domingo, 26 de fevereiro de 2017

As lágrimas furtivas de Fernandes / E porque não se calam com isso dos “precários”?

As lágrimas furtivas de Fernandes
JOSÉ SOEIRO
24.02.2017 às 21h00

José Manuel Fernandes, que se celebrizou nos tempos em que, enquanto diretor do Público, fez dos editoriais do jornal uma apologia da ocupação e da guerra de Bush Jr. (quem não se lembra da revelação sobre “a lágrima furtiva” de comoção que lhe rolou pelo rosto quando a invasão se consumou?), vive agora numa irritação permanente, de que nos vai dando conta a partir do cantinho do Observador onde se refugiou.

O pobre cronista sente-se perseguido por tudo. São os cartazes do Bloco contra a precariedade que é obrigado a ver de cada vez que entra em Lisboa. É Catarina Martins que lhe entra pela casa adentro a falar do tema “todos os dias”, quando não mesmo “todas as horas”. É o PS que, depois da auspiciosa Terceira Via na Europa, estaria agora “colonizado pelas ideias radicais” dos bloquistas. E é até a Direita, que teria deixado de ser uma reserva de bom senso: apesar de votar contra as medidas de combate à precariedade, o que esta aponta ao Governo é o defeito de este não ter ainda diminuído a precariedade tanto quanto apregoou. “Porque não se calam com isso dos precários?”, pergunta Fernandes em tom de desespero. O Universo está de pernas para o ar e o cronista sente-se abandonado por toda a gente, não há sequer PSD e CDS que lhe valham. O vírus do esquerdismo invadiu todos os cérebros e o mundo conspira contra ele: “a linguagem que utilizamos todos os dias está corrompida, foi contaminada pela ideologia de bloquistas e comunistas e nem demos por isso”.

O tom é apocalíptico, mas tem o mérito de denunciar como o campo político a que Fernandes pertence se sente derrotado. Durante anos, apresentaram a precarização como uma fatalidade que liberta e como um imperativo para combater a “segmentação do mercado de trabalho”. A solução da Direita era arrasar com os direitos laborais de todos e promover uma harmonização no retrocesso: “o nosso problema não é acabar com o trabalho precário – é tornar menos definitivos todos os restantes contratos de trabalho. O problema está a ser colocado de pernas para o ar”, explica o cronista, desconsolado. Só que essa ideia, que a Direita política e académica tentou vulgarizar, foi derrotada na sociedade portuguesa. Ninguém a deseja. Surpresa das surpresas, as pessoas compreenderam que era uma trapaça que só tinha um efeito: comprimir salários, instalar a insegurança no quotidiano, promover uma competição que mais não era que uma domesticação pelo medo, tornar a vida uma aflição permanente. E, facto incontestável, a precarização só produziu desemprego: mais de 60% dos pedidos de subsídio de desemprego resultaram da cessação de um contrato a prazo. A realidade não para de fazer desfeitas aos nossos liberais.

Com uma maioria negociada à esquerda e uma Direita em retirada, Fernandes agarra-se à única tábua de salvação que parece ter encontrado no caminho: a OCDE e os seus relatórios.

É certo que a OCDE continua a combinar uma recolha interessante de dados com o seu pressuposto de sempre, que é a ideologia da flexibilização laboral como solução para o mundo do trabalho. Sugere aliás o que a Direita portuguesa não tem coragem de verbalizar: acabar com os limites ao despedimento que estão na própria Constituição e demolir a contratação coletiva. Só que até a OCDE reconhece que a precarização real foi tão longe em Portugal, nomeadamente por via da transgressão à lei, que no meio do relatório lá vai dizendo que a fiscalização do trabalho devia ser reforçada. Correndo o risco de agravar o estado de exasperação de Fernandes, não resisto a dar-lhe mais esta má notícia, que uma leitura menos atenta do relatório pode ter deixado escapar: mesmo a OCDE, que é o que se sabe, considera excessivo o recurso dos patrões portugueses aos contratos a prazo e sugere que se agravem as contribuições para a segurança social dos empregadores que recorrem a esta modalidade precária de emprego.

O último ano e meio, é certo, não tem sido um paraíso e muitos problemas estruturais do país e do seu atraso económico mantêm-se: salários médios muito baixos, níveis inadmissíveis de precariedade, uma percentagem insustentável de desempregados sem apoio, o fardo da dívida a impedir um investimento público consistente capaz de promover mais emprego. Mas uma coisa é certa: a ideologia da precarização foi derrotada no campo das ideias. A solução da Direita, que era responder à precariedade abolindo os direitos do trabalho, não tem adeptos entre o povo. É isso que a deixa com os nervos à flor da pele. Agora, é a hora da Esquerda. Por mais que Fernandes desespere, o combate à precariedade é mesmo para continuar. Por isso, meu caro José Manuel, vai ouvir falar muito dele, porque está ainda a dar os primeiros passos. O melhor é ir-se habituando.
E porque não se calam com isso dos “precários”?
José Manuel Fernandes
22/2/2017, 0:012.

Só se fala de "precários" quando estes resultam do excesso de protecção dos "definitivos" num mercado de trabalho dual, injusto e ineficiente. É uma discussão de pernas para o ar, capturada pelo Bloco

Todos os dias, ao entrar em Lisboa para vir trabalhar, tenho de passar por um cartaz do Bloco de Esquerda que exige o fim da “precariedade”. Todos os dias, ou quase, tenho de ouvir Catarina Martins repetir, como se fosse uma verdade inquestionável, que combater a precariedade é fazer pela “condição de vida das pessoas” e pela “qualidade da nossa democracia”. Todos os dias – todas as horas? – ouço lamentar esse mal imenso que é a “precariedade”, o “trabalho precário”, a necessidade de fazer justiça e integrar, no Estado e nas empresas, todos esses trabalhadores. O tema é mesmo discutido na Assembleia da República sem que alguém tenha a coragem de contrariar este discurso que se tornou dominante.

É então que tenho mesmo a certeza: a linguagem que utilizamos todos os dias está corrompida, foi contaminada pela ideologia de bloquistas e comunistas e nem demos por isso. Porque o nosso problema não é acabar com o trabalho precário – é tornar menos definitivos todos os restantes contratos de trabalho. O problema está a ser colocado de pernas para o ar.

Compreendo a retórica do PCP, pois ainda olha para o país e para o mundo como se estivéssemos no tempo da primeira revolução industrial e não entende que, nas economias modernas, há cada vez mais empresas a serem criadas e outras a desaparecerem, actividades que deixam de fazer sentido e outras que surgem do nada, e que os mecanismos da inovação, que nos deram níveis de bem-estar inimagináveis ainda há uma ou duas gerações, passam por aquilo a que Joseph Schumpeter chamou “destruição criativa”.

Também entendo a campanha do Bloco, pois dirige-se grupos eleitorais muito específicos, a clientelas bem definidas (como os dos bolseiros financiados pelo Ministério da Ciência, só para dar um dos exemplos mais gritantes) que Catarina Martins deseja que fiquem eternamente agradecidas ao activismo do seu grupo parlamentar.

Também não me surpreende que um PS cada vez mais colonizado pela ideias radicais não seja capaz de fazer mais do que balbuciar algumas coisas sobre a necessidade de ver se, à mesa do Orçamento neste tempo de saída dos “défices excessivos”, há pão para tantas bocas.

O que estranho é que, caminhando mais para a direita, aí se coloque sobretudo a tónica na crítica ao Governo por… ter criado mais precariedade.

Assim não vamos lá. De resto já nem é assim que boa parte dos portugueses pensa: nos inquéritos que se fazem nas faculdades de Economia sobre o emprego que se deseja ter no final dos cursos há não muitos anos o sonho era entrar na função pública, hoje mais depressa é criar uma empresa. Os mais novos já perceberam que o mundo mudou e vai continuar a mudar – os nossos políticos é que continuam presos ao passado e à única realidade que conhecem: o Estado.

Vale por isso a pena dar um salto a esse passado em que tudo começou, recordando que foi no Verão Quente de 1975 que, em nome da “correcção das distorções” que seriam “próprias da economia capitalista”, saiu legislação a proibir os despedimentos individuais. Estávamos no auge do “gonçalvismo”, mas o princípio ficou, ganhando depois dignidade de norma constitucional. Nunca ninguém conseguiu, nos mais de 40 anos que desde então decorreram, alterar de forma substancial esse princípio, pelo que não tardou que surgissem os “contratos a prazo”: a primeira lei data logo de Outubro de 1976. Estavam assim criadas as condições para um dos maiores cancros da economia portuguesa: a existência de um mercado de trabalho dual, em que uns têm direitos a mais e outros direitos a menos. Numa sua anterior encarnação, como académico especializado em mercado de trabalho, Mário Centeno foi um dos mais acutilantes críticos desta situação. Hoje, como ministro das Finanças, parece esquecido de tudo o que então defendeu, o que é pena.

Contudo ainda há poucas semanas ele próprio teve uma oportunidade de comprovar que o nosso mercado de trabalho continua altamente distorcido – foi quando Angel Gurría, secretário-geral da OCDE, esteve em Lisboa para apresentar o último relatório da organização sobre o estado da nossa economia. Um dos pontos desse relatório era precisamente sobre o “mercado de trabalho continuar altamente segmentado”, isto é, dividido entre os que têm contratos permanentes e os que têm contratos a prazo. Mais: Portugal é, por isso mesmo, um dos países onde uma maior proporção dos trabalhadores está contratada a prazo – é “precário”, na linguagem do Bloco –, algo que fica bem evidente no gráfico (pág. 48), que mostra que só em Espanha, na Polónia e na Eslovénia a proporção de jovens trabalhadores contratados a prazo é maior.

A OCDE, tal como toda a literatura especializada (incluindo os velhos textos de Mário Centeno) atribuem a proliferação dos contratos a prazo à rigidez dos contratos sem termo. A organização considera mesmo que, apesar de terem sido realizadas em Portugal “reformas substanciais” do mercado de trabalho depois de 2011, reformas essas que “tiveram um impacto positivo e devem ser mantidas”, a verdade é que “aspectos fundamentais da rigidez do Mercado laboral em Portugal continuaram a não ser tocados, especialmente devido às limitações constitucionais”.

O resultado é, como se vê num outro quadro retirado do mesmo relatório (pág. 49), que mesmo depois das reformas hiper-neoliberais do anterior Governo, o nosso país continua a ser aquele em que é mais difícil realizar um despedimento individual.

Não é preciso ser um economista da OCDE ou um estudioso do mercado de trabalho para saber que, num tempo em que, mais do que nunca, o dinamismo da economia está ligado à forma como as empresas se conseguem adaptar aos novos desafios dos mercados, a rigidez existente em Portugal tem pesadas consequências negativas.

A primeira foi detectada ainda a lei da protecção contra o despedimento individual não tinha um ano: obrigadas a contratar trabalhadores “para a vida”, as empresas preferem não arriscar. Foi para contrariar essa situação que estava a fazer subir o desemprego que surgiu a primeira lei dos contratos a prazo, aprovada num governo do PS, permitindo que essa prática se fosse disseminando. Assim também se desincentivou quer a aposta na formação dos trabalhadores – quem dá formação a contratados a prazo? – como se fez com que os trabalhadores tivessem mais receio de arriscar novas experiências, evitando trocar de empregador. Por fim, prejudicaram-se sobretudo ao mais novos, aqueles que por regra têm uma formação mais elevadamas que são os que estão “fora” do sistema, “fora” dos contratos sem termo e do seu ambiente demasiado protegido, um regime que, ao mesmo tempo, nem sequer permite penalizar os que, nas empresas ou no Estado, se “encostam” à sombra do seu posto de trabalho garantido.

Nada disto é novo, tudo isto vem nos livros e em dezenas de estudos académicos, tudo isto vem sendo dito de forma repetida ao longo dos anos. Mas enquanto noutros países, como Itália, são os próprios socialistas a promover as reformas necessárias (para não recordar as reformas na Alemanha, promovidas por um governo social-democrata há mais de 10 anos), em Portugal os nossos socialistas estão mais preocupados em agradar à extrema-esquerda e em reverter o pouco que se avançou nos últimos anos.

E como já não fosse suficientemente mau estarmos a ter a discussão errada, condicionada por agendas extremistas e slogans populistas, o andar dos dias parece apontar para a cedência do Governo, no que ao Estado diz respeito, às reivindicações da extrema-esquerda e dos sindicatos. Fizeram-se contas? Percebeu-se se todos os que agora batem à porta do Estado são mesmo necessários? Tem-se a mais pequena noção do significará abrir milhares de vagas nas escolas e nas universidades apenas porque, ao longo dos anos, se alimentou um ciclo vicioso de contratações temporárias e se criou uma “bolha” de bolseiros?

Voltem a olhar para o segundo gráfico. Notem que o segundo país com menos protecção contra o despedimento individual é o Canadá e o terceiro a Grã-Bretanha. Em ambos o desemprego é mais baixo, o dinamismo da economia maior, para ambos estão a fugir muitos dos nossos jovens, nada receosos dos empregos “precários” que aí lhes oferecem – porque na verdade aí todos os empregos são “precários” –, antes cheios de vontade de fazer pela vida.

Volto aonde comecei: com uma discussão assim capturada por ideias bafientas, mais próprias do século XIX do que do século XX, não iremos a lado nenhum. Da mesma forma que não iremos a lado nenhum se os partidos e as forças reformistas, que querem libertar a economia dos seus estrangulamentos, se fecharem num silêncio atemorizado, incapazes de travar a batalha da opinião pública.


Mas é assim que estamos, para nossa desgraça.

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