terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A nau de bacalhau com velas de queijo e corvos de massapão




A nau de bacalhau com velas de queijo e corvos de massapão
A autenticidade e a sobrevivência da nossa identidade está ameaçada pelo triunfo efémero do Híbrido.

ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
9 de Janeiro de 2016, 1:25

Em Lisboa, os últimos dias de 2015 foram dominados na opinião pública, pelo polémico e imposto desaparecimento do Palmeira.

O Palmeira era um restaurante “atascado” de consideráveis dimensões em notável espaço térreo Pombalino, conjugando respectivas abóbodas e pilares com antiga e genuína decoração “Portugal/Português”.

Aqui, azulejos e ferragens junto a autênticos pastéis de bacalhau (sem queijo) permitiam associações mentais em “viagens por serras e vales” no tempo das estradas nacionais, com árvores ancestrais apresentando bandas brancas reveladas por redondos faróis pejados de mosquitos, feixes luminosos invasores de silhuetas campestres sobre um glorioso e estrelado céu nocturno, dominado pelas abóbodas do Firmamento.

Tudo isto terminou abruptamente. A C.M.L. decidiu vender o edifício, na parte superior uma ruína, sem acautelar a garantia de sobrevivência deste notável e autêntico estabelecimento. Isto, depois de apregoar aos quatro ventos a criação do Projecto “Lojas com História”., que garantiu a formulação de extensas e completas listas de estabelecimentos a preservar, definidas por notáveis seguidores de Ulisses.

Estas heróicas listas e intenções só apresentavam uma sombra. A C.M.L. não garantia a protecção perante a implacável e arbitrária Lei do Arrendamento. Assim, declarava-se impotente e também vítima, numa mítica, heróica e eterna luta entre as intenções, a defesa do valor único cultural de tais estabelecimentos, e a realidade dos valores e interesses dos investidores que se sobrepunham aos valores culturais.

Havia portanto uma essência pura de “Dr. Jeckill” no organismo da C.M.L., que sucumbia assim por impotência, ás maléficas intenções vindas do “exterior”.

Mas a perversidade reside precisamente no facto de que tal como na conhecida novela, “Dr. Jeckill” e “Mr. Hyde” são duas facetas da mesma pessoa. E não se trata aqui, apenas. de um conflicto entre duas essências no mesmo organismo, em luta interna e permanente.

Não, mais perversamente, aqui, a existência de “Dr. Jeckill” é um falso mito criado por “Mr. Hyde”.

Por outras palavras, a principal causa do desaparecimento dos Estabelecimentos é a política urbanística desenvolvida pela C.M.L. e respectivos licenciamentos concedidos.

Na avalanche de projectos de hóteis e residências turísticas permitida e licenciada pela C.M.L. está presente uma ausência total de estratégia ou visão futura. Cada projecto, no actual estado de coisas, implica inevitávelemente o desaparecimento de qualquer estabelecimento existente, independentemente da sua antiguidade ou do seu reconhecido e apregoado insubstituível valor cultural.

Embora todos reconheçam que a autenticidade e a diferença local e cultural, constituem a principal e determinante razão da visita turística, Lisboa está a ser destruída sistemáticamente na sua identidade e a ser transformada numa artificial plataforma onde a banalidade, o pastiche e o híbrido triunfam.

Numa grave crise económica, repentinamente o Turismo surgiu como balão de oxigénio salvador.

Como em Portugal nada se medita, reflecte ou se planeia, tudo simplesmente parece nos acontecer, aceitamoss estes processos como inevitáveis. No entanto estes processos conhecem responsáveis e são estimulados ou contrariados por alguém.

Numa Lisboa onde o “pastel de bacalhau com queijo” triunfa, a autenticidade e a sobrevivência da nossa identidade está ameaçada pelo triunfo efémero e irreversivelemente destruidor do Híbrido.

A nau heráldica e respectivos atributos iconográficos originalmente símbolo das características, virtudes e valores da nobre Urbe, está a ser lentamente mas irreversívelmente transformada numa “nau de bacalhau, com velas de queijo e corvos de massapão.”


Historiador de Arquitectura

Sem comentários: