sábado, 18 de fevereiro de 2017

Polémica da Caixa: Feitiço virou-se contra o feiticeiro, dizem os juízes do Constitucional / Caso CGD: os três problemas do "erro de percepção mútuo" / De que tem medo o PS? / O azar dos Távoras

Polémica da Caixa: Feitiço virou-se contra o feiticeiro, dizem os juízes do Constitucional
Margarida Peixoto
18-2-2017

Afinal, a alteração ao Estatuto do Gestor Público que os ex-administradores da Caixa invocam ter tido como objetivo dispensar a entrega das declarações ao TC ainda reforçou essa obrigatoriedade.

Os juízes do Tribunal Constitucional analisaram a alteração do Estatuto do Gestor Público à lupa. Mas não encontraram “qualquer razão” para supor que o objetivo do Governo fosse dispensar a administração da Caixa Geral de Depósitos da entrega das declarações de rendimentos e património. Mais: a modificação feita pelo atual Executivo até contribui para reforçar a conclusão de que as declarações são devidas.

Ironia das ironias: António Domingues e a sua equipa invocaram como prova — de que o Governo os queria dispensar da entrega das declarações de rendimentos e património — a alteração introduzida ao Estatuto do Gestor Público. Mário Centeno, ministro das Finanças, está a ser acusado de ter permitido que fosse o escritório de advogados que trabalhava com António Domingues a desenhar aquela alteração à lei. Mas esta modificação teve, afinal, precisamente o resultado oposto, concluíram os juízes. Não só não serve esse propósito, como não se vislumbra como poderia ter servido e como ainda reforça a conclusão de que a entrega é obrigatória.

A análise resulta da leitura do acórdão do Tribunal Constitucional, publicado esta sexta-feira, que decide pela obrigatoriedade da entrega e determina que os gestores voltem a ser notificados para cumprir aquela obrigação legal.

Mas vamos por partes. Primeiro, importa compreender os argumentos invocados pelos oito gestores (entre os quais o próprio António Domingues) que confrontaram o Tribunal Constitucional.

Quais são os argumentos dos gestores?
Os gestores frisam que a obrigação de declarar rendimentos e património ao Tribunal Constitucional constitui uma restrição de “direitos, liberdades e garantias”, nomeadamente no que diz respeito à “reserva da intimidade da vida privada e familiar”. E notam que isso pode abrir a porta à utilização abusiva ou contrária à dignidade humana de informações relativas às pessoas e famílias.

Por isso, defendem, essa limitação dos “direitos, liberdades e garantias” só deve ser imposta quando haja uma norma legal que o obrigue “de forma precisa e inequívoca”.

Ora, é a partir daqui que toda a argumentação é construída: para os gestores, não há nenhuma norma precisa e inequívoca sobre o assunto. Até porque, defendem, a expressão “gestor público” que consta da Lei nº 4/83 — que estabelece o regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos e equiparados — não se aplica aos gestores da Caixa porque estes “não são passíveis de qualificação como gestores públicos”.

"[Os gestores da Caixa] não são passíveis de qualificação como gestores públicos.”
Argumentação dos gestores da Caixa
Tribunal Constitucional - Acórdão nº 32/2017

Os administradores da Caixa argumentam que o conceito de gestor público é “tecnico-jurídico” e que é definido pelo Estatuto do Gestor Público (EGP). Ora, com a alteração que o Governo de António Costa introduziu ao EGP, os membros dos órgãos de administração da CGD deixaram de estar sujeitos a este Estatuto.

Do mesmo modo, a obrigação também não decorre do facto de serem “titulares de órgão de gestão de empresa participada pelo Estado” porque a CGD, argumentam, não é uma empresa participada pelo Estado, mas antes uma empresa pública.

Para corroborar todo o raciocínio, defendem que a alteração introduzida pelo Governo ao EGP “visou afastar a aplicação, aos membros dos órgãos de gestão das empresas públicas que sejam entidades públicas significativas, de qualquer estatuição dependente do preenchimento da factispécie conceptual do gestor público”. Traduzindo: teve como objetivo excecionar os gestores da Caixa da aplicação de tudo o que implica o Estatuto do Gestor Público. Se a leitura não for esta, defendem os gestores, estará a permitir “entrar pela janela aquilo a que se pretendeu fechar a porta”, avisam.

De caminho, aproveitam e rebatem desde já os argumentos que poderiam ser invocados para alegar uma inconstitucionalidade daquela alteração ao EGP. Segundo os gestores, esses argumentos poderiam ser o facto de esta disposição ter caráter individual, violar o princípio da igualdade e violar a reserva que é atribuída à Assembleia da República para definir as bases gerais das empresas públicas. Mas “nenhum deles teria cabimento”, lê-se no acórdão.

O que respondem os juízes?


A decisão dos juízes foi unânime. Só houve uma declaração de voto, mas para reforçar a conclusão do acórdão.
Paula Nunes / ECO
Primeiro, fazem questão de notar que não tiveram em conta o que diz o Orçamento do Estado para 2017 sobre a matéria. Lembra-se quando o BE se juntou ao PSD e ao CDS para incluir uma norma no OE2017, que tornasse clara a obrigação da entrega das declarações de rendimento e património por parte dos gestores da Caixa? Os juízes ignoraram essa disposição porque ela só entrou em vigor depois da administração liderada por António Domingues ter abandonado as suas funções.

Ou seja, mesmo que o BE e a direita não tivessem incluído aquela norma no Orçamento, os gestores estariam sempre obrigados a apresentar as declarações.

"[A alteração ao EGP] não só não altera o conceito de gestor público (...) como na verdade pressupõe esse conceito: é justamente por serem gestores públicos (...) que os destinatários do n.º 2 têm de ser denotados por características ou predicados que os distinguem dentro da classe geral dos gestores públicos.”
Tribunal Constitucional
Acórdão nº 32/2017

Mas e a alteração ao EGP não exclui os gestores dessa obrigação? Não, concluem os juízes. Antes pelo contrário: “Tal argumento confunde o conceito de gestor público com o âmbito de aplicação do EGP”, explica o acórdão. Aquela alteração ao EGP “não só não altera o conceito de gestor público (…) como na verdade pressupõe esse conceito: é justamente por serem gestores públicos (…) que os destinatários do n.º 2 têm de ser denotados por características ou predicados que os distinguem dentro da classe geral dos gestores públicos”, frisam os juízes.

"Os notificados são gestores públicos nos termos do Estatuto do Gestor Público em vigor.”
Tribunal Constitucional
Acórdão nº 32/2017

E explicam que a alteração feita pelo Governo de António Costa significa “simplesmente o seguinte: há uma espécie de gestor público — diferenciada por características específicas dentro do género gestor público — a que não se aplica o EGP”. Ou seja, “os notificados são gestores públicos nos termos do EGP em vigor. Mas gestores públicos que o legislador de 2016 quis colocar fora do alcance do EGP”, conclui o acórdão.

"É irrelevante, para o efeitos de transparência da Lei nº 4/83, se aos indivíduos em questão se aplica ou não o Estatuto do Gestor Público.”
Tribunal Constitucional
Acórdão nº 32/ 2017

Mas modificar o âmbito de aplicação deste Estatuto é irrelevante para o caso: “É irrelevante, para o efeitos de transparência da Lei nº 4/83, se aos indivíduos em questão se aplica ou não o EGP”, diz o acórdão. Os juízes lembram que o objetivo daquela lei é amplo já que “a obrigação de declarar o património, as atividades e funções privadas e os interesses particulares dos titulares de cargos públicos deriva da vontade de moralizar e melhorar a transparência da vida pública.” Por isso, a lei foi modelada em função “do levantamento dos casos em que os interesses privados podem afetar a atuação dos homens públicos.”

Os juízes defendem ainda que mesmo que o Governo tivesse tentado modificar o conceito de gestor público, “não se vê facilmente como semelhante conceito seria logicamente possível”. Isto porque ele teria de ser suficientemente abstrato para abranger todos os gestores públicos, mas ao mesmo tempo “não tão abstrato e extenso” que nele pudessem caber os gestores da Caixa.

"Acresce não haver qualquer razão para supor que o Decreto-Lei n.º 39/2016 procurou modificar este estado de coisas [isentar a gestão da Caixa da entrega de declarações].”
Tribunal Constitucional
Acórdão nº 32/2017

A isto acresce o facto de os juízes não terem encontrado “qualquer razão para supor” que o Governo quisesse mesmo eliminar a obrigação da entrega de declarações. “O que importa destacar (…) é que a finalidade da exceção à aplicação do EGP nada tem que ver com a sujeição dos administradores em questão aos deveres impostos pela Lei n.º 4/83”, decidem os juízes. E ainda sublinham que “manifestamente”, a alteração ao EGP foi “animada por outros desígnios”.

E o Ministério Público concorda com os juízes?

Sim. O acórdão do Palácio Ratton revela que o caso foi colocado perante o Ministério Público e dá conta do parecer do Procurador-geral Adjunto: “pronunciou-se no sentido de que os notificados devem ser considerados como gestores públicos.” Para o Ministério Público, a exceção atribuída pelo decreto-lei de Costa aos gestores da Caixa só vale para a aplicação dos Estatutos e não para a aplicação do regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos.

Caso CGD: os três problemas do "erro de percepção mútuo"
Cruzando todos os dados públicos, entre documentos, declarações, comunicados de imprensa e audições, subsistem contradições de parte a parte na história das condições dadas a António Domingues para este ser presidente da CGD.

Liliana Valente
LILIANA VALENTE 18 de Fevereiro de 2017, 7:30

Havia ou não acordo com António Domingues para isentar a administração da Caixa da entrega das declarações de patrimínio no TC? Esta semana, quatro meses depois da polémica começar, o ministro das Finanças veio assumir um “erro de percepção mútuo”. E soube-se que o Presidente da República teve um papel activo neste processo, ainda antes da promulgação do Estatuto do Gestor Público, em junho passado.

À luz das novas afirmações, o PÚBLICO revisitou todos os dados públicos sobre o assunto. Cruzando as declarações dos responsáveis, os comunicados de imprensa, as audições no Parlamento e ainda os documentos que António Domingues fez chegar à Assembleia da República, tiram-se várias conclusões e permanecem dúvidas: não está escrito em nenhum documento conhecido, nem de Domingues nem do Ministério, o pedido ou o compromisso específico sobre a isenção da entrega de declarações ao TC; mas esse compromisso foi assumido em vários momentos pelo Governo (sempre nas Finanças). Sobram também as contradições entre os vários intervenientes do Governo e mudanças de discurso em quatro fases diferentes.

No início era a defesa da medida
Mário Centeno e Mourinho Félix negociaram com António Domingues as condições para este aceitar o cargo entre Março e Junho. Do resultado destas conversas e das trocas de documentos há duas versões: Centeno diz agora que o acordo não incluía a excepção, Domingues que sim. Os factos mostram que esse compromisso nunca foi posto por escrito nas cartas e emails enviados por Domingues, mas foi, num primeiro momento assumido e até defendido pelas Finanças.

No dia 23 de Outubro, Marques Mendes lança a dúvida se tinha ou não tinha sido um lapso que a alteração legislativa para excluir os administradores da CGD do Estatuto do Gestor Público (EGP) tivesse como consequência a isenção da entrega de declarações. E a primeira resposta surge no dia 25 pelo Ministério das Finanças, em resposta a perguntas de jornalistas, onde assume que não só “não foi um lapso”, como acrescentava que esse “escrutínio já era feito” e que essa informação era revelada ao accionista, neste caso, o Estado.

É preciso referir que estas declarações de património são as únicas que são públicas. A tese defendida então pelas Finanças era de que a CGD já estava sujeita a um conjunto de obrigações “mais profundo”, como as obrigações junto do BCE, e que “não faz sentido estar sujeita às duas coisas”. A parte do escrutínio público seria também ela rejeitada pelos responsáveis do Governo.

No dia seguinte, o secretário de Estado diz ao Diário de Notícias que “não haverá acesso do público em geral às declarações de rendimentos. Será um processo entre o gestor e o regulador”. E a tese foi de novo corroborada pelo ministro, no dia 27 de Outubro. Na primeira vez em que fala da polémica, Centeno diz que “o accionista Estado tem conhecimento perfeito da matéria que está em cima da mesa, o supervisor também. Os portugueses têm-no [o escrutínio] por via do Governo, do Estado, que os representa nesta dimensão”.

Aqui começa a primeira contradição. Se o assunto não tinha sido fruto de um compromisso, porque o assumiu o Ministério, o secretário de Estado e o ministro? E por que defenderam que era suficiente o controlo do accionista Estado? Se o assunto tinha sido negociado, por que Domingues não o colocou por escrito nas mais de 100 páginas com alterações legislativas e explicativas do que ficou acordado que trocou com o Ministério?

A decisão é do TC e dos accionistas
António Costa fala no mesmo dia que Mário Centeno, mas nem por isso dizem a mesma coisa. Aliás, durante dois dias houve notícias que davam conta das contradições entre o que dizia o PS (pela voz de Carlos César) e o que dizia o ministro. E o que disse o primeiro-ministro? Sem dar uma certeza sobre a necessidade de entrega das declarações, remeteu uma decisão para a interpretação a fixar pelo TC – “Compete ao Tribunal Constitucional apreciar se são devidas” – e para os próprios administradores da CGD. E termina dizendo: "Se há valores legais a cumprir, há que cumpri-los”.

É esta leitura de Costa que prevalece, nesta fase, até às notificações do TC e ao comunicado do Presidente da República sobre o tema. Aliás, a interpretação que Marcelo Rebelo de Sousa faz é que “a obrigação de declaração vincula a administração da CGD” , mas que cabe ao TC dizer qual a sua interpretação. E ainda acrescenta: se esta for contrária, então podem os deputados “clarificar o sentido legal também por via legislativa”.

Novas dúvidas. Se não havia acordo, porque não o negou logo António Costa? E se a interpretação do Governo era a de que a lei 4/83, a que obriga à entrega, permanecia em vigor mesmo apesar da alteração ao EGP, porque não o assumiu e decidiu esperar pelo TC? Já quanto ao Presidente, se este era um assunto que queria ver garantido, porque só dá a sua interpretação sobre o tema no comunicado a 4 de Novembro? Se a matéria foi discutida aquando da promulgação, porque não ficou explícito na sua nota (ou no documento) que a obrigação existia?

Caso encerrado, parte 1
“O TC decidiu, está decidido”, diz o Presidente ao PÚBLICO depois de os juízes começarem a notificar os gestores para a entrega das declarações, fixando a interpretação que a alteração ao EGP não afectava a vigência da lei 4/83. No mesmo dia, nota-se que a relação entre o primeiro-ministro e Domingues já não existe. Diz Costa que “ninguém está acima da lei”.

Nestes mesmos dias, Domingues faz chegar uma carta ao ministro das Finanças onde fala pela primeira vez do compromisso sobre a isenção, dizendo que “foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD”. Nessa mesma carta, só conhecida a semana passada, diz que respeitará a lei, mas que haverá outros membros que não aceitarão as condições e apresentarão a demissão. Na resposta, Centeno não fala sobre o compromisso, nem para o desmentir nem para o confirmar, diz apenas que “sendo uma decisão do foro individual” nada tem “a dizer sobre isso”.

Não foram só os restantes administradores a sair. Domingues bate com a porta a 27 de Novembro, ao fim de cinco semanas de polémica e é a partir da saída que o tabuleiro vira outra vez.

Os emails, as cartas e os SMS
A intenção de Domingues era a de não entregar as declarações. Disse-o com todas as letras na audição de 4 de Janeiro. Porque não queria ver as informações “espalhadas por tablóides” e defendia que “uma coisa são as declarações de património que ficam depositadas na entidade fiscalizadora, outra coisa é irem para os jornais”. É nesta audição que Domingues admite também que “o Governo deixou de ter condições políticas” para manter as condições.

Na parte legal, explicou que a interpretação que fazia era que essa excepção “decorria da não aplicação do estatuto” do Gestor Público. Ora, foi essa foi sempre uma dúvida que esteve em cima da mesa: a diferença entre a interpretação daqueles que achavam que retirando a CGD do EGP deixaria de se aplicar a lei de 83 e aqueles que não, como viria a ser fixado pelo TC.

Centeno só volta a falar na célebre conferência de imprensa desta segunda-feira, em que reafirmou que não havia acordo para aquela excepção e que pode ter havido o tal “erro de percepção mútuo” sobre o combinado. Explica também o comunicado das Finanças dizendo que a questão do lapso se devia a um "conjunto muito vasto de obrigações declarativas" que já era cumprido.

Restam outras interrogações: havendo dúvidas legais sobre a interpretação, porque não ficaram asseguradas nas negociações por Domingues? E se o Governo considerava que havia essa dúvida, mas não queria mesmo isentar os gestores, porque não o fez saber quando a polémica estalou e em vez disso, na primeira reacção, a defende?


De que tem medo o PS?
António Costa não é, felizmente, Sócrates, nem na seriedade, nem no modo de fazer política, mas este seu nível de argumentação, é igualzinho àquele que tivemos de suportar entre 2005 e 2011.

João Miguel Tavares
18 de Fevereiro de 2017, 7:55

Confrontado com o anúncio da constituição de uma nova comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, desta vez abarcando o período da administração de António Domingues, o Partido Socialista respondeu de imediato com um ataque preventivo. Carlos César afirmou que o PS não irá aceitar diligências numa futura comissão que desrespeitem “o que diz a Constituição”, pois “o cumprimento da lei não está confinado às conveniências políticas”. Adoro quando os políticos enchem a boca de grandes princípios apenas para justificar intenções rasteiras. Traduzindo por miúdos, aquilo que César quer dizer é apenas isto: o PS vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que nunca seja conhecida a troca de SMS entre António Domingues e Mário Centeno.

Ora, até mesmo para quem, como eu, acredita que o que aconteceu na Caixa foi uma série de equívocos que acabaram por tomar uma dimensão catastrófica, e que no início deste processo ninguém estava realmente mal-intencionado, este fechar de linhas do PS em torno de Centeno (e de Costa? e de Marcelo?), com o auxílio do Bloco e do PCP, querendo impedir a todo o custo um direito de escrutínio e vigilância que é obviamente uma das tarefas fulcrais do Parlamento, já começa a pisar a linha vermelha daquilo que é democraticamente aceitável. Como ontem lembrou o CDS, ainda há uma semana o PS garantia, todo impante, que as acusações que recaíam sobre o ministro das Finanças eram uma “montanha que pariu um rato”. Há dois dias, quando PSD e CDS viram bloqueada a sua tentativa de aceder aos SMS, com o argumento de que a actual comissão de inquérito não se debruçava sobre a administração de António Domingues, Carlos César convidou a direita a criar uma nova comissão potestativa, para averiguar esse período. Agora que essa comissão é anunciada, regressa o argumento de que o acesso a comunicações privadas é inconstitucional.

Comunicações privadas? Mas quais comunicações privadas? Trocas de SMS sobre assuntos de Estado, entre o presidente de um banco público e o ministro das Finanças são comunicações privadas porquê? Por serem feitas por um telemóvel muito provavelmente pago com os nossos impostos? E por mail já não são privadas? Num smartphone de última geração, qual é realmente a diferença entre um mail e um SMS? Ou ainda se exige papel de 25 linhas, carta registada e o timbre do Ministério das Finanças para uma comunicação ser declarada como oficial? Esta discussão é patética. Só falta o PS invocar Marshall McLuhan e fazer cartazes a anunciar: “O meio é a mensagem”. Sim, o PSD e o CDS agarram-se à Caixa por politiquice, porque encontraram uma brecha na muralha governativa fácil de atacar, ainda que o assunto tenha pouca relevância para o futuro do país. Chama-se a isso “estar na oposição”.

Mas aquilo que o PS está a fazer chama-se obstrução política, uma espécie de filibuster tuga com o único objectivo de impedir que o Parlamento e os portugueses saibam aquilo que têm o direito de saber. Mais. Tendo em conta os seis anos de José Sócrates, e a opção de António Costa em reintegrar vários dos seus ministros, o PS tem particulares responsabilidades em questões de transparência. António Costa não é, felizmente, Sócrates, nem na seriedade, nem no modo de fazer política. Mas esta atitude do PS, e este seu nível de argumentação, é igualzinho àquele que tivemos de suportar entre 2005 e 2011. Mais disso não, muito obrigado. Já chega. Quanto mais o PS quer esconder, mais nós queremos saber.



O azar dos Távoras
No lodo já conhecido há dois factos que ferem os patamares de exigência ética a que obrigam a ocupação de cargos governativos.

SÃO JOSÉ ALMEIDA
18 de Fevereiro de 2017, 7:43

Pode dizer-se que António Costa foi esta semana atingido pelo azar dos Távoras. A semana tinha tudo para a propaganda do Governo ser feita pelo primeiro-ministro e ao seu lado brilharem o ministro das Finanças, Mário Centeno, e o ministro adjunto Eduardo Cabrita. O Conselho de Ministros aprovou a lei-quadro da transferência de competências para as autarquias, dando início ao processo da descentralização, e até já é sabido que o PSD está disponível para negociar. No Parlamento, passou à especialidade a lei que introduz quotas de género nas administrações das empresas públicas e das cotadas em bolsa.

Os números da economia ultrapassam as piores expectativas. Em Portugal foi divulgado que o crescimento da economia em 2016 é de 1,4% e ultrapassa os 1,2% previstos pelo Governo e os 1,3% estimados pela Comissão Europeia. E a Comissão oficializou que o défice em 2016 será de 2,3%, prevendo que em 2017 possa ser de 2% e em 2018 de 2,2%, confirmando assim que Portugal está na pole position para sair do procedimento por défice excessivo.

Mas eis que o azar dos Távoras se abateu sobre António Costa. O lodo que envolve o processo de nomeação de António Domingues para a presidência da CGD, que tem sido despejado a baldes cheios, sujou o Governo de tal forma que não há resultados positivos que a propaganda política possa fazer resplandecer, por maior que seja o domínio de Costa nesta arte.

E se a história ainda está para provar a veracidade do suposto plano para matar o rei D. José I, que esteve na base da acusação do Marquês de Pombal à família do putativo candidato à coroa, o duque de Aveiro e marquês de Torres Novas, e à família do marquês de Távora, no caso do primeiro--ministro parecem não restar dúvidas de que o seu ministro das Finanças não esteve à altura das exigências éticas do seu cargo. Nada disso resultará na saída de Centeno do Governo, até porque, se tal acontecesse, o projecto de governação ficaria ferido de morte, como já escrevi. Mas isso não diminui a gravidade das atitudes.

No lodo já conhecido há dois factos relacionados com a actuação de Centeno e de Costa que ferem os patamares de exigência ética a que obriga a ocupação de cargos governativos: o envolvimento claro da figura do Presidente da República no processo e a aceitação de que um escritório de advogados costurasse os conteúdos de uma lei à medida de serem vestidos por Domingues. Isto além, claro, da gravidade da questão de fundo: querer ludibriar uma regra de transparência democrática ao evitar entregar declarações de interesses ao Tribunal Constitucional.

É verdade que, pelo menos desde o Governo de Durão Barroso, é prática cada vez mais comum haver recurso a escritórios de advogados para participarem em processos legislativos. É, aliás, para tentar diminuir esse fenómeno que o primeiro-ministro anunciou a criação do Centro de Competência Jurídica, uma medida que está relacionada com o importante processo de simplificação legislativa e modernização administrativa conduzido pela ministra Maria Manuel Leitão Marques. Mas a conivência de Costa e Centeno com uma lei assim tão de alfaiate, feita exactamente à medida de quem a veste e tentando ludibriar a legislação anterior, atinge níveis de falta de ética de Estado que indigna.

Igualmente grave é a forma como o Presidente surge neste processo, citado em sms trocados entre Centeno e Domingues. Foi usado como argumento de negociação e envolvido como decisor numa fase do processo que não lhe competia. O que transparece sobre o envolvimento de Marcelo Rebelo de Sousa no "negócio político" com Domingues choca com qualquer critério sobre qual é a ética de quem ocupa funções de Estado e põe em causa o saudável funcionamento entre Presidente e Governo.

No meio do lodo, foi perceptível a facilidade do PSD e do CDS para fazerem barulho e a inabilidade para se centrarem no que realmente importa. Já agora que falamos da CGD, quando é que o país vai conhecer em pormenor o plano de recapitalização e a real situação do banco público?

Sem comentários: