A
“gasosa” das elites portuguesas
Nós
andámos décadas a alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o
povo tivesse sequer reparado.
JOÃO MIGUEL TAVARES
28 de Fevereiro de
2017, 7:29
Os angolanos chamam
“gasosa” tanto às bebidas gaseificadas como aos subornos. Se um
polícia o mandar parar em Luanda por qualquer razão, ainda que
absurda, é quase certo que vai ter de pagar “gasosa”. Se
precisar de um visto urgente, tem de pagar “gasosa”. E sempre que
exista qualquer participação num negócio lucrativo, os angolanos,
modo geral, querem “gasosa” pelo esforço. Claro que nós,
portugueses impolutos, tendemos a olhar para isto muito sobranceiros,
porque não temos de pagar “gasosa” à polícia nem aos
funcionários das embaixadas. É verdade, e ainda bem – ao nível
da pequena corrupção somos, de facto, um país muito mais sério e
decente. Mas será que podemos dizer o mesmo da grande corrupção?
Tenho cada vez mais dúvidas. Quando olho para as elites económicas
e financeiras dos dois países, o que vejo é muita “gasosa” a
borbulhar tanto em Angola como em Portugal.
Se há algum ponto
em que me identifico com as queixas recorrentes de Luanda, sempre que
um alto quadro seu é investigado em Portugal, é esse: também a mim
me irrita a sobranceria de uma virtude inexistente. Perante as graves
suspeitas que incidem sobre o vice-presidente Manuel Vicente lá
tivemos de levar com os costumeiros protestos oficiosos e malcriados
do regime, via Jornal de Angola. Estamos habituados. Contudo, estou
convencido de que aquilo que está subjacente a tais insultos é a
convicção por parte da elite angolana de que as práticas da elite
portuguesa em nada diferem das suas – por cada tampa de "gasosa"
que se abre em Luanda há uma garganta que se abre em Lisboa. A única
verdadeira diferença é que nós somos mais dissimulados, e não
chamamos “gasosa” à “gasosa”. A corrupção não está
instituída em toda a sociedade. Está escondida no seu topo.
Basta olhar para a
lista actualizada de arguidos da Operação Marquês. Há dez anos,
aqueles eram os homens mais poderosos de Portugal. A nossa mais
destacada elite económica. Os jornais faziam vénias à passagem de
Zeinal Bava, de Henrique Granadeiro ou de Ricardo Salgado. Havia
entrevistas, perfis de sucesso, conferências, influência e a
habitual sabujice. Nós engolimos explicações que jamais deveriam
ter sido aceites por uma sociedade saudável, atenta e minimamente
exigente. Salgado recebia 14 milhões de um cliente do BES, chamava a
isso uma “liberalidade”, juntava pareceres de iminentes
professores catedráticos a justificar que uma “liberalidade” era
coisa perfeitamente aceitável – e o pessoal encolhia os ombros.
Bava recebia 18,5 milhões do saco azul do BES, só os devolvia
depois de começar a ser investigado, de seguida argumentava
tratar-se um valor que lhe havia sido “confiado a título
fiduciário, consignado a uma finalidade legítima a concretizar em
momento futuro” – e a pátria não queria saber. Enfiavam-nos
dois garfos nos olhos, diziam que se tratava de uma operação às
cataratas, e no fim ainda pagávamos a conta.
Não admira que os
angolanos, que conhecem tão bem o senhor Bataglia, o senhor Salgado
ou o senhor Sócrates arranquem os cabelos de raiva quando assistem à
velha pátria lusitana de dedinho em riste, a perorar sobre a
lastimável cleptocracia angolana. Não é que ela não seja
lastimável – com certeza que é. Mas nós andámos décadas a
alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o povo tivesse sequer
reparado. Não somos melhores. Somos apenas mais hipócritas e mais
reservados. A “gasosa” é a bebida favorita das nossas elites –
só que é preciso chegar lá para nos abrirem a porta do bar.
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