Lisboa:
Queixa à justiça tenta travar projecto de Souto de Moura para a
Praça das Flores
Signatários
de uma petição pedem a Fernando Medina que a câmara municipal
"coloque o interesse público acima dos interesses privados"
e questionam a "objectividade" da aplicação do Plano
Director Municipal quando os arquitectos são famosos.
JOÃO PEDRO PINCHA
21 de Fevereiro de 2017, 8:12
Uma lisboeta decidiu
lançar uma petição online para tentar travar a demolição de um
prédio na Praça das Flores, entre a Rua de São Bento e o Príncipe
Real, para onde está previsto um edifício projectado por Souto de
Moura. Além disso, Mariana Villas-Boas já enviou queixas ao
Ministério Público, ao Provedor de Justiça e à Ordem dos
Arquitectos por considerar que a Câmara Municipal de Lisboa está a
violar o Plano Director Municipal (PDM).
A aprovação do
projecto de Souto de Moura – cinco pisos com fachada em ferro,
vidro e alumínio – não foi consensual entre os serviços da
câmara, tal como o PÚBLICO noticiou há um ano. Ao contrário do
que sustenta o projectista na memória descritiva, os técnicos do
Departamento de Projectos Estruturantes consideraram que a proposta
não tem “qualquer relação com a linguagem arquitectónica dos
edifícios confinantes” e que o prédio a demolir “possui
características arquitectónicas com relevância”. Esse não foi,
no entanto, o entendimento do director municipal do Urbanismo e do
vereador com o pelouro, Manuel Salgado.
Na petição,
apoiada pelo Fórum Cidadania Lisboa, os signatários afirmam que a
demolição do edifício existente constitui uma “perda de
identidade” da zona, que é “uma das praças mais emblemáticas
da cidade”. Acrescentam que o projecto de Souto de Moura “prejudica
fortemente a imagem da Praça das Flores” e pedem ao presidente da
câmara, Fernando Medina, que “coloque o interesse público acima
dos interesses privados”.
A petição também
lança suspeitas sobre a “objectividade de aplicação do PDM”
por parte da autarquia, ao referir que “entre a lista de
projectistas dos novos edifícios a construir implicando demolições
que dificilmente se enquadram na lei é notória a preponderância de
arquitectos de renome”.
A autora da petição
e das queixas, Mariana Villas-Boas, não tem dúvidas. Esta obra,
“sendo assinada por qualquer outro arquitecto, não seria permitida
pela câmara municipal”, diz ao PÚBLICO. A lisboeta, que não mora
longe da Praça das Flores e por lá passa grande parte dos dias,
diz-se incrédula. “Eu não quero ver o cenário encantador em que
vivo ser destruído por motivos que não se entendem bem.”
Por isso mesmo
enviou queixas a Maria José Morgado, procuradora-geral distrital de
Lisboa, a Luís Vassalo Rosa, Provedor da Arquitectura, e a José de
Faria Costa, Provedor de Justiça. A todos pede que se pronunciem
sobre este caso concreto, mas requer também que “sejam
investigados os processos” que “têm vindo a lesar o património
e a identidade da cidade”.
“Como é que é
possível que um PDM se aplique com rigor a uns, aos cidadãos
anónimos, e a outros, os galardoados, tudo é permitido?”,
questiona Mariana Villas-Boas, que acusa a câmara de “agir em
perfeita desarmonia” com o disposto no artigo 45º do PDM.
Esse artigo é o que
estabelece as condicionantes para que uma demolição seja aprovada.
Tal operação admite-se, entre outros casos, em “situações de
ruína iminente” e “quando os edifícios existentes não
constituam elementos com interesse urbanístico, arquitectónico ou
cultural” e “o projecto apresentado para a sua substituição
contribua para a valorização arquitectónica, urbanística e
ambiental da área”.
Ora, para Mariana
Villas-Boas, as normas não estão a ser cumpridas e “num Estado de
direito isso não pode acontecer”. A cidadã admite que talvez
tenha agido um pouco tarde para evitar o derrubamento do prédio na
Praça das Flores, mas acredita que a petição e as queixas ajudam a
criar consciência sobre o assunto. E espera que sirvam para evitar
situações semelhantes no futuro.
O director municipal
do Urbanismo justificou a aprovação do projecto, em Julho de 2015,
da seguinte forma: “A arquitectura, como qualquer das outras artes,
tem esta espantosa característica de, perante uma intervenção,
podermos ter vários olhares e todos eles válidos.”
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A arrogância dos
“arquitectos famosos” sobrepondo-se a tudo e a todos os valores é
uma velha tradição em Portugal. Como ilustração revisitem este
artigo da minha autoria no Público datado de 2001. António Sérgio
Rosa de Carvalho / OVOODOCORVO
Arquitectos,
património e a síndroma criadora
ANTÓNIO SÉRGIO
ROSA DE CARVALHO 27/11/2001 –
Foi-nos anunciado
que, no próximo dia 29 de Novembro, irá tomar lugar no Laboratório
Nacional de Engenharia Civil um encontro que pretende discutir o
futuro da Baixa como conjunto patrimonial, eventualmente propor a sua
classificação como Património Mundial e sensibilizar a opinião
pública.Simultaneamente, fomos também confrontados com uma
surpreendente proposta de arquitectos e engenheiros para cobrir a
Baixa com uma estrutura retráctil. Será esta a melhor maneira de
sensibilizar a opinião pública para o imperativo de uma recuperação
da Baixa à altura da sua importância histórica e da urgência do
seu repovoamento?Francamente, depois do programa de valorização de
Lisboa Valis e do elevador do castelo, já nada nos surpreende. Mas
pensávamos que os arquitectos e os engenheiros se tinham deixado
destas coisas...Talvez a próxima proposta seja a concretização da
utópica cúpula geodésica de Buckminster Fuller, mas agora cobrindo
Óbidos, tipo campânula transparente a envolver bolo em confeitaria
Pompadour.Tudo isto é ilustrativo da confusão que reina em terras
lusas no que respeita às definições delimitadoras do que é um
arquitecto de restauro e do que é um arquitecto criador. Dos limites
impostos pela pertença colectiva do património arquitectónico,
como teatro de memória, à síndroma criadora do arquitecto.É
preciso dividir as responsabilidades. Uma parte da culpa reside nos
arquitectos. Outra parte nas instituições oficiais de defesa do
património, exercendo ou não a sua responsabilidade disciplinadora.
Uma outra parte no sistema de ensino, onde a consciencialização
histórica dos futuros arquitectos não é feita por historiadores de
arquitectura (licenciados na perspectiva de Letras e, portanto, não
sofrendo da síndroma criadora), mas por arquitectos subjectivamente
autodidactas nas áreas históricas. Nos países do Norte da Europa,
o ensino da História de Arquitectura é exercido por historiadores
(de arquitectura). As outras áreas - projecto, estruturas - por
arquitectos, engenheiros. Um arquitecto de restauro é formado
exclusivamente com uma especialização nesse sentido, e geralmente
só faz restauro. É detentor de um código que aplica com rigor
ético.Em Portugal, a XVII Exposição Europeia deixou-nos com um
festival de intervenções ambíguas. A Casa dos Bicos foi aumentada,
baseando-se correctamente nas fontes iconográficas posteriores à
época, mas não sem se ter feito um "abrilhantamento criativo"
das janelas, num álibi "patrimonialmente correcto", mas
que esconde atrás do argumento da Carta de Veneza uma síndroma
criadora. Isto para não falar da fachada das traseiras, que
apresenta a qualidade de uma agência bancária de província, ou do
interior, "pioneiro" de simbolismos e dinâmicas
protodesconstrutivas. Seguiram-se as irresponsáveis coberturas dos
Jerónimos e da Torre de Belém.Para não nos alargarmos, ficaremos
por um último exemplo: a própria Casa dos Arquitectos, templo ou
cabana primitiva de exemplos e virtudes, emanando referências
didácticas. Isto é, a transformação dos Banhos de S. Paulo em
sede da ordem. Está bem, não se tratava propriamente das Termas de
Caracalla, mas apenas de um modesto - mas raro - exemplo do
neoclassicismo em Portugal. O "restauro", ou recuperação,
levou à total destruição do interior do edifício e à total
alienação do exterior. E eu que pensava que um pedimento era uma
referência de virtudes cívicas e um arquétipo tectónico... afinal
é uma moldura para espelhos de barbear. Ou será detentor de um
simbolismo mais profundo, dirigido à memória das manipulações
científicas e militares de Arquimedes ? Andávamos preocupados pelo
misterioso caso da Quinta da Bacalhoa, que, na sua gravidade, só
pode ser comparado à destruição de uma parte da Torre de Belém.
Mas tranquilizaram-nos pela atitude firme no golfe das Amoreiras.
Andávamos preocupados por nos sentimos secundarizados, desconvidados
ou mesmo ignorados na Europa. Afinal, podemos consolar-nos com o
reconhecimento da nossa criatividade única.Mal acabámos de acordar
para o verdadeiro pesadelo, ao reconhecermos que os nossos centros
históricos constituem o último reduto de resistência à destruição
e ao caos que nos rodeiam, e já estamos a propor uma "Manhattan"
de Cacilhas. Ainda não definimos a tal filosofia global, coerente,
unificada e rigorosa para a intervenção na Baixa, e já estamos a
propor coberturas surrealistas. Perante o desafio do caos urbanístico
e das inqualificáveis periferias, verdadeiras "bombas-relógio",
um programa de tertúlias resolveu convidar ilustres
participantes.Num rasgo de criatividade, ilustrando uma leviandade
pós-moderna própria daqueles que usufruem do dom da graça todos os
dias, um dos seus representantes deixou-nos com uma conclusão
profunda e uma imagem inspiradora. Referindo-se à superioridade das
nossas cidades sobre as "civitas" do Norte da Europa, que
estão prisioneiras e sofrem dos horrores da civilização, rematou:
"As nossas são mais rascas, mais ordinárias, mais mulatas."
Palavras para quê ? É um artista português.
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