sábado, 11 de fevereiro de 2017

Domingues pediu isenção de transparência em quatro emails, sem nunca falar do TC / CGD: uma comédia de enganos em cinco actos


Domingues pediu isenção de transparência em quatro emails, sem nunca falar do TC

Desde o início, que Domingues coloca em cima da mesa a questão a transparência aplicada aos administradores, mas nunca refere as declarações ao Tribunal Constitucional. Queria também total autonomia na gestão do banco público.

LILIANA VALENTE, DAVID DINIS e PEDRO FERREIRA ESTEVES 11 de Fevereiro de 2017, 7:40

Os emails enviados por António Domingues ao Ministério das Finanças antes da sua contratação são uma extensa lista de exigências para que aceitasse assumir a presidência da Caixa Geral de Depósitos — umas implícitas e outras explícitas. A leitura das 180 páginas de documentos enviados ao Parlamento mostra que Domingues queria menos exigências de transparência sobre os rendimentos e património dos administradores e nenhum controlo político sobre a gestão, equiparando totalmente o banco público ao privado. Mas apesar de pedir (e elaborar) alterações legislativas com a intenção de os desobrigar da entrega das declarações, nunca menciona explicitamente a não entrega de declarações de património no Tribunal Constitucional.

A intenção de aliviar as regras de transparência aplicadas à CGD (enquanto entidade e aos administradores) ficou várias vezes registada: nos emails enviados de Domingues para Centeno, nas alterações à lei que propôs, no preâmbulo da proposta dos advogados de Domingues e até na única prova escrita com o crivo do Ministério das Finanças, uma resposta do dia 25 de Outubro aos jornais, em que dizia que a alteração legislativa “não foi um lapso”, servia mesmo para isentar os administradores das regras de transparência.

Porém, nos documentos que chegaram à Assembleia, só é dita explicitamente na última carta dirigida a Centeno (de 15 de Novembro), 20 dias depois de estourar a polémica, depois de Marcelo ter bloqueado uma saída e de o tribunal ter notificado todos os administradores. Só aí Domingues diz que a retirada do Estatuto do Gestor Público serviria, entre outras coisas, para “a não submissão ao dever de entregar ao TC a declaração de património”.

Os quatro emails
Muito antes, o primeiro email de Domingues, datado de 14 de Abril, já resumia as condições estabelecidas em conversas com o ministro Mário Centeno e com o secretário de Estado Ricardo Mourinho Félix. É aí que o futuro líder da CGD enumera várias alterações legislativas que quer ver concretizadas sobre a própria instituição e sobre os administradores. Na parte referente aos administradores fala em transparência e publicidade, propondo a dispensa de obrigações — referindo as existentes perante a Direcção-Geral de Finanças, mas não as obrigatórias perante o TC.

Mais tarde, num email em que concretiza a proposta de alteração à legislação, volta a mencionar (na parte referente ao preâmbulo) dois constrangimentos à actividade da Caixa, que se prendiam com o estar integrada “no Sector Empresarial do Estado” e com os constrangimentos ao gestores — pedindo para retirar os gestores da CGD da lei do Estatuto do Gestor Público.

Nesse preâmbulo lê-se que o regime que se aplica à CGD “impõe constrangimentos adicionais de informação e de controlo a entidades já fortemente reguladas e obrigadas a exigentes regras de transparência, supervisão e controlo por entidades supervisoras nacionais e internacionais”. E argumenta que isso não tem “benefício para o interesse público” e não permite uma concorrência ao mesmo nível com o privado. Um excerto que acabou por ser quase decalcado na resposta dada pelas Finanças aos jornais em Outubro, onde referiam que “a ideia é a CGD ser tratada como qualquer outro banco. Essa foi a razão para que fosse retirada do Estatuto do Gestor Público. Está sujeita a um conjunto de regras mais profundo, como estão todos os bancos. Não faz sentido estar sujeita às duas coisas. Não foi lapso. O escrutínio já é feito”, admitia aí o Governo.

Na parte relativa ao constrangimentos aos administradores, o preâmbulo elaborado por Domingues pedia as alterações à lei “sob pena de se tornar impossível atrair para as instituições de crédito públicas pessoas de qualificações e méritos equivalentes aos dos seus congéneres das instituições de crédito privadas”. Mas qual o problema que refere? “Isto é particularmente claro quanto à matéria da remuneração dos administradores”, explica. Parte deste preâmbulo acabou por ser retirado do decreto-lei que foi aprovado pelo Governo, que apenas refere que não haverá “perda de efectividade do controlo exercido sobre os respectivos administradores”, sem referir a palavra ou as questões de “transparência”.

Contudo, tal como o PÚBLICO tem noticiado, a interpretação assumida quer por Domingues quer pelo Ministério das Finanças era de que a retirada dos administradores do Estatuto dos Gestores Públicos tinha como efeito a não aplicação da lei de 1983, que obriga os titulares de cargos públicos a entregarem a declaração ao TC. Acabou por não ser a interpretação nem do Presidente da República nem do Tribunal Constitucional. A intenção nunca é explícita nas 180 páginas de documentação entregue ao Parlamento, consultadas pelo PÚBLICO, só aparecendo na carta de Domingues de Novembro.

Esta pode não ser, no entanto, toda a documentação conhecida. António Lobo Xavier, agora vice-presidente do BPI, disse no programa Quadratura do Círculo que há mais comunicações ainda não vindas a público, e que aí se irá perceber que “há uma troca abundante de mensagens, de textos, de papéis, sobre a evolução das conversas, das negociações, do que é preciso fazer, de diligências, de como é que se muda a lei, se será suficiente, se não será, e o Tribunal Constitucional e o primeiro-ministro, etc.”. Foi na sequência desta revelação que o CDS entregou um requerimento na comissão parlamentar de inquérito à gestão da CGD para conhecer as mensagens de telemóvel trocadas entre o ministro e António Domingues.

Autonomia total de gestão
António Domingues entendia que para gerir a Caixa em condições iguais às de um banco privado necessitava de total autonomia em relação ao accionista público. Para tal, exigiu um conjunto de excepções aos regimes aplicáveis às empresas públicas. Nomeadamente que não fosse exigido um contrato de gestão entre os administradores e o Estado, tal como está previsto no regime que enquadra o gestor público (e que prevê que esse contrato seja assinado três meses depois da entrada em funções da gestão). Domingues também exigiu estar à margem das orientações do Governo enquanto órgão político, legislativo ou administrativo, e ter autonomia de gestão em relação a objectivos da tutela, em relação à obtenção de resultados ou em caso de avaliação negativa.

Por outro lado, o presidente com o mandato mais curto da história da CGD quis também garantir que o Governo não poderia demitir a sua equipa salvo em circunstâncias previstas na lei comercial, deixando de fora das causas de cessação de funções pelo Estado o que respeitasse a violações dos estatutos do banco, incumprimentos dos objectivos, desvios orçamentais, resultados negativos ou deterioração do património.

CGD: uma comédia de enganos em cinco actos
Não há forma de Centeno sair bem disto – é evidente que ele mentiu. É evidente que ele tinha consciência das condições impostas por Domingues

João Miguel Tavares
11 de Fevereiro de 2017, 7:59

Acto 1 – O convite a Domingues e as suas condições. No início, as intenções de todos eram as melhores. O governo apostou num banqueiro competente e independente para salvar a Caixa, dando-lhe carta branca para construir uma equipa sem amiguismos nem relações políticas. António Domingues aceitou o convite impondo duas condições: salários da administração em linha com o mercado e a dispensa de apresentar declarações de património. A razão era simples, embora discutível: Domingues entendeu que não conseguiria convencer os melhores a trabalharem com ele se as suas herdades, os seus carros ou os seus barcos acabassem expostos na praça pública. O governo aceitou essas condições.

Acto 2 – O descontentamento de Marcelo e a revelação de Marques Mendes. Marcelo, que engoliu a custo os salários da administração da Caixa (recorde-se que desde a campanha eleitoral o dinheiro é para si uma obsessão, dedicando-se a recorrentes demonstrações de poupança e frugalidade), a certa altura achou que não deveria ainda engolir (e o Tribunal Constitucional entretanto concordou com ele) a dispensa das declarações de património. Vai daí, Marques Mendes, que tem vindo a desempenhar o seu papel de porta-voz oficioso, largou a bomba a 23 de Outubro na SIC, denunciando a alteração da lei sobre gestores da CGD.

Acto 3 – A nova narrativa de António Costa. Dois dias depois, o ministério das Finanças confirmou que a mudança desobrigava a administração da Caixa de apresentar as declarações de património. Fê-lo tanto pela voz de Mário Centeno como num comunicado oficial enviado às redacções. Só que aos poucos, por pressão de Costa, a narrativa foi mudando, e Centeno foi-se enredando em não-ditos e explicações dúbias. O desejo de transformar Domingues no mau da fita, com o auxílio inestimável do Presidente da República, teve como efeito indirecto enredar Centeno numa trama de justificações manhosas e impossíveis de sustentar. O objectivo era claro: obrigar Domingues a ceder numa matéria de transparência muito sensível para a opinião pública. Só que Domingues não cedeu.

Acto 4 – A queda de António Domingues. De repente, toda a gente queria morder no seu pescoço: o PS deixava-o cair, PCP e Bloco nunca o apreciaram, Passos Coelho entrou em conflito com ele acerca do tema da informação privilegiada, e o próprio Marcelo – que ninguém me tira da cabeça que foi o primeiro responsável por tudo isto – acabou por sair de mansinho. Junte-se a pressão das empresas semi-falidas cujas imparidades Domingues fez questão de registar. Isolado e impossibilitado de cumprir aquilo a que se comprometera com os administradores da Caixa, António Domingues bateu com a porta. Só que estando uma comissão de inquérito a decorrer, instado a apresentar a troca de correspondência com o governo, mostrou o que tinha – e a narrativa construída por António Costa, que Centeno foi obrigado a seguir por arrasto, desabou como um castelo de cartas.


Acto 5 – A descredibilização de Mário Centeno. Não há forma de Centeno sair bem disto – é evidente que ele mentiu. É evidente que ele tinha consciência das condições impostas por Domingues. E tudo isto é evidente ainda antes de chegarem os mails e os SMS – no início do processo, foi o próprio ministro das Finanças que o admitiu. Dá-se então este extraordinário facto: um caso em que todos começaram com a melhor das intenções terminou no mais absoluto desastre. Na política como na vida, de boas intenções está o inferno cheio.

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