A
nau de bacalhau com velas de queijo e corvos de massapão
A
autenticidade e a sobrevivência da nossa identidade está ameaçada
pelo triunfo efémero do Híbrido.
ANTÓNIO SÉRGIO
ROSA DE CARVALHO
9 de Janeiro de
2016, 1:25
Em Lisboa, os
últimos dias de 2015 foram dominados na opinião pública, pelo
polémico e imposto desaparecimento do Palmeira.
O Palmeira era um
restaurante “atascado” de consideráveis dimensões em notável
espaço térreo Pombalino, conjugando respectivas abóbodas e pilares
com antiga e genuína decoração “Portugal/Português”.
Aqui, azulejos e
ferragens junto a autênticos pastéis de bacalhau (sem queijo)
permitiam associações mentais em “viagens por serras e vales”
no tempo das estradas nacionais, com árvores ancestrais apresentando
bandas brancas reveladas por redondos faróis pejados de mosquitos,
feixes luminosos invasores de silhuetas campestres sobre um glorioso
e estrelado céu nocturno, dominado pelas abóbodas do Firmamento.
Tudo isto terminou
abruptamente. A C.M.L. decidiu vender o edifício, na parte superior
uma ruína, sem acautelar a garantia de sobrevivência deste notável
e autêntico estabelecimento. Isto, depois de apregoar aos quatro
ventos a criação do Projecto “Lojas com História”., que
garantiu a formulação de extensas e completas listas de
estabelecimentos a preservar, definidas por notáveis seguidores de
Ulisses.
Estas heróicas
listas e intenções só apresentavam uma sombra. A C.M.L. não
garantia a protecção perante a implacável e arbitrária Lei do
Arrendamento. Assim, declarava-se impotente e também vítima, numa
mítica, heróica e eterna luta entre as intenções, a defesa do
valor único cultural de tais estabelecimentos, e a realidade dos
valores e interesses dos investidores que se sobrepunham aos valores
culturais.
Havia portanto uma
essência pura de “Dr. Jeckill” no organismo da C.M.L., que
sucumbia assim por impotência, ás maléficas intenções vindas do
“exterior”.
Mas a perversidade
reside precisamente no facto de que tal como na conhecida novela,
“Dr. Jeckill” e “Mr. Hyde” são duas facetas da mesma pessoa.
E não se trata aqui, apenas. de um conflicto entre duas essências
no mesmo organismo, em luta interna e permanente.
Não, mais
perversamente, aqui, a existência de “Dr. Jeckill” é um falso
mito criado por “Mr. Hyde”.
Por outras palavras,
a principal causa do desaparecimento dos Estabelecimentos é a
política urbanística desenvolvida pela C.M.L. e respectivos
licenciamentos concedidos.
Na avalanche de
projectos de hóteis e residências turísticas permitida e
licenciada pela C.M.L. está presente uma ausência total de
estratégia ou visão futura. Cada projecto, no actual estado de
coisas, implica inevitávelemente o desaparecimento de qualquer
estabelecimento existente, independentemente da sua antiguidade ou do
seu reconhecido e apregoado insubstituível valor cultural.
Embora todos
reconheçam que a autenticidade e a diferença local e cultural,
constituem a principal e determinante razão da visita turística,
Lisboa está a ser destruída sistemáticamente na sua identidade e a
ser transformada numa artificial plataforma onde a banalidade, o
pastiche e o híbrido triunfam.
Numa grave crise
económica, repentinamente o Turismo surgiu como balão de oxigénio
salvador.
Como em Portugal
nada se medita, reflecte ou se planeia, tudo simplesmente parece nos
acontecer, aceitamoss estes processos como inevitáveis. No entanto
estes processos conhecem responsáveis e são estimulados ou
contrariados por alguém.
Numa Lisboa onde o
“pastel de bacalhau com queijo” triunfa, a autenticidade e a
sobrevivência da nossa identidade está ameaçada pelo triunfo
efémero e irreversivelemente destruidor do Híbrido.
A nau heráldica e
respectivos atributos iconográficos originalmente símbolo das
características, virtudes e valores da nobre Urbe, está a ser
lentamente mas irreversívelmente transformada numa “nau de
bacalhau, com velas de queijo e corvos de massapão.”
Historiador de
Arquitectura
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