A
ditadura do burburinho (ensaio de Daniel Oliveira)
11.02.2017
às 10h00
O
confronto não pode ser entre a América “sofisticada” e a
América “tacanha”. E não se pode centrar no burburinho que
Trump vai criando. Ele alimenta-se do ressentimento dos desprezados e
da espuma dos dias. Muitas coisas que chocam em Trump só são
relevantes para os que o recusam, que continuam a falar para si
mesmos, cavando um pouco mais o fosso que serve o Presidente. É na
frustração da América abandonada, que ele prometeu ajudar e que
obviamente trairá, que está a resposta a Trump. Daniel Oliveira
assina o quarto dos cinco ensaios que estamos a publicar esta semana
sobre o Presidente dos Estados Unidos. O último será assinado por
Clara Ferreira Alves
Para justificar a
ordem executiva de Donald Trump, Kellyanne Conway, a conselheira que
apadrinhou a mentira como “factos alternativos”, responsabilizou
dois iraquianos pelo massacre de Bowling Green. Nunca ouviram falar
do massacre de Bowling Green? A senhora diz que não foi noticiado
pela comunicação social. Ficou por explicar a poderosa razão para
a ausência de cobertura mediática: o massacre nunca aconteceu.
Houve, de facto, dois iraquianos presos na cidade do Kentucky, onde
viviam, por terem usado explosivos improvisados para matar soldados
americanos no Iraque e terem tentado enviar armas e dinheiro para a
Al-Qaeda. Mas não houve nem massacre nem qualquer suspeita de
estarem a planear um.
A mentira em nome da
propaganda e para criar ruído não tem nada de novo. Nem sequer no
descaramento e na dimensão. Já Barry Levinson tinha caricaturado
estas manobras de diversão, através da fabricação de factos, em
“Wag the Dog” (“Manobras na Casa Branca”, em português). O
título fica explicado na abertura do filme: “Porque é que o cão
abana a cauda? Porque é mais esperto do que a cauda. Se a causa
fosse mais esperta do que ele, era ela que abanaria o cão.” A arte
de Trump é fazer abanar os media e a opinião pública ao ritmo dos
acontecimentos que ele próprio vai criando. Se um filme de 1997
baseado num livro de 1993 já nos falava disto, contando a história
de um presidente que inventou uma guerra inexistente para distrair as
pessoas de um escândalo sexual em tempo de campanha, não terá sido
Trump a estrear esta forma de fazer política – ainda nos lembramos
das armas de destruição em massa no Iraque?
A diferença é que
Trump o faz através das redes sociais, sem precisar de manipular
nenhum jornalista. A recriação da realidade e da história é tão
antiga como a história. A diferença, a grande diferença, é que a
novilíngua de “1984” tinha a sua origem num Estado centralizador
enquanto os “factos alternativos” de 2017 nascem da ausência de
centro, do fim de fontes tidas por credíveis. Em vez do excesso de
autoridade e da ausência de contraditório, a mentira como discurso
legítimo do poder resulta da igualização de todos os discursos (um
tweet não vale menos do que uma notícia, uma opinião absurda é
igual a um facto científico) e da polarização da sociedade.
PROMETE A ORDEM E
ALIMENTA-SE DO CAOS
O início do século
XXI é marcado pela crise de todos os mediadores: a crise do Estado,
a crise da democracia representativa, a crise de todas as formas de
representação corporativa, a crise do sindicalismo, a crise da
imprensa e do jornalismo. Esta última, deu lugar às redes sociais,
assim como nascem projetos políticos que apostam na mesma lógica
horizontal e onde todos os demagogos singrarão com facilidade.
Muitos imaginariam que esta forma de organização e comunicação
seria mais democrática. Só que a democracia exige regras e
responsabilização.
O burburinho
inorgânico é incompatível com a organização democrática. E é
neste burburinho que se torna impossível distinguir uma notícia de
um boato, informação de propaganda, verdade de mentira. O fim dos
intermediários, que conquistavam credibilidade junto dos leitores
com base profissionalismo e regras deontológicas, torna tudo igual e
indistinto. E é movendo-se neste mundo que Trump triunfa.
Não é por acaso
que Trump comunica através do Twitter e nele usa a sua conta não
institucional. Desinstitucionalizar a comunicação é o instrumento
fundamental para quem queira desinstitucionalizar o seu cargo,
transformando o poder delegado num poder pessoal. A crise dos
intermediários é a crise das instituições e a crise das
instituições é o passo fundamental para a destruição da
democracia. Se um presidente fala como nós, desabafa como nós, é
como nós, não está mais limitado do que nós, não tem mais
deveres do que nós.
Esta banalização
do poder tem vantagens extraordinárias para Trump. Permite que tudo
seja tratado com informalidade, o que garante a ausência de regras e
de limites. Quando um juiz o trava é um “suposto juiz”. Quando
um chefe de Estado de outra nação discorda dele desmarca-se a
visita de Estado ou faz-se saber que se teve um telefonema terrível,
como se fosse um desentendimento entre vizinhos. Quando uma cadeia de
lojas deixa de vender a marca de roupas da filha faz-se um tweet e as
suas ações vêm por aí abaixo.
Em vez de separação
de poderes, relações diplomáticas e a neutralidade económica,
tudo é o “reality show” em que hoje se banha a cultura de
massas. Tudo é uma questão de temperamento, de caráter. Nada é
uma questão política ou de Estado. Os episódios sucedem-se, com
momentos de suspense e situações rocambolescas, prendendo o público
ao que na política não é político e garantindo que os media
tradicionais e as redes sociais se entretêm com a aparência das
coisas. Até a política se resumir a Donald Trump e aos seus
conflitos. Enquanto o “estúpido” e “ignorante” Donald Trump
tem uma política “errática” e todos falam do “muslim ban”
ninguém perde tempo a discutir o fim do Obamacare e a revogação
das medidas de regulação financeira tomadas pela administração
anterior. Está ou não está a correr bem?
TRUMP NÃO É A
AMÉRICA DO PASSADO
Vivemos em tempos de
ansiedade que testam os limites das sociedades. E essa ansiedade
dirige-se para quem se dirigiu sempre: para os que vêm de fora. E
abraça quem prometa segurança. Quem prometa uma ordem qualquer, com
princípio, meio e fim. Apesar de viver do burburinho e de se
alimentar do enfraquecimento das instituições e das entidades
intermediárias, apesar de representar todos os interesses que hoje
dominam sociedades cada vez mais desiguais, Trump prometeu dar ordem
à vida das pessoas. Uma ordem com inimigos claros, soluções
rápidas e um futuro brilhante.
Como Marine Le Pen,
que diz que vai colocar a França na ordem. No meio do caos de que se
alimenta, no meio do burburinho que cria e de que vive, Trump promete
o que cada vez mais gente deseja: ordem. Não é a ordem do Estado e
das instituições fortes, de que democracias e ditaduras dependem. É
a ordem de Trump. Não é a ordem do general, é a ordem do CEO. Não
é o fascismo do Estado, é o fascismo do dinheiro.
É claro que o mundo
antigo ainda existe. Até lhe chamam, por engano, “sistema”. É o
que sobra das instituições democráticas, dos partidos políticos
(que não se souberam defender da possibilidade de um milionário que
os despreza os usar para chegar ao poder), dos tribunais, dos media
tradicionais. Mesmo Trump e a direita que lhe deu guarida e hoje lhe
dá apoio não dispensam a comunicação social. Precisam da Fox News
para ampliar e fazer a síntese da mensagem dispersa. New York Times,
CNN, MSNBC e todos os "media liberais", como lhes chama a
direita para desacreditar tudo o que se assemelhe a jornalismo,
continuam a ter grande impacto. Apenas não chegam aos eleitores de
Trump. E quando chegam eles não acreditam.
O processo de
crescimento e radicalização da direita americana fez-se através de
uma polarização política em que a sua base social de apoio não
acredita em nada que venha do “inimigo”. Quando Trump diz que
houve muitos atentados terroristas que os media não relataram,
deixando a lista para mais tarde, aposta em desacreditar, junto dos
seus, qualquer informação que venha dali, permitindo que uma
realidade alternativa seja criada por ele. Assim se constroem duas
Américas que não se tocam.
Mesmo as redes
sociais favorecem a construção destas duas realidades. Ao contrário
do que imaginávamos, a Internet afastou-nos da diferença. Ficando
mais próximos dos que estão fisicamente distantes, seguimos e somos
seguidos pelos que pensam da mesma forma que nós. Até o famoso
algoritmo usado em redes sociais como o Facebook dá destaque ao que
já sabemos, ao que já pensamos, ao que queremos continuar a saber e
a pensar. Não há bolha mais enganadora do que o Facebook e o
Twitter. No dia das eleições, ouviam-se entrevistas de rua e
parecia que nenhum eleitor de Trump conhecia algum eleitor de
Hillary. E vice-versa.
Esta
incomunicabilidade política não começou agora. Começou com o
crescimento de uma franja radical, ultraliberal na economia e
ultraconservadora nos costumes, com raízes fortes numa América que
não se vê em Nova Iorque ou em São Francisco. Uma extrema-direita
que quebrou todos os tabus e teve a sua grande vitória quando
obrigou McCain a engolir Sara Palin como sua vice. Na realidade,
começou muito antes.
Começou com Barry
Goldwater, em 1964. Continuou com Ronald Reagan, que fazia Goldwater
parecer um príncipe. Foi mais longe com George W. Bush, que fazia
Reagan parecer um intelectual. E rematou com o Tea Party, que fazia
todo o velho Partido Republicano parecer uma força marxista. Donald
Trump (um Pat Buchanan com melhor “timing”, como lhe chamou o
“Politico”) é o que aconteceu depois de toda a civilidade ter
sido escorraçada da direita norte-americana. E com esta direita, em
confronto com uma esquerda que desistiu das questões
económico-sociais e se acantonou nas questões identitárias e
pós-materiais, a polarização é facílima. Ainda mais fácil
quando os confrontos políticos são transformados em guerras
culturais: os cosmopolitas contra os provincianos, os urbanos contra
os rurais.
A velha e boa luta
de classes, que até os EUA abalaram nos anos 30, foi soterrada em
camadas de antagonismos que por vezes são pouco mais do que
estéticos. E quando a informação se transformou em espetáculo,
quanto mais estéril e histriónico for o confronto maiores serão as
audiências. Até ninguém prestar atenção. Até aparecer algo
realmente grotesco. Uma coisa em forma de Trump.
Podem ter enterrado
a luta de classes mas ainda é a economia e as condições de vida
das pessoas que determinam grande parte dos seus comportamentos
políticos. Não há espaço para uma polarização insanável em
comunidades coesas e unidas por laços de solidariedade coletiva. Há
desentendimentos e confrontos, desavenças e divergências. Mas nunca
se chega a este ponto de absoluta polarização política. Sem a
crescente desigualdade social e económica nos EUA e um exército de
excluídos dos benefícios da globalização (dos operários aos
agricultores, das antigas cidades industriais deprimidas ao mundo
rural), a vitória de Donald Trump continuará a ser inexplicável.
Quem queira resumir
Trump (e Le Pen ou o Brexit) ao confronto entre os que estão
disponíveis para abraçar a globalização e os que a recusam está
a inverter o problema. Quando muito será um confronto entre os que
ganharam ou sentem que podem ganhar com a globalização e os que
dela sabem estar excluídos à partida. E se a maioria se sente
excluída do futuro, é não só natural como recomendável que o
recuse.
Os que, concentrando
todo o debate em torno do suposto protecionismo de Trump, exibem o
presidente como um digno representante do velho mundo atávico e
medroso não podiam estar mais enganados. Trump move-se sem falhas na
modernidade que sobrou para a maioria: sem acesso a empregos nas
empresas tecnológicas ou à cultura cosmopolita, resta-lhes o
burburinho das redes sociais, os “reality shows”, empregos mal
pagos e precários, vidas a crédito e nenhuma esperança num futuro
mais animador do que o presente.
FALAR PARA QUEM
ELEGEU TRUMP
Qualquer reação a
Donald Trump parece ter o problema de o alimentar. Ele vive da
polarização sem remédio, que desfaz qualquer sentido de comunidade
e enfraquece as instituições. Ele precisa do escândalo permanente,
da ira dos seus opositores. Isto não quer dizer que a melhor reação
a Trump seja a apatia ou a sua normalização. As manifestações de
rua, os voluntários nos aeroportos, os funcionários de organismos
públicos que criam contas de Twitter paralelas, tudo isso é
indispensável quando a democracia fica em perigo. Mas o combate
político só pode ser feito junto dos que, sentindo-se abandonados,
votaram em Trump. Só se vence Trump quebrando a polarização que
criou “as duas Américas” e alimentando combates relevantes para
a maioria dos americanos. E nunca permitindo que seja Trump a ditar a
narrativa do confronto. Nunca deixar que seja a cauda a mandar no
cão.
O confronto não
pode ser entre uma América “sofisticada”, “culta” e “aberta
para o mundo” e uma América “tacanha”, “ignorante” e
“medrosa”. E não se pode centrar em cada pequeno episódio –
aquela mentira, a outra gafe, a frase inaceitável, o momento
icónico. É destas duas coisas que Trump se alimenta: do
ressentimento dos que se sentem desprezados e da espuma dos dias.
Mesmo quando, do ponto de vista simbólico, cada coisa é relevante,
ela é relevante para os que odeiam Trump, que continuam a falar para
si mesmos, cavando um pouco mais o fosso que serve o presidente. É
nas promessas falhadas de Trump, é na frustração da América
abandonada, que ele prometeu ajudar e que obviamente trairá, que
está a resposta a Trump.
Dados recentes
desmentem uma ideia em que eu próprio fui levado a acreditar: que a
maioria dos americanos apoia a política de imigração de Trump. O
erro nasceu de uma sondagem que dava um apoio de 57% à proibição
de entrada de imigrantes e refugiados de sete países. Mas ela foi
feita antes de se conhecerem os termos da ordem executiva, com uma
formulação pouco rigorosa e realizada por um instituto muito
próximo dos conservadores, como denunciou o “Le Monde”.
A sondagem da CNN,
feita com base em todos os factos agora conhecidos e com perguntas
bastante rigorosas, diz-nos que 53% se opõem a esta decisão, que há
mais americanos a achar que ela coloca o país mais inseguro perante
o terrorismo do que o oposto, que há mais gente que considera que
ela fere os valores americanos do que as que pensam que os defende, e
que 55% assume que foi uma forma de impedir a entrada de muçulmanos
nos EUA.
Mas há, nas
sondagens recentes da CNN, coisas mais interessantes sobre o que os
americanos acham da administração Trump. A maioria opõe-se à sua
política de imigração (42% aprovam, 56% desaprovam), à sua
política externa (40% aprovam, 55% desaprovam) e à sua estratégia
contra o terrorismo (44% aprovam, 53% desaprovam). A sua política de
segurança interna tem reações moderadas (49% aprovam e 46%
desaprovam) e são as suas políticas económicas que merecem maior
apoio popular: 49% a favor e 43% contra. A sua política para a saúde
(o fim do Obamacare) também é reprovada pela maioria (50% contra e
42% a favor). Ou seja, nada impede que democratas e progressistas
roubem a Donald Trump o apoio que conquistou. Basta falarem dos
problemas que realmente preocupam as pessoas. Não foi a imigração
que deu a vitória a Trump, foi a ausência de futuro e a ansiedade
com o presente. É quase sempre.
Os 472 counties que
votaram maioritariamente em Hillary representam 64% do PIB dos EUA,
os 2584 que votaram Trump representam os restantes 36%. É a América
que ficou para trás. Os counties onde o sindicalismo operário é
tradicionalmente mais forte, que se bateram pelo New Deal e que desde
então votam democrata quase sem exceção (e fortemente em Obama, em
2008), foram aqueles onde os “Trump Democrats” mais se fizeram
sentir. Isto quando os indicadores económicos até foram bons e o
desemprego diminuiu. Só que Clinton nada tinha para lhes prometer
para além de uma desindustrialização suave e apoiada. Ao contrário
de Trump.
Mais uma vez, Bernie
Sanders parece ser o mais lúcido dos opositores. Desde que Trump
chegou à Casa Branca, Sanders tem-se concentrado nas promessas do
demagogo em moralizar de Wall Street, não cortar na segurança
social e na saúde e devolver emprego aos norte-americanos. É na
economia e nos direitos sociais, e não nas questões de identidade
ou na defesa das instituições democráticas, que a base de apoio de
Trump pode tremer. Por mais importantes que os outros assuntos sejam.
Mas é provável que não se sinta tanta mobilização da elite
(incluindo a elite mediática) contra a agenda social e fiscal de
Trump.
Enquanto o mundo se
entretém a discutir frases vazias em defesa de um protecionismo que
nunca deixou de existir, em maior ou menor grau, nos EUA, vem aí o
festim fiscal e a desregulação económica e financeira. Só os mais
distraídos se espantaram com o facto do CEO da Uber ter aceite estar
próximo do presidente, pelo menos até isso ser mau para a sua
imagem. Ou dos mercados não parecerem especialmente preocupados com
o seu mandato. Ou de tantos milionários terem aceite participar no
governo de um homem que era apresentado como um louco solitário. Dos
empresários que querem acabar com salário mínimo aos opositores da
Escola Pública, passando por negacionistas do aquecimento global e
CEO da indústria petrolífera, não há representante da cobiça
económica que não tenha lugar na sua administração. Isto, com
senadores cujas campanhas foram financiadas por grandes doadores numa
dimensão nunca antes vista. O sector público estará, nos próximos
anos, a saque.
Não vale a pena
dizer às pessoas para se mobilizarem para salvar a democracia se
lhes dissermos que não têm lugar no novo mundo que se lhes oferece.
Quando os cidadãos perdem qualquer perspetiva de futuro estão-se
nas tintas para a democracia. A ausência de alternativas à
degradação da vida das pessoas levará, sem qualquer possibilidade
de fuga, a uma revolta. E é por isso que a derrota de Trump (e de Le
Pen) depende de um outro combate prévio entre liberais (no sentido
europeu do termo) e progressistas. Se os primeiros liderarem este
confronto, ficarão a falar para as elites e para alguns
beneficiários da atual globalização e a extrema-direita tem o
caminho livre com um crescente apoio popular. Se forem os segundos,
talvez haja alguma esperança para a democracia. É o que deveríamos
ter aprendido com as eleições americanas e a escolha de Clinton, em
vez de Sanders, para defrontar Trump. Querem defender a democracia?
Tratem de combater a desigualdade e exclusão. Foi sempre assim que
ela foi salva. Nos EUA, nos anos 30, e na Europa, nos anos 50.
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