sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Marcelo, Costa e a CGD: precisa-se de um pouco mais / A história de uma mentira / Há um papel escrito, sr. PR. O resto é pós-verdade


Marcelo, Costa e a CGD: precisa-se de um pouco mais
Marcelo e Costa habituaram-nos a ser pouco formais. A informalidade com que lidaram com o dossier CGD é um bocadinho de mais.

VÍTOR COSTA
10 de Fevereiro de 2017

Para António Costa é uma fé cega: “O ministro das Finanças não mentiu”. Para Marcelo também. Quer dizer, Marcelo protege-se. Protege-se sempre. A fé acaba se houver um documento assinado pelo ainda ministro das Finanças que mostre o contrário. Para PSD e CDS também é uma fé cega: o ministro das Finanças mentiu. Para o ministro das Finanças há uma única certeza: “inexistem" documentos que provem que foi dada alguma garantia ao então indicado presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), António Domingues, de que ele e a sua equipa estavam dispensados de apresentar a respectiva declaração de rendimentos e património no Tribunal Constitucional (TC).

É este o ponto em que estamos em relação ao vergonhoso processo da CGD.

Presidente da República, primeiro-ministro, ministro das Finanças, deputados, resumem todo o processo à possível mentira de Centeno no Parlamento.

É importante, grave e inadmissível se Centeno mentiu. Muito provavelmente nunca teremos uma certeza.

Mas em todo este processo há factos tão ou mais graves que todos parecem, agora, ignorar e que mostram à exaustão a forma atabalhoada como este processo foi conduzido. E mesmo dizer que foi tudo por um bem maior não chega. É muito positivo que a CGD tenha uma recapitalização aprovada em Bruxelas e que não seja considerada ajuda de Estado. Mas não pode valer tudo.

Facto n.º 1. O Governo mandatou um administrador do BPI, em funções, para negociar em Bruxelas um plano de recapitalização para a CGD.

Facto nº 2. O Governo aceitou ser posto contra a parede para garantir um administrador “profissional” para a CGD.

Facto n.º 3. O Governo, se quisermos ser muito inocentes, até pode não ter garantido que dispensava António Domingues da entrega da declaração no Constitucional, mas sabia desde o início que essa era uma sua exigência.

Facto n.º 4. Marcelo acompanhou todo este processo bem de perto. Também teremos de ser muito inocentes para acreditar que não sabia das pretensões de Domingues. Promulgou a alteração ao Estatuto de Gestor Público e levantou dúvidas sobre a questão salarial, nada mais.

Facto n.º 5. As Finanças entregaram a Domingues, e seus advogados, a responsabilidade de alterar a lei que lhe iria ser aplicada. Só a ele e mais ninguém.

Resumir esta coluna de horrores à existência de um documento assinado por Mário Centeno onde este promete a António Domingues e à sua equipa a exclusão da obrigação de entregar a declaração no Constitucional ou à eventual mentira do ministro no Parlamento é muito pequenino.

Marcelo e Costa habituaram-nos a ser pouco formais no exercício das funções. A informalidade com que lidaram com o dossier CGD é um bocadinho de mais. Até para eles.


A história de uma mentira
António Costa
Ontem

A história da correspondência entre António Domingues e Mário Centeno revelada pelo ECO não deixa margem para dúvidas sobre o acordo à medida que levou o gestor à presidência da Caixa.

Mário Centeno mentiu, por ato e omissão, quando negou a existência de um acordo com António Domingues para o dispensar da obrigação de entrega da declaração de rendimentos e de património no Tribunal Constitucional? Vamos aos factos:

Toda a documentação que o ECO revelou em exclusivo relativa à troca de correspondência entre o gestor e o ministro das Finanças, mas também do advogado Francisco Sá Carneiro com o secretário de Estado Mourinho Félix, com o envolvimento de serviços das Finanças apontam no mesmo sentido. Domingues só aceitaria o convite para a CGD se as regras da Caixa permitissem uma posição concorrencial com a banca privada, e que teria de se traduzir em dois pontos essenciais, além dos que estão diretamente relacionados com a capitalização:

A remuneração teria de ser competitiva com a do setor financeiro privado.
A gestão deveria estar protegida da publicitação e transparência decorrentes da entrega da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional.
Todas as missivas, emails e cartas, permitem perceber a negociação para mudar dois diplomas, o que excluía a CGD do Estatuto do Setor Empresarial e o que tirava a gestão da Caixa das regras do Estatuto do Gestor Público. Tudo foi feito neste sentido, como provam as cartas. O advogado de António Domingues até se deu ao luxo de propor uma redação de decreto-lei ao secretário de Estado para acomodar esses objetivos. Leis à medida, até a pedido, para corresponder às condições de Domingues. É o Estado no seu melhor, o uso de um poder à medida do interesse de cada um e, sejamos justos, não é um problema de Centeno, nem de outros ministros noutros casos, e um problema nosso, que o tolera.

Resultado: António Domingues aceitou ser presidente da Caixa e convidar uma administração inteira com base neste acordo.

Neste processo, só tenho uma dúvida: estas mudanças legislativas deixaram de fora uma lei de 83 que obriga os que estão em funções públicas, como é o caso dos gestores em empresas controladas pelo Estado. Foi por desconhecimento da existência dessa lei ou foi por omissão deliberada porque sabiam que essa era uma matéria que não passaria despercebida e, por isso, de difícil aprovação à Esquerda e à Direita? Qualquer das duas possibilidades é má.

A carta de António Domingues a Mário Centeno no dia 15 de novembro em que revela, preto no branco, a existência do acordo é ‘apenas’ a última das provas. Portanto, apesar de não existir uma declaração explícita do ministro das Finanças sobre o Tribunal Constitucional, há uma história de negociação que não deixa margem para dúvidas e que permite formar a convicção de que Centeno acedeu aos pedidos de Domingues. Pior, fica evidente também que deixou cair o gestor quando foi claro que a lei de 83 tornava o acordo inviável.

António Costa, ontem, no Parlamento, fez uma coisa feia: para proteger Centeno, acusou implicitamente António Domingues de mentir quando escreveu, na carta de dia 15, que tinha um acordo com Centeno. Mas essa afirmação não é suficiente para reescrever esta história.

Há quem siga outra estratégia, quem considere que este não é um tema relevante para o país, que compromissos de um governo em nome do Estado perante terceiros é coisa de somenos, como defendeu o jornalista André Macedo em artigo de opinião no DN. Foi tudo uma ingenuidade e, agora, isso não interessa para nada. Concordamos em discordar. É mais importante o défice, e “o talento e o esforço de Centeno” merecem pouco menos do que uma estátua. “Reconhecer o talento, à Esquerda e à Direita, é cumprir os mínimos jornalísticos”. Mau Maria… Mas é isso que está em causa? Ou esta desvalorização da carta secreta é, isso sim, não cumprir os mínimos jornalísticos? O diretor adjunto da RTP – que mudou de opinião sobre a sua privatização quando entrou na televisão pública – põe em causa o tratamento jornalístico daquela carta e escreve até que “foi parcialmente revelada e cirurgicamente editada”. Não foi, André Macedo não leu, ou não quis ler, o que o ECO publicou. É o que parece. Ficam aqui os respetivos links: “Carta secreta de Domingues compromete Centeno” e “A carta secreta de Domingues a Centeno analisada à lupa”. Aqui, trabalhamos para os leitores.

A transparência, nesta linha de argumentação do subdiretor da RTP, não interessa para nada. Não vamos alimentar a transparência, o que interessa é a forma, não é a substância, é a grande equipa que se perdeu, não é o acordo do ministro das Finanças com António Domingues. A defender um certo Portugal que, pelos vistos, não deve ser exigente com um ministro. Seja com Mário Centeno, seja com os seus antecessores. Também há emails de Maria Luís Albuquerque sobre o caso dos swaps. E, à data, era o PS a acusar a ministra de mentir no Parlamento. Esses eram importantes, estes não são?

Tudo somado, Mário Centeno mentiu por ato e omissão. Alguém tem dúvidas (além de André Macedo)?


Há um papel escrito, sr. PR. O resto é pós-verdade

Também temos cá a pós-verdade. A peça inicial deste processo é onde Centeno é transparente e verdadeiro.

10/02/2017
Ana Sá Lopes
Política


O momento em que Mário Centeno não mente é em 25 de outubro passado, quando assume com uma clareza infinita que os gestores da CGD não terão que entregar declarações de rendimentos. Isso está escrito: é um comunicado oficial do Ministério das Finanças enviado a várias redações. Se Marcelo quer um papel escrito a defender uma posição que, a seu ver, seria “inaceitável”, já tem este. Não foi um erro dos assessores.

Foi assumido dias depois em voz alta pelo próprio ministro. O comunicado do Ministério das Finanças é tão cristalino sobre o assunto que é uma pena ter sido esquecido, devagarinho, na voragem dos acontecimentos, através de uma laboriosa construção de um facto alternativo por Costa e pelo ministro das Finanças. Também temos cá a pós-verdade. A peça inicial deste processo é onde Centeno é transparente e verdadeiro. Assume que combinou com os gestores da Caixa a “desobrigação” dos aborrecimentos que calham a uma pessoa em funções públicas, que é entregar declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional.

É importante voltar a ler esse documento essencial porque o processo de controle de danos que Costa levou a cabo conseguiu que se instalasse na opinião pública a dúvida sobre se o Ministério das Finanças tinha de facto combinado essa exceção. Diz o comunicado, que negava que fosse “lapso” o facto de os gestores estarem isentos de apresentarem declarações: “A ideia é a CGD ser tratada com qualquer outro banco. Essa foi a razão para que fosse retirada do Estatuto do Gestor Público. Está sujeita a um conjunto de regras mais profundo, como estão todos os bancos. Não faz sentido estar sujeita às duas coisas. Não foi lapso.

O escrutínio já é feito. Os corpos dirigentes da CGD têm que prestar contas ao accionista e aos órgãos de controlo interno. Estão assim disponíveis para revelar essa informação [sobre o rendimento, património e possíveis incompatibilidades] ao accionista”. Centeno, aqui, não mente. Dias depois, insistiria, de viva voz, que não havia “qualquer falta de escrutínio” e que a CGD respondia ao accionista Estado. Esta é a verdade e os factos reais. A pós-verdade e os factos alternativos começam a construir-se depois. O documento escrito a defender uma “posição inaceitável” já existe, senhor Presidente.

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