Ai,
Cais do Sodré, já todo o sapato te serve no pé?
Estão
quase a acabar as obras de requalificação do Cais do Sodré, que
segundo a câmara serviram para abrir a frente ribeirinha à “fruição
pública”. Há mais passeios, mais árvores, menos carros, muitos
elogios. A má fama do Cais vai desaparecer de vez?
JOÃO PEDRO PINCHA
13 de Fevereiro de 2017, 7:30
Cacilhas, ali ao
fundo, tenta piscar o olho por entre a neblina que se abateu sobre o
rio. E conseguiu captar a atenção de um homem, pelo menos enquanto
a chuva que há horas se adivinha não desce do céu aos trambolhões,
como tem sido costume. José Manuel, 79 anos, comeu a bucha que
trouxe de casa num dos novos bancos de madeira colocados junto ao
Tejo, que até têm espaço para esticar as pernas. Depois veio
postar-se aqui na amurada, a centímetros do rio, com o olhar perdido
na Outra Banda.
Já lhe conhece as
formas de cor. Há vários anos que sai de casa logo de manhã e vem
por aí abaixo, desde o Largo do Rato até à beira-Tejo, só para
passar o tempo. “Põe-se as ideias em dia, está-se descansadinho,
ninguém chateia”, diz, boina na cabeça e casaco apertado, que as
ondas provocadas pela passagem dos cacilheiros podem ser manhosas.
“Uma grade aí não era má ideia.”
É a única
imperfeição que vê no novíssimo Cais do Sodré, onde as obras
estão praticamente concluídas. Apesar de agora estar de costas
voltadas para a praça, José Manuel andou a passear e gostou do que
viu. “Já tem outras condições. Está-se mais à vontade, isto
está mais airoso, mais livre.” As frases saem acompanhadas de
gestos largos com os braços, logo seguidos de outros mais contidos.
“Antigamente aqui era uma mata, tinha barracas, agora está muito
mais limpinho”, diz.
As mudanças no Cais
do Sodré foram significativas. Logo atrás da amurada em que José
Manuel está sentado havia um espaço alcatroado onde os carros
estacionavam desordenadamente no meio de bancos de plástico
coloridos e enfeitados com oliveiras. Esse local está agora
calcetado e tem os tais bancos de madeira onde José comeu uma
sandes. Mas mais: reduziu-se o número de vias de trânsito,
acabou-se o parque de estacionamento em frente à estação,
alargaram-se passeios, mudaram-se paragens de autocarros,
plantaram-se novas árvores.
“Foram meses
difíceis, sem dúvida nenhuma”, desabafa Teresa, que tem uma loja
de artigos turísticos na esquina da Praça Duque da Terceira com a
Rua do Alecrim. “Mas está bonito”, acaba por dizer. Deste lado
do largo, oposto àquele onde encontrámos José Manuel, o único
vestígio visível de obras é uma cabine azul, colocada a menos de
um metro da estátua do duque – limpa há dois anos, já precisa de
nova lavagem.
Em frente à loja de
Teresa o passeio foi muito alargado. “É óptimo, parece a Rua
Augusta”, atira a empresária a rir-se, atrás do balcão onde
vende imagens de Nossa Senhora de Fátima fluorescentes, ímanes de
eléctricos 28 e outra parafernália de encher o olho aos turistas.
Há trinta anos no Cais do Sodré, Teresa suportou os incómodos das
obras com algum cepticismo. “Estava com receio que descobrissem
alguma coisa, alguma taça enterrada, e isto ficasse para aí tudo
embargado. Tive dias em que estava dentro da loja retida, ninguém
entrava nem saía”, relata.
“Mas já passou,
está muito bonito, está muito amplo. Até o trânsito flui melhor”,
acrescenta. Ainda assim, para o negócio, ainda não é a altura
certa para tirar conclusões. Janeiro e Fevereiro são meses de pouca
procura, explica, pelo que será preciso esperar um pouco mais para
saber se o passeio mais largo trará vantagens. “A partir de Março
já se começa a ver. E espero que agora, com aquilo arranjado junto
ao rio, as pessoas não deixem de passar por aqui.”
Uma "magnífica
obra"
Apesar de Teresa
dizer que Fevereiro é um mês fraco em termos turísticos, por estes
dias difícil é encontrar portugueses no Cais do Sodré. À espera
de um autocarro 758 está Joaquim, cinquenta e poucos anos, que ficou
surpreendido com o cenário que encontrou. “Passam-se anos sem que
venha cá. Isto era um problema para a gente atravessas, vir para
aqui, apanhar autocarros. Como está agora, está muito melhor”,
afirma.
Outro Joaquim, este
taxista, também está agradado com o resultado final dos trabalhos.
Mas teme que o trânsito não melhore. “Nas horas de ponta vai
continuar a ser complicado”, vaticina, encostado à entrada da
estação fluvial. Para ele, “as pessoas trazem cada vez mais os
próprios carros para Lisboa”, o que está na origem dos
engarrafamentos que entopem toda esta zona diariamente.
Por isso, Joaquim
duvida da eficácia de certas opções da câmara municipal nesta
intervenção. “Em vez de porem mais vias, tiram-nas?”, questiona
incrédulo. Tirar carros do centro e abrir este espaço à “fruição
pública por todos os munícipes” é um dos objectivos assumidos
por Fernando Medina para toda a frente ribeirinha: Cais do Sodré,
Praça Duque da Terceira, Largo do Corpo Santo e Campo das Cebolas.
É por isso, aliás,
que a Rua Bernardino Costa -- que liga a Rua do Arsenal ao fim da Rua
do Alecrim, passando pelo Corpo Santo – está com uma só via de
trânsito, passeios alargados e lojistas contentes. Pelo menos a
avaliar pelo que dizem Ilda e Luís Gonçalves, donos da Tabacaria
Britânica, que se deram ao trabalho de pendurar um cartaz no
gradeamento das obras. “A Britânica dá os parabéns a todos os
trabalhadores desta magnífica obra”, lê-se.
Será ironia? Nem
pensar, responde o casal em uníssono no estabelecimento onde vendem
lotarias, jornais e tabacos. “É notável a dedicação do
pessoal”, afirma Luís. “Nunca vi trabalhar como estes
trabalhadores”, diz Ilda. Desta casa, só elogios. “A rua
[estava] toda irregular, as pessoas tropeçavam, espalharam-se aqui
várias vezes à nossa porta”, conta Luís, voz grave e calma a
tecer loas à intervenção: “Valeu a pena, está bonita e
funcional. Está airoso, as pessoas andam livremente.”
Mas, e há
finalmente um mas, alguns comerciantes estão a aproveitar os
passeios mais largos para esticar as bancas de fruta, de ímanes e
quejandos. “Ocupam o passeio com o negócio, os peões ali ficam.
Há que disciplinar isso para que as pessoas possam circular
livremente sem aquela feira de expositores no caminho”, diz Luís
Gonçalves.
Amante de fado, Luís
cantarola uma canção de Rodrigo: "Ai Cais do Sodré, ai Cais
do Sodré, nem todo o sapato te serve no pé". Uma realidade
que, afirma, está a mudar rapidamente. Ele agora passa grande parte
do tempo a gerir um turismo rural em Grândola e diz que se
surpreende sempre que vem a esta zona da capital, mal afamada e mal
frequentada durante muitos anos. “É bom vir a Lisboa. Anda-se aqui
tranquilamente, não há receio, não há violência.”
Ilda Gonçalves tem
um receio. “Tenho muito medo que os grafitis venham e estraguem
isto tudo.” Na sexta-feira, os raros trabalhadores que ainda
andavam pela obra estavam precisamente a lavar um dos novos muretes
do jardim, onde alguém já tinha escrito umas palavras com spray
preto.
Despedimo-nos da
Britânica com a promessa de lá voltar mais tarde, para ver como
param os fados. O céu está mais carregado, Cacilhas mais longe.
José Manuel já foi para casa.
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