare a gravidade de uma coisa
com a outra?” Não comparo. A gravidade é diferente. Uma vez
perguntei a um amigo que trabalha na área financeira se havia alguma
razão moralmente atendível para uma pessoa pôr dinheiro em
offshores. Ele não me conseguiu arranjar nenhuma, embora a
resistência ao esbulho fiscal por parte de governos incapazes de
controlar o seu nível de despesa possa aproximar-se disso. Contundo,
o mais grave problema não é aquilo que os defensores dos offshores
elegantemente classificam como “competividade fiscal”, até
porque haverá sempre países com diferentes taxas e impostos, mas
sim esse verdadeiro cancro que é a opacidade do último
beneficiário. É o anonimato protegido a todo o custo que faz dos
offshores, como disse um dia um ministro britânico, “locais
solares para pessoas sombrias”.
Portanto, quando se
fala em 10 mil milhões de euros de transferências para offshores
que o fisco ignorou, sem que sequer se perceba porquê, a resposta só
pode ser uma, e não é de esquerda, nem de direita: investigue-se a
fundo. E aproveitem-se todas as boas propostas que procurem
disciplinar as zonas mais selvagens do capitalismo planetário. Se o
Bloco propõe a proibição das transferências de dinheiro para
offshores não cooperantes, eu estou com o Bloco. Os offshores são
ofensivos para um liberal, porque ninguém pode verdadeiramente ser
livre em situações de profunda desigualdade – promover clubes
exclusivos onde os ricos lavam o seu dinheiro a taxas mais baixas do
que o IRS de um motorista da administração pública é uma
indiscutível imoralidade.
Isso não significa,
contudo, que enquanto existirem offshores, escândalos financeiros ou
banqueiros ladrões estejamos condenados a fechar os olhos aos
pequenos privilégios de um motorista de administração pública, se
também eles forem injustos. Um motorista do Estado que recebe 43
euros mensais para manter o seu carro limpo – quando esse é um dos
seus deveres profissionais – não é um problema de grande
dimensão. Mas quando esse suplemento é apenas um de entre os 2258
suplementos existentes na função pública (levantamento de 2015) o
caso muda de figura. Transformar Portugal num país melhor é tentar
mudar as coisas dos dois lados, ao mesmo tempo. Não temos de
escolher. Precisamos de acabar com os grandes privilégios de poucos.
E precisamos de acabar com os pequenos privilégios de muitos.
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