Domingues
pediu isenção de transparência em quatro emails, sem nunca falar
do TC
Desde
o início, que Domingues coloca em cima da mesa a questão a
transparência aplicada aos administradores, mas nunca refere as
declarações ao Tribunal Constitucional. Queria também total
autonomia na gestão do banco público.
LILIANA VALENTE,
DAVID DINIS e PEDRO FERREIRA ESTEVES 11 de Fevereiro de 2017, 7:40
Os emails enviados
por António Domingues ao Ministério das Finanças antes da sua
contratação são uma extensa lista de exigências para que
aceitasse assumir a presidência da Caixa Geral de Depósitos —
umas implícitas e outras explícitas. A leitura das 180 páginas de
documentos enviados ao Parlamento mostra que Domingues queria menos
exigências de transparência sobre os rendimentos e património dos
administradores e nenhum controlo político sobre a gestão,
equiparando totalmente o banco público ao privado. Mas apesar de
pedir (e elaborar) alterações legislativas com a intenção de os
desobrigar da entrega das declarações, nunca menciona
explicitamente a não entrega de declarações de património no
Tribunal Constitucional.
A intenção de
aliviar as regras de transparência aplicadas à CGD (enquanto
entidade e aos administradores) ficou várias vezes registada: nos
emails enviados de Domingues para Centeno, nas alterações à lei
que propôs, no preâmbulo da proposta dos advogados de Domingues e
até na única prova escrita com o crivo do Ministério das Finanças,
uma resposta do dia 25 de Outubro aos jornais, em que dizia que a
alteração legislativa “não foi um lapso”, servia mesmo para
isentar os administradores das regras de transparência.
Porém, nos
documentos que chegaram à Assembleia, só é dita explicitamente na
última carta dirigida a Centeno (de 15 de Novembro), 20 dias depois
de estourar a polémica, depois de Marcelo ter bloqueado uma saída e
de o tribunal ter notificado todos os administradores. Só aí
Domingues diz que a retirada do Estatuto do Gestor Público serviria,
entre outras coisas, para “a não submissão ao dever de entregar
ao TC a declaração de património”.
Os quatro emails
Muito antes, o
primeiro email de Domingues, datado de 14 de Abril, já resumia as
condições estabelecidas em conversas com o ministro Mário Centeno
e com o secretário de Estado Ricardo Mourinho Félix. É aí que o
futuro líder da CGD enumera várias alterações legislativas que
quer ver concretizadas sobre a própria instituição e sobre os
administradores. Na parte referente aos administradores fala em
transparência e publicidade, propondo a dispensa de obrigações —
referindo as existentes perante a Direcção-Geral de Finanças, mas
não as obrigatórias perante o TC.
Mais tarde, num
email em que concretiza a proposta de alteração à legislação,
volta a mencionar (na parte referente ao preâmbulo) dois
constrangimentos à actividade da Caixa, que se prendiam com o estar
integrada “no Sector Empresarial do Estado” e com os
constrangimentos ao gestores — pedindo para retirar os gestores da
CGD da lei do Estatuto do Gestor Público.
Nesse preâmbulo
lê-se que o regime que se aplica à CGD “impõe constrangimentos
adicionais de informação e de controlo a entidades já fortemente
reguladas e obrigadas a exigentes regras de transparência,
supervisão e controlo por entidades supervisoras nacionais e
internacionais”. E argumenta que isso não tem “benefício para o
interesse público” e não permite uma concorrência ao mesmo nível
com o privado. Um excerto que acabou por ser quase decalcado na
resposta dada pelas Finanças aos jornais em Outubro, onde referiam
que “a ideia é a CGD ser tratada como qualquer outro banco. Essa
foi a razão para que fosse retirada do Estatuto do Gestor Público.
Está sujeita a um conjunto de regras mais profundo, como estão
todos os bancos. Não faz sentido estar sujeita às duas coisas. Não
foi lapso. O escrutínio já é feito”, admitia aí o Governo.
Na parte relativa ao
constrangimentos aos administradores, o preâmbulo elaborado por
Domingues pedia as alterações à lei “sob pena de se tornar
impossível atrair para as instituições de crédito públicas
pessoas de qualificações e méritos equivalentes aos dos seus
congéneres das instituições de crédito privadas”. Mas qual o
problema que refere? “Isto é particularmente claro quanto à
matéria da remuneração dos administradores”, explica. Parte
deste preâmbulo acabou por ser retirado do decreto-lei que foi
aprovado pelo Governo, que apenas refere que não haverá “perda de
efectividade do controlo exercido sobre os respectivos
administradores”, sem referir a palavra ou as questões de
“transparência”.
Contudo, tal como o
PÚBLICO tem noticiado, a interpretação assumida quer por Domingues
quer pelo Ministério das Finanças era de que a retirada dos
administradores do Estatuto dos Gestores Públicos tinha como efeito
a não aplicação da lei de 1983, que obriga os titulares de cargos
públicos a entregarem a declaração ao TC. Acabou por não ser a
interpretação nem do Presidente da República nem do Tribunal
Constitucional. A intenção nunca é explícita nas 180 páginas de
documentação entregue ao Parlamento, consultadas pelo PÚBLICO, só
aparecendo na carta de Domingues de Novembro.
Esta pode não ser,
no entanto, toda a documentação conhecida. António Lobo Xavier,
agora vice-presidente do BPI, disse no programa Quadratura do Círculo
que há mais comunicações ainda não vindas a público, e que aí
se irá perceber que “há uma troca abundante de mensagens, de
textos, de papéis, sobre a evolução das conversas, das
negociações, do que é preciso fazer, de diligências, de como é
que se muda a lei, se será suficiente, se não será, e o Tribunal
Constitucional e o primeiro-ministro, etc.”. Foi na sequência
desta revelação que o CDS entregou um requerimento na comissão
parlamentar de inquérito à gestão da CGD para conhecer as
mensagens de telemóvel trocadas entre o ministro e António
Domingues.
Autonomia total de
gestão
António Domingues
entendia que para gerir a Caixa em condições iguais às de um banco
privado necessitava de total autonomia em relação ao accionista
público. Para tal, exigiu um conjunto de excepções aos regimes
aplicáveis às empresas públicas. Nomeadamente que não fosse
exigido um contrato de gestão entre os administradores e o Estado,
tal como está previsto no regime que enquadra o gestor público (e
que prevê que esse contrato seja assinado três meses depois da
entrada em funções da gestão). Domingues também exigiu estar à
margem das orientações do Governo enquanto órgão político,
legislativo ou administrativo, e ter autonomia de gestão em relação
a objectivos da tutela, em relação à obtenção de resultados ou
em caso de avaliação negativa.
Por outro lado, o
presidente com o mandato mais curto da história da CGD quis também
garantir que o Governo não poderia demitir a sua equipa salvo em
circunstâncias previstas na lei comercial, deixando de fora das
causas de cessação de funções pelo Estado o que respeitasse a
violações dos estatutos do banco, incumprimentos dos objectivos,
desvios orçamentais, resultados negativos ou deterioração do
património.
CGD:
uma comédia de enganos em cinco actos
Não
há forma de Centeno sair bem disto – é evidente que ele mentiu. É
evidente que ele tinha consciência das condições impostas por
Domingues
João Miguel Tavares
11 de Fevereiro de
2017, 7:59
https://www.publico.pt/2017/02/11/economia/noticia/cgd-uma-comedia-de-enganos-em-cinco-actos-1761648
Acto 1 – O convite
a Domingues e as suas condições. No início, as intenções de
todos eram as melhores. O governo apostou num banqueiro competente e
independente para salvar a Caixa, dando-lhe carta branca para
construir uma equipa sem amiguismos nem relações políticas.
António Domingues aceitou o convite impondo duas condições:
salários da administração em linha com o mercado e a dispensa de
apresentar declarações de património. A razão era simples, embora
discutível: Domingues entendeu que não conseguiria convencer os
melhores a trabalharem com ele se as suas herdades, os seus carros ou
os seus barcos acabassem expostos na praça pública. O governo
aceitou essas condições.
Acto 2 – O
descontentamento de Marcelo e a revelação de Marques Mendes.
Marcelo, que engoliu a custo os salários da administração da Caixa
(recorde-se que desde a campanha eleitoral o dinheiro é para si uma
obsessão, dedicando-se a recorrentes demonstrações de poupança e
frugalidade), a certa altura achou que não deveria ainda engolir (e
o Tribunal Constitucional entretanto concordou com ele) a dispensa
das declarações de património. Vai daí, Marques Mendes, que tem
vindo a desempenhar o seu papel de porta-voz oficioso, largou a bomba
a 23 de Outubro na SIC, denunciando a alteração da lei sobre
gestores da CGD.
Acto 3 – A nova
narrativa de António Costa. Dois dias depois, o ministério das
Finanças confirmou que a mudança desobrigava a administração da
Caixa de apresentar as declarações de património. Fê-lo tanto
pela voz de Mário Centeno como num comunicado oficial enviado às
redacções. Só que aos poucos, por pressão de Costa, a narrativa
foi mudando, e Centeno foi-se enredando em não-ditos e explicações
dúbias. O desejo de transformar Domingues no mau da fita, com o
auxílio inestimável do Presidente da República, teve como efeito
indirecto enredar Centeno numa trama de justificações manhosas e
impossíveis de sustentar. O objectivo era claro: obrigar Domingues a
ceder numa matéria de transparência muito sensível para a opinião
pública. Só que Domingues não cedeu.
Acto 4 – A queda
de António Domingues. De repente, toda a gente queria morder no seu
pescoço: o PS deixava-o cair, PCP e Bloco nunca o apreciaram, Passos
Coelho entrou em conflito com ele acerca do tema da informação
privilegiada, e o próprio Marcelo – que ninguém me tira da cabeça
que foi o primeiro responsável por tudo isto – acabou por sair de
mansinho. Junte-se a pressão das empresas semi-falidas cujas
imparidades Domingues fez questão de registar. Isolado e
impossibilitado de cumprir aquilo a que se comprometera com os
administradores da Caixa, António Domingues bateu com a porta. Só
que estando uma comissão de inquérito a decorrer, instado a
apresentar a troca de correspondência com o governo, mostrou o que
tinha – e a narrativa construída por António Costa, que Centeno
foi obrigado a seguir por arrasto, desabou como um castelo de cartas.
Acto 5 – A
descredibilização de Mário Centeno. Não há forma de Centeno sair
bem disto – é evidente que ele mentiu. É evidente que ele tinha
consciência das condições impostas por Domingues. E tudo isto é
evidente ainda antes de chegarem os mails e os SMS – no início do
processo, foi o próprio ministro das Finanças que o admitiu. Dá-se
então este extraordinário facto: um caso em que todos começaram
com a melhor das intenções terminou no mais absoluto desastre. Na
política como na vida, de boas intenções está o inferno cheio.
Sem comentários:
Enviar um comentário