Caso
CGD: os três problemas do "erro de percepção mútuo"
Cruzando
todos os dados públicos, entre documentos, declarações,
comunicados de imprensa e audições, subsistem contradições de
parte a parte na história das condições dadas a António Domingues
para este ser presidente da CGD.
Liliana Valente
LILIANA VALENTE 18
de Fevereiro de 2017, 7:30
Havia ou não acordo
com António Domingues para isentar a administração da Caixa da
entrega das declarações de patrimínio no TC? Esta semana, quatro
meses depois da polémica começar, o ministro das Finanças veio
assumir um “erro de percepção mútuo”. E soube-se que o
Presidente da República teve um papel activo neste processo, ainda
antes da promulgação do Estatuto do Gestor Público, em junho
passado.
À luz das novas
afirmações, o PÚBLICO revisitou todos os dados públicos sobre o
assunto. Cruzando as declarações dos responsáveis, os comunicados
de imprensa, as audições no Parlamento e ainda os documentos que
António Domingues fez chegar à Assembleia da República, tiram-se
várias conclusões e permanecem dúvidas: não está escrito em
nenhum documento conhecido, nem de Domingues nem do Ministério, o
pedido ou o compromisso específico sobre a isenção da entrega de
declarações ao TC; mas esse compromisso foi assumido em vários
momentos pelo Governo (sempre nas Finanças). Sobram também as
contradições entre os vários intervenientes do Governo e mudanças
de discurso em quatro fases diferentes.
No início era a
defesa da medida
Mário Centeno e
Mourinho Félix negociaram com António Domingues as condições para
este aceitar o cargo entre Março e Junho. Do resultado destas
conversas e das trocas de documentos há duas versões: Centeno diz
agora que o acordo não incluía a excepção, Domingues que sim. Os
factos mostram que esse compromisso nunca foi posto por escrito nas
cartas e emails enviados por Domingues, mas foi, num primeiro momento
assumido e até defendido pelas Finanças.
No dia 23 de
Outubro, Marques Mendes lança a dúvida se tinha ou não tinha sido
um lapso que a alteração legislativa para excluir os
administradores da CGD do Estatuto do Gestor Público (EGP) tivesse
como consequência a isenção da entrega de declarações. E a
primeira resposta surge no dia 25 pelo Ministério das Finanças, em
resposta a perguntas de jornalistas, onde assume que não só “não
foi um lapso”, como acrescentava que esse “escrutínio já era
feito” e que essa informação era revelada ao accionista, neste
caso, o Estado.
É preciso referir
que estas declarações de património são as únicas que são
públicas. A tese defendida então pelas Finanças era de que a CGD
já estava sujeita a um conjunto de obrigações “mais profundo”,
como as obrigações junto do BCE, e que “não faz sentido estar
sujeita às duas coisas”. A parte do escrutínio público seria
também ela rejeitada pelos responsáveis do Governo.
No dia seguinte, o
secretário de Estado diz ao Diário de Notícias que “não haverá
acesso do público em geral às declarações de rendimentos. Será
um processo entre o gestor e o regulador”. E a tese foi de novo
corroborada pelo ministro, no dia 27 de Outubro. Na primeira vez em
que fala da polémica, Centeno diz que “o accionista Estado tem
conhecimento perfeito da matéria que está em cima da mesa, o
supervisor também. Os portugueses têm-no [o escrutínio] por via do
Governo, do Estado, que os representa nesta dimensão”.
Aqui começa a
primeira contradição. Se o assunto não tinha sido fruto de um
compromisso, porque o assumiu o Ministério, o secretário de Estado
e o ministro? E por que defenderam que era suficiente o controlo do
accionista Estado? Se o assunto tinha sido negociado, por que
Domingues não o colocou por escrito nas mais de 100 páginas com
alterações legislativas e explicativas do que ficou acordado que
trocou com o Ministério?
A decisão é do TC
e dos accionistas
António Costa fala
no mesmo dia que Mário Centeno, mas nem por isso dizem a mesma
coisa. Aliás, durante dois dias houve notícias que davam conta das
contradições entre o que dizia o PS (pela voz de Carlos César) e o
que dizia o ministro. E o que disse o primeiro-ministro? Sem dar uma
certeza sobre a necessidade de entrega das declarações, remeteu uma
decisão para a interpretação a fixar pelo TC – “Compete ao
Tribunal Constitucional apreciar se são devidas” – e para os
próprios administradores da CGD. E termina dizendo: "Se há
valores legais a cumprir, há que cumpri-los”.
É esta leitura de
Costa que prevalece, nesta fase, até às notificações do TC e ao
comunicado do Presidente da República sobre o tema. Aliás, a
interpretação que Marcelo Rebelo de Sousa faz é que “a obrigação
de declaração vincula a administração da CGD” , mas que cabe ao
TC dizer qual a sua interpretação. E ainda acrescenta: se esta for
contrária, então podem os deputados “clarificar o sentido legal
também por via legislativa”.
Novas dúvidas. Se
não havia acordo, porque não o negou logo António Costa? E se a
interpretação do Governo era a de que a lei 4/83, a que obriga à
entrega, permanecia em vigor mesmo apesar da alteração ao EGP,
porque não o assumiu e decidiu esperar pelo TC? Já quanto ao
Presidente, se este era um assunto que queria ver garantido, porque
só dá a sua interpretação sobre o tema no comunicado a 4 de
Novembro? Se a matéria foi discutida aquando da promulgação,
porque não ficou explícito na sua nota (ou no documento) que a
obrigação existia?
Caso encerrado,
parte 1
“O TC decidiu,
está decidido”, diz o Presidente ao PÚBLICO depois de os juízes
começarem a notificar os gestores para a entrega das declarações,
fixando a interpretação que a alteração ao EGP não afectava a
vigência da lei 4/83. No mesmo dia, nota-se que a relação entre o
primeiro-ministro e Domingues já não existe. Diz Costa que “ninguém
está acima da lei”.
Nestes mesmos dias,
Domingues faz chegar uma carta ao ministro das Finanças onde fala
pela primeira vez do compromisso sobre a isenção, dizendo que “foi
uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a
gestão da CGD”. Nessa mesma carta, só conhecida a semana passada,
diz que respeitará a lei, mas que haverá outros membros que não
aceitarão as condições e apresentarão a demissão. Na resposta,
Centeno não fala sobre o compromisso, nem para o desmentir nem para
o confirmar, diz apenas que “sendo uma decisão do foro individual”
nada tem “a dizer sobre isso”.
Não foram só os
restantes administradores a sair. Domingues bate com a porta a 27 de
Novembro, ao fim de cinco semanas de polémica e é a partir da saída
que o tabuleiro vira outra vez.
Os emails, as cartas
e os SMS
A intenção de
Domingues era a de não entregar as declarações. Disse-o com todas
as letras na audição de 4 de Janeiro. Porque não queria ver as
informações “espalhadas por tablóides” e defendia que “uma
coisa são as declarações de património que ficam depositadas na
entidade fiscalizadora, outra coisa é irem para os jornais”. É
nesta audição que Domingues admite também que “o Governo deixou
de ter condições políticas” para manter as condições.
Na parte legal,
explicou que a interpretação que fazia era que essa excepção
“decorria da não aplicação do estatuto” do Gestor Público.
Ora, foi essa foi sempre uma dúvida que esteve em cima da mesa: a
diferença entre a interpretação daqueles que achavam que retirando
a CGD do EGP deixaria de se aplicar a lei de 83 e aqueles que não,
como viria a ser fixado pelo TC.
Centeno só volta a
falar na célebre conferência de imprensa desta segunda-feira, em
que reafirmou que não havia acordo para aquela excepção e que pode
ter havido o tal “erro de percepção mútuo” sobre o combinado.
Explica também o comunicado das Finanças dizendo que a questão do
lapso se devia a um "conjunto muito vasto de obrigações
declarativas" que já era cumprido.
Restam outras
interrogações: havendo dúvidas legais sobre a interpretação,
porque não ficaram asseguradas nas negociações por Domingues? E se
o Governo considerava que havia essa dúvida, mas não queria mesmo
isentar os gestores, porque não o fez saber quando a polémica
estalou e em vez disso, na primeira reacção, a defende?
De
que tem medo o PS?
António
Costa não é, felizmente, Sócrates, nem na seriedade, nem no modo
de fazer política, mas este seu nível de argumentação, é
igualzinho àquele que tivemos de suportar entre 2005 e 2011.
João Miguel Tavares
18 de Fevereiro de
2017, 7:55
Confrontado com o
anúncio da constituição de uma nova comissão de inquérito à
Caixa Geral de Depósitos, desta vez abarcando o período da
administração de António Domingues, o Partido Socialista respondeu
de imediato com um ataque preventivo. Carlos César afirmou que o PS
não irá aceitar diligências numa futura comissão que desrespeitem
“o que diz a Constituição”, pois “o cumprimento da lei não
está confinado às conveniências políticas”. Adoro quando os
políticos enchem a boca de grandes princípios apenas para
justificar intenções rasteiras. Traduzindo por miúdos, aquilo que
César quer dizer é apenas isto: o PS vai fazer tudo o que estiver
ao seu alcance para que nunca seja conhecida a troca de SMS entre
António Domingues e Mário Centeno.
Ora, até mesmo para
quem, como eu, acredita que o que aconteceu na Caixa foi uma série
de equívocos que acabaram por tomar uma dimensão catastrófica, e
que no início deste processo ninguém estava realmente
mal-intencionado, este fechar de linhas do PS em torno de Centeno (e
de Costa? e de Marcelo?), com o auxílio do Bloco e do PCP, querendo
impedir a todo o custo um direito de escrutínio e vigilância que é
obviamente uma das tarefas fulcrais do Parlamento, já começa a
pisar a linha vermelha daquilo que é democraticamente aceitável.
Como ontem lembrou o CDS, ainda há uma semana o PS garantia, todo
impante, que as acusações que recaíam sobre o ministro das
Finanças eram uma “montanha que pariu um rato”. Há dois dias,
quando PSD e CDS viram bloqueada a sua tentativa de aceder aos SMS,
com o argumento de que a actual comissão de inquérito não se
debruçava sobre a administração de António Domingues, Carlos
César convidou a direita a criar uma nova comissão potestativa,
para averiguar esse período. Agora que essa comissão é anunciada,
regressa o argumento de que o acesso a comunicações privadas é
inconstitucional.
Comunicações
privadas? Mas quais comunicações privadas? Trocas de SMS sobre
assuntos de Estado, entre o presidente de um banco público e o
ministro das Finanças são comunicações privadas porquê? Por
serem feitas por um telemóvel muito provavelmente pago com os nossos
impostos? E por mail já não são privadas? Num smartphone de última
geração, qual é realmente a diferença entre um mail e um SMS? Ou
ainda se exige papel de 25 linhas, carta registada e o timbre do
Ministério das Finanças para uma comunicação ser declarada como
oficial? Esta discussão é patética. Só falta o PS invocar
Marshall McLuhan e fazer cartazes a anunciar: “O meio é a
mensagem”. Sim, o PSD e o CDS agarram-se à Caixa por politiquice,
porque encontraram uma brecha na muralha governativa fácil de
atacar, ainda que o assunto tenha pouca relevância para o futuro do
país. Chama-se a isso “estar na oposição”.
Mas aquilo que o PS
está a fazer chama-se obstrução política, uma espécie de
filibuster tuga com o único objectivo de impedir que o Parlamento e
os portugueses saibam aquilo que têm o direito de saber. Mais. Tendo
em conta os seis anos de José Sócrates, e a opção de António
Costa em reintegrar vários dos seus ministros, o PS tem particulares
responsabilidades em questões de transparência. António Costa não
é, felizmente, Sócrates, nem na seriedade, nem no modo de fazer
política. Mas esta atitude do PS, e este seu nível de argumentação,
é igualzinho àquele que tivemos de suportar entre 2005 e 2011. Mais
disso não, muito obrigado. Já chega. Quanto mais o PS quer
esconder, mais nós queremos saber.
O
azar dos Távoras
No
lodo já conhecido há dois factos que ferem os patamares de
exigência ética a que obrigam a ocupação de cargos governativos.
SÃO JOSÉ ALMEIDA
18 de Fevereiro de
2017, 7:43
Pode dizer-se que
António Costa foi esta semana atingido pelo azar dos Távoras. A
semana tinha tudo para a propaganda do Governo ser feita pelo
primeiro-ministro e ao seu lado brilharem o ministro das Finanças,
Mário Centeno, e o ministro adjunto Eduardo Cabrita. O Conselho de
Ministros aprovou a lei-quadro da transferência de competências
para as autarquias, dando início ao processo da descentralização,
e até já é sabido que o PSD está disponível para negociar. No
Parlamento, passou à especialidade a lei que introduz quotas de
género nas administrações das empresas públicas e das cotadas em
bolsa.
Os números da
economia ultrapassam as piores expectativas. Em Portugal foi
divulgado que o crescimento da economia em 2016 é de 1,4% e
ultrapassa os 1,2% previstos pelo Governo e os 1,3% estimados pela
Comissão Europeia. E a Comissão oficializou que o défice em 2016
será de 2,3%, prevendo que em 2017 possa ser de 2% e em 2018 de
2,2%, confirmando assim que Portugal está na pole position para sair
do procedimento por défice excessivo.
Mas eis que o azar
dos Távoras se abateu sobre António Costa. O lodo que envolve o
processo de nomeação de António Domingues para a presidência da
CGD, que tem sido despejado a baldes cheios, sujou o Governo de tal
forma que não há resultados positivos que a propaganda política
possa fazer resplandecer, por maior que seja o domínio de Costa
nesta arte.
E se a história
ainda está para provar a veracidade do suposto plano para matar o
rei D. José I, que esteve na base da acusação do Marquês de
Pombal à família do putativo candidato à coroa, o duque de Aveiro
e marquês de Torres Novas, e à família do marquês de Távora, no
caso do primeiro--ministro parecem não restar dúvidas de que o seu
ministro das Finanças não esteve à altura das exigências éticas
do seu cargo. Nada disso resultará na saída de Centeno do Governo,
até porque, se tal acontecesse, o projecto de governação ficaria
ferido de morte, como já escrevi. Mas isso não diminui a gravidade
das atitudes.
No lodo já
conhecido há dois factos relacionados com a actuação de Centeno e
de Costa que ferem os patamares de exigência ética a que obriga a
ocupação de cargos governativos: o envolvimento claro da figura do
Presidente da República no processo e a aceitação de que um
escritório de advogados costurasse os conteúdos de uma lei à
medida de serem vestidos por Domingues. Isto além, claro, da
gravidade da questão de fundo: querer ludibriar uma regra de
transparência democrática ao evitar entregar declarações de
interesses ao Tribunal Constitucional.
É verdade que, pelo
menos desde o Governo de Durão Barroso, é prática cada vez mais
comum haver recurso a escritórios de advogados para participarem em
processos legislativos. É, aliás, para tentar diminuir esse
fenómeno que o primeiro-ministro anunciou a criação do Centro de
Competência Jurídica, uma medida que está relacionada com o
importante processo de simplificação legislativa e modernização
administrativa conduzido pela ministra Maria Manuel Leitão Marques.
Mas a conivência de Costa e Centeno com uma lei assim tão de
alfaiate, feita exactamente à medida de quem a veste e tentando
ludibriar a legislação anterior, atinge níveis de falta de ética
de Estado que indigna.
Igualmente grave é
a forma como o Presidente surge neste processo, citado em sms
trocados entre Centeno e Domingues. Foi usado como argumento de
negociação e envolvido como decisor numa fase do processo que não
lhe competia. O que transparece sobre o envolvimento de Marcelo
Rebelo de Sousa no "negócio político" com Domingues choca
com qualquer critério sobre qual é a ética de quem ocupa funções
de Estado e põe em causa o saudável funcionamento entre Presidente
e Governo.
No meio do lodo, foi
perceptível a facilidade do PSD e do CDS para fazerem barulho e a
inabilidade para se centrarem no que realmente importa. Já agora que
falamos da CGD, quando é que o país vai conhecer em pormenor o
plano de recapitalização e a real situação do banco público?
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