E
porque não se calam com isso dos “precários”?
José Manuel
Fernandes
22/2/2017, 0:012.
Só se fala de
"precários" quando estes resultam do excesso de protecção
dos "definitivos" num mercado de trabalho dual, injusto e
ineficiente. É uma discussão de pernas para o ar, capturada pelo
Bloco
Todos os dias, ao
entrar em Lisboa para vir trabalhar, tenho de passar por um cartaz do
Bloco de Esquerda que exige o fim da “precariedade”. Todos os
dias, ou quase, tenho de ouvir Catarina Martins repetir, como se
fosse uma verdade inquestionável, que combater a precariedade é
fazer pela “condição de vida das pessoas” e pela “qualidade
da nossa democracia”. Todos os dias – todas as horas? – ouço
lamentar esse mal imenso que é a “precariedade”, o “trabalho
precário”, a necessidade de fazer justiça e integrar, no Estado e
nas empresas, todos esses trabalhadores. O tema é mesmo discutido na
Assembleia da República sem que alguém tenha a coragem de
contrariar este discurso que se tornou dominante.
É então que tenho
mesmo a certeza: a linguagem que utilizamos todos os dias está
corrompida, foi contaminada pela ideologia de bloquistas e comunistas
e nem demos por isso. Porque o nosso problema não é acabar com o
trabalho precário – é tornar menos definitivos todos os restantes
contratos de trabalho. O problema está a ser colocado de pernas para
o ar.
Compreendo a
retórica do PCP, pois ainda olha para o país e para o mundo como se
estivéssemos no tempo da primeira revolução industrial e não
entende que, nas economias modernas, há cada vez mais empresas a
serem criadas e outras a desaparecerem, actividades que deixam de
fazer sentido e outras que surgem do nada, e que os mecanismos da
inovação, que nos deram níveis de bem-estar inimagináveis ainda
há uma ou duas gerações, passam por aquilo a que Joseph Schumpeter
chamou “destruição criativa”.
Também entendo a
campanha do Bloco, pois dirige-se grupos eleitorais muito
específicos, a clientelas bem definidas (como os dos bolseiros
financiados pelo Ministério da Ciência, só para dar um dos
exemplos mais gritantes) que Catarina Martins deseja que fiquem
eternamente agradecidas ao activismo do seu grupo parlamentar.
Também não me
surpreende que um PS cada vez mais colonizado pela ideias radicais
não seja capaz de fazer mais do que balbuciar algumas coisas sobre a
necessidade de ver se, à mesa do Orçamento neste tempo de saída
dos “défices excessivos”, há pão para tantas bocas.
O que estranho é
que, caminhando mais para a direita, aí se coloque sobretudo a
tónica na crítica ao Governo por… ter criado mais precariedade.
Assim não vamos lá.
De resto já nem é assim que boa parte dos portugueses pensa: nos
inquéritos que se fazem nas faculdades de Economia sobre o emprego
que se deseja ter no final dos cursos há não muitos anos o sonho
era entrar na função pública, hoje mais depressa é criar uma
empresa. Os mais novos já perceberam que o mundo mudou e vai
continuar a mudar – os nossos políticos é que continuam presos ao
passado e à única realidade que conhecem: o Estado.
Vale por isso a pena
dar um salto a esse passado em que tudo começou, recordando que foi
no Verão Quente de 1975 que, em nome da “correcção das
distorções” que seriam “próprias da economia capitalista”,
saiu legislação a proibir os despedimentos individuais. Estávamos
no auge do “gonçalvismo”, mas o princípio ficou, ganhando
depois dignidade de norma constitucional. Nunca ninguém conseguiu,
nos mais de 40 anos que desde então decorreram, alterar de forma
substancial esse princípio, pelo que não tardou que surgissem os
“contratos a prazo”: a primeira lei data logo de Outubro de 1976.
Estavam assim criadas as condições para um dos maiores cancros da
economia portuguesa: a existência de um mercado de trabalho dual, em
que uns têm direitos a mais e outros direitos a menos. Numa sua
anterior encarnação, como académico especializado em mercado de
trabalho, Mário Centeno foi um dos mais acutilantes críticos desta
situação. Hoje, como ministro das Finanças, parece esquecido de
tudo o que então defendeu, o que é pena.
Contudo ainda há
poucas semanas ele próprio teve uma oportunidade de comprovar que o
nosso mercado de trabalho continua altamente distorcido – foi
quando Angel Gurría, secretário-geral da OCDE, esteve em Lisboa
para apresentar o último relatório da organização sobre o estado
da nossa economia. Um dos pontos desse relatório era precisamente
sobre o “mercado de trabalho continuar altamente segmentado”,
isto é, dividido entre os que têm contratos permanentes e os que
têm contratos a prazo. Mais: Portugal é, por isso mesmo, um dos
países onde uma maior proporção dos trabalhadores está contratada
a prazo – é “precário”, na linguagem do Bloco –, algo que
fica bem evidente no gráfico (pág. 48), que mostra que só em
Espanha, na Polónia e na Eslovénia a proporção de jovens
trabalhadores contratados a prazo é maior.
A OCDE, tal como
toda a literatura especializada (incluindo os velhos textos de Mário
Centeno) atribuem a proliferação dos contratos a prazo à rigidez
dos contratos sem termo. A organização considera mesmo que, apesar
de terem sido realizadas em Portugal “reformas substanciais” do
mercado de trabalho depois de 2011, reformas essas que “tiveram um
impacto positivo e devem ser mantidas”, a verdade é que “aspectos
fundamentais da rigidez do Mercado laboral em Portugal continuaram a
não ser tocados, especialmente devido às limitações
constitucionais”.
O resultado é, como
se vê num outro quadro retirado do mesmo relatório (pág. 49), que
mesmo depois das reformas hiper-neoliberais do anterior Governo, o
nosso país continua a ser aquele em que é mais difícil realizar um
despedimento individual.
Não é preciso ser
um economista da OCDE ou um estudioso do mercado de trabalho para
saber que, num tempo em que, mais do que nunca, o dinamismo da
economia está ligado à forma como as empresas se conseguem adaptar
aos novos desafios dos mercados, a rigidez existente em Portugal tem
pesadas consequências negativas.
A primeira foi
detectada ainda a lei da protecção contra o despedimento individual
não tinha um ano: obrigadas a contratar trabalhadores “para a
vida”, as empresas preferem não arriscar. Foi para contrariar essa
situação que estava a fazer subir o desemprego que surgiu a
primeira lei dos contratos a prazo, aprovada num governo do PS,
permitindo que essa prática se fosse disseminando. Assim também se
desincentivou quer a aposta na formação dos trabalhadores – quem
dá formação a contratados a prazo? – como se fez com que os
trabalhadores tivessem mais receio de arriscar novas experiências,
evitando trocar de empregador. Por fim, prejudicaram-se sobretudo ao
mais novos, aqueles que por regra têm uma formação mais elevadamas
que são os que estão “fora” do sistema, “fora” dos
contratos sem termo e do seu ambiente demasiado protegido, um regime
que, ao mesmo tempo, nem sequer permite penalizar os que, nas
empresas ou no Estado, se “encostam” à sombra do seu posto de
trabalho garantido.
Nada disto é novo,
tudo isto vem nos livros e em dezenas de estudos académicos, tudo
isto vem sendo dito de forma repetida ao longo dos anos. Mas enquanto
noutros países, como Itália, são os próprios socialistas a
promover as reformas necessárias (para não recordar as reformas na
Alemanha, promovidas por um governo social-democrata há mais de 10
anos), em Portugal os nossos socialistas estão mais preocupados em
agradar à extrema-esquerda e em reverter o pouco que se avançou nos
últimos anos.
E como já não
fosse suficientemente mau estarmos a ter a discussão errada,
condicionada por agendas extremistas e slogans populistas, o andar
dos dias parece apontar para a cedência do Governo, no que ao Estado
diz respeito, às reivindicações da extrema-esquerda e dos
sindicatos. Fizeram-se contas? Percebeu-se se todos os que agora
batem à porta do Estado são mesmo necessários? Tem-se a mais
pequena noção do significará abrir milhares de vagas nas escolas e
nas universidades apenas porque, ao longo dos anos, se alimentou um
ciclo vicioso de contratações temporárias e se criou uma “bolha”
de bolseiros?
Voltem a olhar para
o segundo gráfico. Notem que o segundo país com menos protecção
contra o despedimento individual é o Canadá e o terceiro a
Grã-Bretanha. Em ambos o desemprego é mais baixo, o dinamismo da
economia maior, para ambos estão a fugir muitos dos nossos jovens,
nada receosos dos empregos “precários” que aí lhes oferecem –
porque na verdade aí todos os empregos são “precários” –,
antes cheios de vontade de fazer pela vida.
Volto aonde comecei:
com uma discussão assim capturada por ideias bafientas, mais
próprias do século XIX do que do século XX, não iremos a lado
nenhum. Da mesma forma que não iremos a lado nenhum se os partidos e
as forças reformistas, que querem libertar a economia dos seus
estrangulamentos, se fecharem num silêncio atemorizado, incapazes de
travar a batalha da opinião pública.
Mas é assim que
estamos, para nossa desgraça.
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