sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Marquises, caixotes de ar condicionado e outras excrescências / ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO


Marquises, caixotes de ar condicionado e outras excrescências
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
PÚBLICO / 06/09/2009 - 00:00

O tema das marquises e da forma como estas excrescências têm invadido, como verrugas, a pele dos nossos edifícios, tem sido motivo de desespero para todos aqueles preocupados com o património de Lisboa.
Com efeito, a varanda, espaço-plataforma que devia garantir o nosso contacto natural com os elementos; que devia ser terraço, jardim suspenso, espaço de lazer e transição térmica natural num clima com as nossas caracteristicas, foi transformada através da marquise, irracionalmente, em estufa asfixiante e excrescência desfiguradora.
O desespero vem do sentimento que este fenómeno, tão terceiro-mundista, parece constituir uma fatalidade irreversivel e incontrolável, tal como os carros em cima dos passeios ou os "cachos" de caixotes de ar condicionado que invadiram tudo quanto é fachada.
Tomámos conhecimento através do PÚBLICO, que alguém tomou a iniciativa louvável de desencadear uma campanha sensibilizadora, tendo como objectivo, se não acabar, pelo menos inverter progressivamente esta calamidade. Este texto tem como objectivo contribuir através de uma proposta concreta, "de facto" para o sucesso progressivo desta campanha. A única forma efectiva de desenvolver um exemplo estimulante e pedagógico, capaz de mudar mentalidades e estabelecer disciplina, é conseguir uma situação de conjunto, onde num conjunto arquitectónico significativo, a situação seja invertida e o desastre e o atentado sejam corrigidos.
Na história do urbanismo português, a Baixa pombalina e o bairro de Alvalade constituem dois exemplos paradigmáticos.
No entanto, além da diferença fundamental de discursos determinada pelas diferentes épocas, eles só são comparáveis não só na escala gigantesca dos projectos urbanisticos, mas também pelo facto de que foram executados na íntegra. Fora disso, enquanto um, o da Baixa, nasce da urgência de reconstrução do centro depois do cataclismo, e é portanto sistemático tanto na linguagem arquitectónica unificada e única, como nos métodos de produção, o outro apresenta características diferentes.
O bairro de Alvalade é planeado por Faria da Costa, e conhece o início da sua execução coerente, na década do apogeu do Estado Novo, ou seja os anos 40. Ele é desenvolvido, em diversas fases e células, numa dialéctica simbiótica de diversas inspirações e modelos internacionais, e da "receita-síntese" tradicionalismo-modernismo.
Dentro dele, o bairro das Estacas (1949) surge como uma peça única para a época, de pura influência CIAM - Carta de Atenas (1933) e de linguagem corbusiana, com todos os seus elementos de morfologia e detalhes arquitectónicos (pilotis, brise-soleils, etc). O estado de conservação e de alienação deste notável conjunto é lastimável.
Ainda por cima, quando sabemos que o Icomosdispõe de um departamento dedicado aos monumentos do modernismo, o Docomomo, com trabalho internacional de restauro, ou mesmo de reconstruções integrais, de grande prestígio (Openlucht School Amsterdam, Zonnenstraal Sanatorium Hilversum, Café de Unie Roterdam, Pavilhão de Barcelona, etc., etc.,)
Não teríamos aqui uma oportunidade de classificação de conjunto urbano, de restauro integral e de limpeza de todas as excrescências como marquises, caixotes de ar condicionado e cabos pendurados? Esta mensagem é dirigida à CML, ao Ministério da Cultura e acima de tudo ao Igespar, lembrando esta última instituição de que a forma de como "arrumou" o caso da Classificação do Bairro Social do Arco Cego, é simplesmente inaceitável!

Historiador de Arquitectura  

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