Lisboa
guarda escândalos (quase) em cada esquina
07 DE FEVEREIRO DE
2017
00:39
Marina Marques
Três horas para ir
da Praça da Alegria até à Rua do Carmo? A "culpa" é das
imensas histórias, mais ou menos escandalosas, que saltam a cada
passo destes cerca de dois quilómetros
A Praça da Alegria
como ponto de encontro para uma visita guiada com o título Lisboa
Escandalosa não provoca grande surpresa se pensarmos que no número
58 da praça funcionou durante muitos anos uma referência da noite
lisboeta, o cabaré Maxime. Mas não é por aí que Mónica Queiroz,
técnica da Câmara Municipal de Lisboa e guia desta viagem, começa
este itinerário pedestre, um dos muitos que a autarquia organiza
regularmente, realizado pela primeira vez na última quinta-feira e
que se repetirá em várias datas até junho.
O busto do músico,
pintor e poeta Alfredo Keil (1850-1907), que empresta o nome ao
jardim situado no meio da praça, dá o tom e leva o grupo de mais de
duas dezenas de curiosos - muitos deles habitués destes itinerários
- ao final do século XIX e a uma incursão por um símbolo nacional.
Mais propriamente o hino - e o escândalo provocado pela letra de
Henrique Lopes de Mendonça para a música composta por Alfredo Keil.
A razão é simples: inicialmente (1890), um dos versos do refrão de
A Portuguesa era "contra os bretões marchar, marchar" em
vez de "contra os canhões marchar, marchar", pondo em
causa a aliança entre Portugal e Inglaterra, velha de mais de cinco
séculos, numa reação contra o Ultimato britânico que obrigava
Portugal a retirar as forças militares do território entre as
colónias de Moçambique e Angola.
Ainda no Jardim,
outro escândalo, este mais caseiro. E mais um recuo no tempo, agora
até à Lisboa setecentista e ao caso de adultério da jovem e bonita
Isabel Xavier Clesse, "que tentou envenenar o marido, Tomás
Luís Goilão, um piloto da carreira das Índias que, por isso mesmo,
passava muitos meses fora de casa", conta Mónica Queiroz. Ora,
"o ácido nitroso que Isabel mandou o seu criado João comprar
numa botica, dizendo que era para tratar dos calos ao marido",
acabou por não ser fatal ao piloto, que se salvou. Já Isabel acabou
por ser condenada à morte, por enforcamento, ali mesmo, na Praça da
Alegria. A guia explica porquê: "Este local, onde até 1833 se
realizava a feira da ladra, foi também Campo de Forca."
Ainda no mesmo
local, regresso ao século XX, aos anos 20 e à fundação dos
teatros do Parque Mayer - Maria Vitória (1922), Variedades (1926),
Capitólio (1931) e ABC (1956) - e "à criação de cabarés e
outros clubes noturnos, tendência que se manteve até aos anos
1950". Finalmente o Maxime, "o Ricks" Café de Lisboa,
um ninho de espiões alemães, ingleses e franceses durante a Segunda
Guerra Mundial", conta. "As bailarinas que aí trabalhavam
tentavam conseguir informações a uns para vender a outros."
Percorrendo uns
metros na Rua da Glória, encontra-se a indicação "Tuna
Comercial de Lisboa" no edifício do número 57. Era aí que em
1915 funcionava o Clube Montanha, e o cartaz que Mónica Queiroz
mostra anuncia "jazz band, variedades", com indicação da
hora de abertura, 19.00, quanto ao fecho... Este foi um dos muitos
clubes noturnos da Baixa onde os loucos anos 1920 agitaram a vida da
capital. Estes espaços de diversão estavam ligados à modernidade
de costumes e atitudes, muitas vezes vistos como escandalosos, claro,
seja da moral vigente, das novas músicas que aí se ouviam ou das
danças aí praticadas. Mas também por efetivas violações à lei,
como era o caso do consumo de drogas, com destaque para a cocaína.
"Foi neste clube que uma famosíssima corista francesa,
Charlotte, introduziu o consumo da cocaína." E se nos vizinhos
Ritz Club ou Maxim"s, agora Palácio Foz, era preciso uma bolsa
mais recheada, "aqui bastavam 20 escudos para ser noite até de
manhã", diz a guia, citando o cantor Vitorino.
Descendo a Travessa
da Glória em direção à Avenida da Liberdade, o restaurante Sancho
é aproveitado por Mónica Queiroz para recordar os anos escandalosos
entre 1253 e 1258, em que Portugal foi um país excomungado pelo
Papa. Com a sucessão em perigo por falta de herdeiros de D. Sancho
II, o seu irmão, D. Afonso III, envolve-se numa conspiração no
sentido de tomar a coroa. Casado desde 1235 com Matilde, condessa de
Bolonha, também não tinha herdeiros e, por isso, em 1253 casa-se
com D. Beatriz, filha de D. Afonso X, de apenas 9 anos. Ora, como
Matilde de Bolonha só morreu em 1258, "o Papa não podia
abençoar um rei bígamo".
É já do outro lado
da Avenida, no Largo da Anunciada, junto à Igreja de São José, que
chega um escândalo envolvendo a igreja. Aqui a protagonista é Soror
Maria de Visitação de Menezes, que nos pulsos e nas mãos forjou
chagas, com a ajuda involuntária do pintor espanhol Fernão Gomes
que na altura estava a trabalhar no Convento da Anunciada. Com a
Infanta D. Maria, filha de D. Manuel I, a ser enganada por esta
religiosa que visitava, bem como Filipe II, "que também
acreditava na veracidade das chagas", é fácil perceber que
este caso tenha alimentado muita literatura escandalosa e proibida.
Literatura essa que
volta a ser referida já no regresso à Avenida da Liberdade, junto
ao busto do escritor e político Pinheiro Chagas (1842-1895), amigo
do escritor e jornalista Alfredo Gallis (1859--1910), que se tornou
bastante popular com os folhetins e romances plenos de referências
sensuais.
Uns passos mais à
frente, nova paragem frente ao Condes, hoje o Hard Rock Cafe Lisboa.
Um regresso à década de 70 do século XVIII para falar da atriz
italiana Anna Zamperini, que atuou no teatro que aí existia na
altura, e o desassossego que gerou na sociedade de então a sua
relação com o padre Manoel de Macedo e com o filho do Marquês de
Pombal, então presidente do Senado da Câmara de Lisboa. Conta
Mónica Queiroz que, para garantir meios financeiros para o teatro (e
para a sua sua amada), Henrique José de Carvalho e Melo convocou os
comerciantes mais importantes da cidade e, com uma sala iluminada por
200 velas, fez entrar Anna Zamperini. A encenação foi convincente.
De costas voltadas
para o Condes, o itinerário regressa aos primeiros anos do século
XX com passagem pelo agora Palácio Foz, que, em 1908, era "o
melhor cabaret dancing de Lisboa, com sessões de striptease".
"Com uma porta principal e outra secreta, com salas privadas,
era uma casa de luxo, e para aí se entrar era preciso ter um cartão;
era de grande prestígio social conseguir esse cartão", revela.
Por entre outras
histórias que vai desfiando, Mónica Queiroz encaminha o grupo para
as Portas de Santo Antão, com entrada na atual Casa do Alentejo, o
primeiro casino da capital, inaugurado em 1918 com o nome de Majestic
Club. O empresário Júlio César Resende "chama uma equipa de
decoradores" e o seiscentista Palácio Alverca é renovado em
estilo neomourisco. "Aqui entramos nas Mil e Uma Noites, onde se
faziam e desfaziam fortunas numa noite", contextualiza. No
primeiro andar, um palco divide o salão do restaurante e a sala de
jogo, ambas decoradas com sensuais figuras femininas, e por onde
circulavam "as papillons que tinham como missão manter os
homens a beber e a jogar, a gastar dinheiro".
Após uma passagem
pelo Rossio - onde Mónica tanto conta histórias do tempo da
expansão em que o exotismo vindo das terras exploradas pelo
portugueses ia espalhando o espanto durante o reinado de D. Manuel I
como lê uma das poesias eróticas que notabilizaram Bocage
(1765-1805) -, o itinerário termina no início da Rua do Carmo.
Pretexto? O Hotel Europa, depois Armazéns do Chiado, onde entre 1874
e 1876 se instalou Madame Rattazzi, descendente da família de
Napoleão Bonaparte, que, depois de regressar a Paris, escreveu o
livro Portugal de Relance, no qual faz um retrato da sociedade
portuguesa e, mais do que isso, denuncia esquemas de corrupção
relacionados com lotaria e investimentos na bolsa. As denúncias,
vindas de uma estrangeira, não foram bem-vistas e valeram uma
caricatura de Bordalo Pinheiro, com a qual Mónica termina este
itinerário - "um dos vários possíveis" - à Lisboa
Escandalo
Sem comentários:
Enviar um comentário