“Eu
estou aqui!”
POR O CORVO • 27
FEVEREIRO, 2017
Crónica
A Rua da Escola
Politécnica, onde uma multidão de gente circula dia e noite, a pé
e de automóvel, atraída pelas novas lojas, cada vez mais
sofisticadas, que abrem todos os dias, e pelos restaurantes de
“chefs” conhecidos ou de gastronomias exóticas que, a preços
algo exorbitantes, vieram substituir velhas tascas tradicionais, está
a ser abandonada por muitos dos antigos moradores.
Pressionados pelos
senhorios, ansiosos pela oportunidade de negócio que lhes é
proporcionada pelo extraordinário aumento de preços dos seus
andares – nesta zona da cidade, o metro quadrado atinge os cinco
mil euros, os preços mais altos de Lisboa, segundo a Remax -, idosos
de saúde frágil abandonam as suas casas, aliciados às vezes pelas
somas que lhes são oferecidas, muito baixas mas avultadas, para quem
vive de reformas mínimas.
Foi o que aconteceu
a uma mulher de noventa anos, a quem todos conhecem no bairro por
“Avó Maria”, a cujo drama fui assistindo, relatado por ela, na
cabeleireira de bairro que ambas frequentamos. O final não foi
feliz.
A filha da Avó
Maria, que depois de alguns desaires familiares, decidira voltar a
viver com ela, acabou por convencer a mãe a aceitar os vinte e cinco
mil euros que o senhorio lhe oferecia, se aceitasse sair da sua casa.
A velha senhora resistiu quanto pôde, e chegou a pedir à
cabeleireira para lhe arranjar um advogado que a ajudasse a opôr-se
ao exílio forçado. Mas as circunstâncias estavam contra ela: já
não conseguia viver sozinha, precisava do apoio da filha, e se o
desejo desta era aceitar a oferta do senhorio, resignou-se a mudar
para uma casa de renda barata, em Benfica.
Todos os meses, a
Avó Maria, que continua muito lúcida, se mete num transporte
público e ruma ao cabeleireiro, na Rua da Escola Politécnica, para
arranjar o cabelo, carpir as suas mágoas e matar saudades da rua
onde sempre viveu: “Aquilo lá é uma tristeza, não conheço
ninguém e só vejo cimento à minha volta. Aqui, via o Tejo da minha
cozinha. Tenho muitas saudades do rio, dos vizinhos, da minha
casinha”, confidencia ela à cabeleireira que lhe penteia os
caracóis brancos.
As histórias de
gente expulsa de sua casa nesta zona da cidade multiplicam-se, ao
ritmo dos prédios em obras, do avolumar do trânsito, da
proliferação de novos comércios. Mas há quem não tenha
abandonado o bairro. Um deles é um sem abrigo, que há vários anos
passa o seu tempo na mesma soleira de porta. Louro, de olhos claros e
estatura muito elevada, sem parecer fisicamente degradado, o homem
poderia passar por um turista nórdico, um dos muitos que se passeiam
agora pela Rua da Escola Politécnica, se não fosse usar o mesmo
anorak castanho informe no Verão ou no Inverno, façam trinta graus
ou menos cinco.
No chão, ao seu
lado, um velho boné voltado ao contrário recolhe as moedas dos
passantes, que ele não se dá sequer ao trabalho de interpelar, uma
vez que passa o tempo deitado a olhar para o ar, por vezes entregue a
um solilóquio incompreensível, entredentes.
Habituei-me a
apreciar a postura discreta deste homem, que se limita a estar no
mesmo sítio ano após ano, não pedindo nada, não tendo
comportamentos excêntricos, nem acumulando sujidades à sua volta.
Mas, há pouco tempo, o seu comportamento mudou. Continua indiferente
ao fluxo interminável de trânsito humano e automóvel, continua
deitado no mesmo sítio, mas o silêncio discreto em que se mantinha
começou agora a ser interrompido de vez em quando, por um grito: “Eu
estou aqui”.
Parei na rua, da
primeira vez que o ouvi, sentindo o coração apertado, com pena do
homem. Atravessei a rua para lhe dar uma moeda, que ele agradeceu com
um discreto aceno de cabeça, continuei a andar e, ainda ouvi outra
vez o seu grito vibrante: “Eu estou aqui!”
Não será aquele
grito o protesto de quem não se resigna a que o ignorem, a que
passem por ele como se ele não tivesse existência, como acontece
cada vez mais, numa rua onde o anonimato substituiu as solidariedades
de vizinhança? Pareceu-me que sim, e também que nessa afirmação
da sua pessoa, o sem abrigo mostra mais orgulho próprio e capacidade
de resistência do que muitos dos velhos habitantes da Rua da Escola
Politécnica, incapazes de gritar aos ouvidos dos senhorios: “Eu
estou aqui”. Mesmo que tenham nascido ali, como a Avó Maria, há
noventa anos.
Texto: Isabel Braga
Imagens: Selima
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