2,1%
de défice? Que governo espectacular!
A
bolha da inconsciência está outra vez em alta, para grande
estupefacção daqueles que, como eu, vêem tudo novamente a
repetir-se, perante a felicidade geral.
João Miguel Tavares
21 de Fevereiro de
2017, 6:26
Alcançámos o
défice mais baixo da História da democracia portuguesa (incrível).
O desemprego continua a diminuir de mês para mês (espantoso). A
economia cresceu 1,9% no último trimestre de 2016, a maior subida
trimestral em três anos (magnífico). A confiança dos consumidores
é a mais alta de sempre (estupendo). O crédito à habitação subiu
44% só em 2016, atingindo o valor mais elevado desde os anos
pré-crise (maravilhoso). O consumo privado aumentou (formidável). E
tudo isto graças à acção de um governo socialista apoiado pelo
Bloco de Esquerda e pelo Partido Comunista Português, que devolveu
rendimentos, repôs feriados e mostrou que afinal havia alternativa à
austeridade (sensacional). Como é possível não reconhecer o quanto
este país ficou a ganhar com a troca de Passos Coelho por António
Costa?
Aquilo que eu acabei
de escrever é aquilo que os meus simpáticos leitores de esquerda
gostam de ouvir. Aliás, não gostam apenas de ouvir – eles estão
convencidos de que só pessoas mal-intencionadas ou ideologicamente
obcecadas (como eu) são incapazes de admitir as espectaculares
melhorias na situação económica portuguesa. E estão convencidos
de mais coisas, em particular esta: O TINA (There Is No Alternative)
era só mesmo uma balela destinada a impor a agenda “neoliberal”.
António Costa é tão, mas tão assombroso, que a solução da
geringonça anda a ser estudada por toda a galáxia, e até a
Associated Press (uma agência estrangeira, imaginem) espalha pelo
mundo a boa nova: “Portugal’s government has proved its critics
wrong”. Se a AP afirmou que provou, é porque está provado.
Quando leio estas
coisas, de forma tão insistente e empenhada, hesito entre voltar a
fazer a figura do chato da festa ou simplesmente encolher os ombros,
e deixar metade do povo português voltar a curtir a alienação dos
seus problemas, um dos pratos favoritos da dieta mediterrânica. Na
economia fala-se muito em bolhas. A bolha imobiliária. A bolha
tecnológica. A bolha financeira. A bolha chinesa. A bolha de 1929.
Eu proponho que os economistas e psicólogos portugueses começam a
teorizar sobre uma outra bolha, que atinge os portugueses há séculos
com a regularidade de um relógio suíço: a bolha da inconsciência.
A bolha da
inconsciência está outra vez em alta, para grande estupefacção
daqueles que, como eu, vêem tudo novamente a repetir-se, perante a
felicidade geral. Sim, o governo teve o mérito de se mostrar
empenhado na redução do défice, e de confiar tão pouco na sua
receita para o crescimento que a conjugação da travagem a fundo no
investimento e do perdão fiscal acabou por produzir um défice que
foi muito para além da troika. Nada que perturbe a esquerda, rendida
que está às maravilhas da realpolitik e de uma frase tonta de
Passos Coelho que tem sido a sua tábua de salvação – cada dia
sem o diabo é um dia no céu.
Mas o céu não mora
aqui. O crescimento diminuiu. A dívida aumentou (muito). Estamos
totalmente dependentes do programa de compra de dívida do BCE. O
rating do país é lixo. O aumento da confiança dos consumidores
está a desequilibrar a balança externa. Voltámos a endividar-nos
para consumir. As imparidades dos bancos são astronómicas. E os
juros da dívida a 10 anos aproximam-se dos níveis de 2010. No
entanto, o povo por aí anda, cantando e rindo, acompanhado de um
coro de leitores, colunistas e políticos que acham que Portugal é
um oásis. Não há nada a fazer. A bolha da inconsciência é sempre
a última a rebentar.
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