Ramalho Eanes:
“Não há inevitabilidades, quem escreve o futuro são os povos”
11.02.2018 às
9h00
Está esperançado mas preocupado. Elogia a
solução política atual por ter quebrado o princípio da inevitabilidade e
considera a ação do PCP patriótica. Mas receia que a abstenção supere os 50%, o
que poria em causa a legitimidade eleitoral. “Socialmente, sou um homem de
esquerda”, diz, convencido de que o crepúsculo da esquerda europeia será
passageiro — e que os valores da solidariedade estão a reemergir. Mas a paz
mundial não está garantida
LUÍSA MEIRELES
PEDRO SANTOS
GUERREIRO
texto
D
o homem público sabemos sempre mais o que é do que quem é. E se sabemos o que António Ramalho Eanes é, isso é também porque ele próprio não só não contesta as máscaras coladas pela sua ação política como também porque promove uma imagem institucional, que assume com gravidade no
segundo em que o gravador é ligado — e desarma mal ele é desligado, para nos
falar dos netos ou contar (muitas) histórias. No final da entrevista, há de
acompanhar-nos à saída do prédio onde tem o seu gabinete, em Lisboa, ficando a
acenar da porta. Foi Presidente da República logo a seguir ao 25 de Abril (de
1976 a 1986), ou melhor, logo a seguir ao 25 de Novembro, a que ficou
indelevelmente ligado. Quando tomou posse, tinha apenas 41 anos. Fez na semana
passada 83.
Como vê o país
hoje? Era o que imaginava no 25 de Abril ou no 25 de Novembro?
O país não é o
que eu imaginava, mas talvez a minha imaginação na altura fosse extremamente
ambiciosa. Olhando hoje para o país, há uma coisa muito interessante que se
deve a este Governo. Tínhamos aceitado um pouco acriticamente o princípio da
inevitabilidade, éramos um país pobre, tínhamos de continuar a sê-lo, estávamos
na cauda da Europa, tínhamos de continuar aí. Esse princípio de inevitabilidade
foi posto em causa por esta solução política. Mostrou que existem outras
soluções e soluções ambiciosas. Além disso, conseguiu fazer uma coisa
fundamental: reconstituir de alguma maneira a unidade popular. Não estou a
falar de unidade nacional, mas de unidade popular.
Como define essa
unidade popular?
Ela é a convicção
de todos os que trabalham num país — homens, mulheres, nacionais e estrangeiros
— de que trabalhando em conjunto vão viver melhor. Essa convicção renasceu, o
que é muito importante, porque não há mudanças reais sem que a população esteja
empenhada. Tem havido também um crescimento económico, redução do défice,
subida pelas empresas de notação, tudo isso é positivo.
Isso satisfá-lo?
Não. O
investimento continua extremamente baixo e as grandes reformas que são
indispensáveis não foram feitas. Devia aproveitar-se este momento
economicamente bom para as fazer. Quando olho para as reformas necessárias,
pergunto-me — plagiando Delors — se será assim tão difícil substituirmos a
cultura interpartidária do conflito pela consensualização. Não digo completa,
que descaracterizasse ideologicamente as formações partidárias, mas sobre o
essencial. Temos problemas gravíssimos.
Quais?
Natalidade
baixíssima, o que nos vai trazer problemas de toda a ordem, incluindo económica
e social — não teremos população necessária dentro de alguns anos para
satisfazer as necessidades de trabalho que a economia determina. E, se não
temos população jovem preparada e capaz, como vamos responder aos desafios da
economia digital, da economia verde, da economia circular? Como vamos manter a
segurança social? Dentro de poucos anos haverá três trabalhadores para dois
reformados. É extremamente preocupante. Depois, acabámos por concentrar a nossa
população no litoral, como se o interior não existisse. E continuamos com uma competitividade
extremamente baixa em relação à média europeia, e modificá-la não é fácil,
porque exige coisas que não fizemos. Temos infraestruturas relativamente boas,
mas temos um sistema de educação em que o universitário é razoável mas o
secundário é mau. Quando olhamos para o abandono escolar ficamos preocupados e
quando olhamos para a percentagem de jovens que terminam o secundário e o
universitário também ficamos. O desemprego jovem mantém-se alto e não havendo
emprego motivante os jovens vão para o exterior. Os que vão são os melhores,
possivelmente não os melhores academicamente, mas os que têm mais capacidade de
arriscar, mais ousadia, com uma vocação empreendedora maior.
É um retrato
preocupante.
Sim. Em 2020
vamos entrar num período novo, em termos de organizações europeias, porque há
um projeto de renovação que parece ir por diante. Só neste semestre a União
Europeia fez um trabalho notável: criou condições para o acordo de Paris sobre
o clima, consolidou o polo social olhando para o emprego, para os
desfavorecidos, para a miséria, e avançou em matéria de defesa. Estou
convencido de que fará um trabalho ainda mais importante por causa do duo
Macron e Alemanha — não apenas Merkel mas também o SPD. A economia mundial e a
europeia estão a crescer e isso vai criar condições extraordinárias para
refazer a arquitetura europeia, dando-lhe uma estrutura capaz de defender os
valores matriciais através de uma operacionalização política sistemática. O que
aconteceu e levou as populações, incluindo a portuguesa, a divorciar-se do
projeto europeu é da responsabilidade dos políticos que não souberam defender
esses valores, nomeadamente o da solidariedade. Com a recuperação que temos
estado a fazer e a nova vaga de jovens com formação académica elevada, também temos
condições para fazer as reformas necessárias. Isso exige acordos
interpartidários, um pacto ambicioso entre os partidos e a sociedade civil,
sobretudo com as forças sociais, que defina uma estratégia e estabeleça um
horizonte que os portugueses percebam e os motive.
Esse trabalho tem
de ser feito pelos partidos?
Sim, em diálogo
com a sociedade civil. Com os partidos a elaborar pactos sobre as reformas
indispensáveis — como a educação, ou fazer com que a economia possa funcionar
de maneira equilibrada em períodos de expansão e de recessão. Isto implica
responder à questão da dívida, que é asfixiante, e que continua a crescer,
apesar de tudo.
Mas está
otimista, diz, quanto à mobilização do país.
Estou
esperançado, mas preocupado. Os portugueses continuam a refletir pouco e agora
refletem menos porque têm uma informação inundante. Era Unamuno que dizia que
os povos peninsulares são infilosóficos, mas o mais infilosófico é o português.
E embora isso se tivesse modificado, não foi suficiente.
Porque diz isso?
Quando olho para
o consumo fico preocupado. O que me toca não é o volume, é o destino: há
portugueses que se endividam para ir de férias. Compreendo que se faça isso
para comprar casa, no limite para comprar um carro, mas para ir de férias? Os
portugueses não estão a refletir convenientemente sobre o que é o estado real
do país, que não é rico e não ultrapassou a crise, porque ela persiste. Esta
crise não é igual às outras, é de rutura. Exige novas respostas, novos métodos,
uma grande mobilização e, naturalmente, muitos recursos.
Os portugueses
não aprenderam com a experiência recente?
Parece que muitos
não aprenderam o suficiente. Esta procura exagerada de crédito, sobretudo
destinada a consumos supérfluos, não é saudável, não é pelo menos virtuosa.
A que atribui
isso?
Tem uma
explicação sociopsicológica. Um povo que é atirado para uma situação de grande
depressão e é convencido de que dali não sai, e de repente assiste a ações que
o fazem sair dessa situação depressiva, fica como que eufórico. É natural mas
espero que seja uma euforia passageira, como espero que o Estado e a informação
atuem de maneira que haja consciencialização e que voltemos a uma situação de
racionalização de comportamentos sociais.
Diz que esta
solução governativa contrariou o princípio da inevitabilidade...
Não há
inevitabilidades. O futuro não está escrito em parte nenhuma, quem o escreve
são os homens, os povos.
...mas também
defende um ambiente partidário favorável a reformas de longo prazo. Esta
solução governativa não é favorável a essas reformas?
Esta solução tem
muito mérito, e naturalmente o mérito democrático, porque havia formações
partidárias fora do jogo da responsabilidade democrática pela ação política e
agora já não é assim. A democracia beneficiou com isso. Há a tendência para
responder a questões sociais, que são razoáveis em si, mas não tanto se
olharmos o contexto geral do país, nomeadamente o económico-financeiro.
Lutou muito
contra o PCP, quando este defendia uma visão não democrática, e depois lutou
pela sua legitimação enquanto força democrática. Como o vê entrar num
entendimento com o poder?
O PCP é um
partido com uma ideologia que se conhece, mas muito pragmático. Tive ocasião de
o constatar durante o meu longo contacto com Álvaro Cunhal. O PCP sabe olhar a
realidade, ler a realidade, responder à realidade. Percebeu que o governo
anterior se tinha deixado aprisionar por uma ação política que era necessário
impedir que continuasse. Considero a ação do PCP correta e patriótica. Mas não
podemos pedir ao PC que se desconfigure: tem uma orientação determinada pela
sua interação com os militantes que tem de respeitar, que é motivada pela sua
ideologia, que tem de se afirmar. Tudo isso cria algumas dificuldades em
respostas que poderiam ser dadas neste período de expansão económica.
E como vê esta
solução no contexto da democracia, visto que um dos nossos problemas é a má
imagem dos partidos?
Não é
inteiramente verdade. A má imagem dos partidos existe em toda a Europa. Houve
um divórcio progressivo dos partidos em relação à população em geral, incluindo
na Alemanha. Porque é que neste país surge o partido da Alternativa para a
Democracia (AfD)? Porque é que na França o partido de Marine Le Pen cresceu
tanto? Porque é que nos países europeus do Leste há uma certa regressão
democrática — chama-se até idemocracia? Porque é que Itália tem um populismo
agressivo e ameaçador? Segundo os politólogos, isso aconteceu porque os
políticos esqueceram-se de responder às promessas que tinham feito e não viram
as mudanças que se estão a operar nas sociedades, que são mais preparadas e
esclarecidas. A democracia representativa só já não chega, são precisas outras
formas de democracia. As eleições são indispensáveis, mas a democracia
representativa deve ter o cuidado e a capacidade para juntar novas formas de
representação que possam dinamizar a relação entre os políticos e os cidadãos.
Por outro lado, a dialética esquerda-direita, que era extremamente positiva,
perdeu peso, dimensão e efeito.
O que é que isso
significa?
Que a esquerda
deixou de produzir intelectualmente, de estar em evidência em países onde tinha
uma larga tradição, acabou por aceitar o liberalismo de alguma maneira e,
quando governou, não apresentou alternativas. Aquilo que eram os seus dois
grandes desígnios, a igualdade e a solidariedade, estão muito
descaracterizados. A igualdade acabou num certo igualitarismo perverso e acabou
por aceitar-se que a solidariedade se fosse transformando numa espécie de
solidariedade assistencial. Não é essa a tradição da esquerda.
O que há a fazer?
Criar utopias
realizáveis. Pergunto: como vamos responder às consequências da economia
digital, que exige grande preparação? Pode fazer-se com sistemas educativos
capazes, como está a acontecer agora em França. O ministro da Educação,
Jean-Michel Blanquer, tem um programa extremamente ambicioso para acabar com o
insucesso e o abandono escolar. E faz isso acabando com o facilitismo, acabando
com o igualitarismo e com o pedagogismo que têm dado cabo do sistema francês.
Esse ministro pôs os miúdos que se atrasam a serem apoiados e fez uma coisa
muito interessante, mudou a escola de modo a que, como qualquer boa
organização, cada escola tem um propósito, tem o controlo e tem uma equipa. E
fez uma coisa que nós não conseguimos fazer ainda, que é haver uma avaliação
sistemática dos professores. A antiguidade não serve em parte nenhuma.
Também está a
falar das escolas portuguesas.
Nós permitimos
que os pais duvidem da escola, que os professores duvidem da instituição e que
haja um domínio absoluto dos sindicatos. Os sindicatos são indispensáveis e são
uma vitória importante da democracia, mas é necessário que não impeçam que se
adquira o mérito, que as avaliações por mérito sejam feitas sistematicamente e
que os que mais mérito têm sejam os mais premiados. O problema da igualdade é
tão velho quanto o homem. Cícero falava da igualdade diferenciada no aspeto
social. Igualdade que permita dignidade a todos, mas diferenciada de acordo com
o mérito. Uma sociedade que não é capaz de premiar o mérito ameaça tornar-se
decadente. Tudo isto para dizer que o mal da democracia não é um mal português,
mas de todas as democracias avançadas da Europa.
Como se resolve?
Nas eleições de
2015 metade dos jovens não votou. Se os que são o futuro não participam no
presente, há algo muito errado. Os partidos têm de ser mais atrativos, mais
competentes, eficazes e ter um diálogo com a população muito mais aberto, uma
interação que permita que esta participe na governação através da colaboração,
da contribuição, da crítica, da reivindicação, se necessário.
Os partidos não
estão esgotados, portanto.
Não. Mesmo
aqueles que dizem que se vai chegar a uma democracia avançada estão de acordo
num ponto, que é dirimir os conflitos interinstitucionais no ato eleitoral.
Nesta altura, não se vê ainda uma solução diferente e melhor que a
representatividade. É necessário que ela seja efetiva, dinâmica, gratificante
para a população, para impedir que se caia nos populismos que constatamos e que
acabam por privilegiar de maneira perversa o referendo ou redundem na posição
inaceitável do nacional-protecionismo: ser contra os estrangeiros, os
imigrantes, os refugiados, tudo o que foram as grandes conquistas da democracia
europeia.
Ao longo dos anos
defendeu a socialização da política e a politização da sociedade. Fala agora
dos populismos. São elas a maior ameaça à democracia?
A maior ameaça é
chegarmos a um ponto em que a população que vota é inferior a 50% da população
real, o que pode levar à contestação das eleições. A legalidade é importante,
mas a legitimidade é-o ainda mais. Temos de reatualizar o sistema partidário e
as suas relações com a sociedade civil. Representatividade, com certeza;
eleições, indiscutivelmente; mas é necessário olhar para novas modalidades
organizativas da sociedade civil, as suas associações e representações para
manter o diálogo vivo. Isto é tanto mais importante quanto a informação hoje,
de maneira geral, não esclarece. Na informação dos novos meios, a
emocionalização sobrepõe-se à racionalização. Quando aparece uma grande questão
era interessante que ela fosse discutida por especialistas que estivessem a
favor e contra, de modo a que não houvesse uma leitura simplista mas complexa.
Todos os problemas o são.
Lar. António
Ramalho Eanes, fotografado na passada semana, em casa, em Lisboa, com um dos
seus animais de estimação
Lar. António
Ramalho Eanes, fotografado na passada semana, em casa, em Lisboa, com um dos
seus animais de estimação
Hoje é-se
político por via partidária. Se os partidos estão na situação que descreve,
como se rompe o círculo?
Temos observado
que os partidos vão procurar mais independentes. Se querem abrir-se à sociedade
civil, talvez não seja o suficiente, têm de esforçar-se por atrair os jovens,
tanto mais que têm melhor formação académica e estão em condições de
desempenhar um trabalho político de maior qualidade. Não é fácil, porque os
partidos são ainda clubes relativamente fechados e é necessária a ação de quem
os lidera para evitar a partidocracia, na qual o que conta é o aparelho.
Assiste-se à
perda, do ponto de vista eleitoral, do centro político em vários países
europeus. O que preconiza isso para Portugal?
Olhando a história,
estou convencido de que este crepúsculo da esquerda será passageiro. Hoje as
coisas não são tão simples como eram, a globalização e a geopolítica criaram
condições que não são propícias à esquerda, mas elas podem ser alteradas. Hoje
é-se dominado por uma mistura de individualismo no plano social e
ultraliberalismo no plano económico. Tem havido uma insistência em mostrar que
depois da queda do muro de Berlim e do socialismo real de Brejnev só há uma
solução, mas não há só uma, há várias. A Europa foi dominada por este
pensamento até há pouco tempo e começa a emergir uma posição diferente, com uma
preocupação em acentuar o polo social, com o emprego, os desfavorecidos, o que
demonstra que a solidariedade está a recuperar um papel. Quando as medidas que
se preconizam na UE trouxerem uma reemergência dos seus valores matriciais,
possivelmente vai emergir uma nova esquerda e ela terá um papel importante na
Europa.
O senhor
coloca-se à esquerda?
[Pausa]
Socialmente, sou um homem de esquerda. Economicamente talvez não o seja no
sentido tradicional, porque é necessário encarar a vida económica com grande
pragmatismo, por saber-se que há uma globalização em curso e uma geopolítica
preocupante em que nem sequer a paz mundial está garantida. Nem é apenas olhar
para as afirmações de Trump nem para o orçamento militar americano, que cresceu
exponencialmente este ano, é olhar também para o rearmamento da China, Rússia,
Turquia, Irão, Arábia Saudita, e a reconfiguração das alianças no Médio
Oriente, Estados Unidos-Arábia-Israel e Irão-Rússia-Turquia [ver caixa]. E
depois, a globalização tem de ser encarada com cuidado porque dela têm
resultado benefícios, mas também promete desenhar ameaças na estabilidade
financeira mundial, com o problema da China e dos EUA. Passámos de uma economia
fordista para outra completamente diferente, que vai trazer uma exigência maior
de qualidade escolar e profissional e determinar um grande número de
desempregados. Para esta nova situação as medidas clássicas de esquerda não
chegam e as que a direita promete são insuficientes. É necessário pragmatismo e
esperar que os intelectuais e os investigadores sociais procurem soluções, que
terão de ser inovadoras e acabarão por não se situar nem no paradigma da
esquerda nem no da direita.
Mas é ainda à
esquerda e à direita que definimos referências para o Estado. Tendo em conta os
incêndios de 2017, é preciso olhar para o papel e para a forma como o Estado
está a desempenhar as suas funções?
A direita durante
muito tempo explicou que o Estado devia ser mínimo, o que não parecia muito
razoável. O Estado deve ser o necessário, ter a dimensão para responder às suas
obrigações, que não são só a segurança, a justiça e a defesa. Num Estado
social, são muito maiores. Chegámos à conclusão de que os governos — não este,
mas todos desde Abril — não tinham cumprido o seu papel em relação ao interior.
Mas também nós, as populações, não cumprimos. Permitimos que o interior se
fosse paulatinamente desertificando, através da eliminação da representação de
diversos serviços nessas localidades, não fizemos uma política de natalidade e
não criámos incentivos à fixação de jovens, o que teria sido possível, por
exemplo, como dizia Vitorino Magalhães Godinho, através da ajuda à fixação de
novos agricultores, filhos das escolas agrárias ou pecuárias, aos quais fossem
dadas terras com dimensão suficiente e apoio financeiro para criarem
explorações integradas e de turismo. Podíamos ter feito isso, utilizando, por
exemplo, alguns dos fundos estruturais postos à disposição pela União Europeia
e envolvendo capacidade das Forças Armadas (FA) — aliás, o que fizemos em
relação às FA foi de alguma maneira acantoná-las, pô-las num gueto. Em vez de
utilizarmos as suas capacidades para integrarem as potencialidades nacionais e
serem geridas de uma maneira integrada, fomos reduzindo a capacidade e
responsabilidades dos chefes dos Estados-Maiores [ver caixa].
Concorda que o
Estado falhou, nos incêndios, nos seus deveres essenciais?
O que aconteceu é
consequência de um cúmulo de razões, algumas das quais são da responsabilidade
direta do Estado. Além das razões que apontei, haverá uma resposta insuficiente
dos órgãos de proteção civil, dos corpos de bombeiros, apesar da sua dedicação,
e de uma incapacidade em aproveitar a instituição militar. Fogos haverá sempre,
dado o tipo de floresta que temos, mas poderiam não ter tido aquela dimensão
trágica se o Estado não deixasse despovoar o interior, se tivesse uma política
de proteção cuidada, continuada por indivíduos cada vez mais competentes; se
tivesse feito uma reforma fundiária na área florestal que permitisse a
existência destes novos empresários e se naturalmente tivesse uma proteção
civil suficientemente capaz.
Nestes incêndios,
houve uma intervenção muito visível do Presidente da República. Sabemos que há
um acordo tácito entre antigos presidentes de não se comentarem, mas como vê
essa participação e o papel do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa?
Quero respeitar
esse acordo. Mas para lhe responder sem responder, quero dizer-lhe que quando
houve o acidente de Alcafache [desastre ferroviário em 11 de setembro de 1985,
do qual terão resultado um número de mortos nunca apurado, entre 40 e 200] eu
estive lá; quando houve o sismo dos Açores também, fui num C-130 e levei um
corpo de intervenção militar. Em situações de gravidade, o homem que representa
todos os portugueses deve estar com os portugueses.
No interior,
defende um ambiente político para...
Sou do interior e
mesmo a área de mata está dividida em frações tão pequenas que não se pode
esperar que o seu proprietário as limpe; não tem meios para isso. É necessária
uma reforma fundiária. As empresas da pasta de papel têm grandes áreas de
floresta e aí não tem havido incêndios ou quando os há têm resposta imediata.
Há aqui culpa do Estado, dos governos e da população em não haver uma deteção e
uma resposta suficiente, nem uma melhor resposta para os incendiários.
A reforma
fundiária mexe com o direito de propriedade, salvaguardado pela Constituição. O
entendimento partidário deve ser no sentido de alterar a Constituição?
A Constituição
não é espartilho, é uma garantia. E, como diz Jorge Miranda, deve ajustar-se ao
corpo nacional a que diz respeito. Se houver preceitos que se desatualizaram ou
que impedem medidas indispensáveis para o futuro do país, modifica-se. Não
estou a dizer que os proprietários devam ser expropriados, mas que o Estado
pode comprar os terrenos que os proprietários queiram vender ou arrendar, e pode
exercer uma certa coação sobre os que não querem fazer nem uma coisa nem outra,
nem querem cuidar. A propriedade agrícola tem também uma função social. Devemos
respeitar o direito de propriedade, indiscutivelmente, mas não nos devemos
esquecer do direito social. Se há comportamentos que são contrários ao
interesse comum, modificam-se.
Como olha hoje
para a União Europeia? Depois do ‘Brexit’, com os novos mecanismos na UEM...
Cheguei a estar
muito dececionado. Há muito que acompanho a Europa e o papel da sua líder,
Angela Merkel. A Europa não era capaz de desenhar uma estratégia de futuro,
chegava tarde e de maneira insuficiente aos problemas que se levantaram, e
quando eram tomadas grandes medidas, como as que tomou Mario Draghi, manifestou
grande discordância ou ficou calada. A situação hoje é muito diferente: a
Europa sofreu uma crise, sentiu-se ameaçada, perdeu unidade — a decisão de
saída da Grã-Bretanha foi positiva neste sentido, despertou a Europa. A Europa,
que entendia que não devia gastar com a defesa porque os EUA lha garantiam,
agora chegou à conclusão contrária. O tempo veio mostrar que a Europa não é uma
zona geopoliticamente importante para os EUA, por isso tem de cuidar da sua
própria defesa. Por outro lado, a Europa aprendeu muito com a crise, percebeu
que não tinha inovado suficientemente, mas também que se tratava de uma crise
de solidariedade.
Por causa dos
refugiados?
Não há uma ameaça
dos emigrantes e refugiados, mas há uma necessidade imperativa dessa gente, no
imediato. Na Europa haverá mais de 150 milhões de estrangeiros e admite-se que
em 2050 sejam mais de 300 milhões. Há um problema de natalidade, a Europa sofre
de falta de mão de obra e não pode ser só a Alemanha a resolver este problema.
Com tudo isto, a Europa acabou por reconhecer que se atrasou na defesa, na
segurança de fronteiras, mas também na automação, na inteligência artificial...
Ou seja, a Europa
percebeu que tem de mudar.
Ou se modifica e
tem uma nova arquitetura, democratiza-se e torna-se mais solidária, ou não tem
futuro. Ela tem de responder a quatro condições: uma é a limitação e
identidade, a Europa é de valores, com Estados de direito democrático e isso
deve levá-la a rever a sua posição em relação à Turquia. A Europa não pode
permitir separatismos tipo Catalunha, para o qual são invocadas razões
históricas que, em boa verdade, de História têm muito pouco. Segundo, é preciso
uma arquitetura institucional para responder a novas situações de crise, porque
elas virão, eventualmente, até por efeito da dívida externa dos EUA ou pelo
novo modelo económico da China, que se voltou para o consumo interno privado e
para o financiamento das empresas chinesas. Depois, a Europa tem de responder
ao problema da emigração e dos refugiados, estabelecendo normas claras e
transformando o que é uma guarda fronteiriça incapaz, a Frontex, numa outra
eficiente. E tem de fazê-lo respondendo ao terrorismo, cuja ameaça aumentou. Ao
ser derrotado, o Estado Islâmico (EI) vai fazer o que é estrategicamente
inevitável: se perde território, vai expandir-se por outros novos; vai
desmobilizar homens na área e fazê-los regressar aos países de origem, França,
Bélgica, Alemanha, Holanda e Inglaterra, que constituirão uma espécie de
“quinta coluna”, que irá reaparecer quando necessário. Os países do Norte de
África vão também receber combatentes que estavam no EI e os que combateram ao
lado de Bashar al-Assad, que também está a desmobilizar. Isto implica que a
Europa disponha de um sistema de informações que não pode ser um somatório de
sistemas, mas em que a colaboração é indispensável e imediata. E, finalmente, a
Europa tem que olhar para a defesa. Até aqui, esta não era uma prioridade, e
não se sabe ainda qual será a ligação que a Inglaterra, que é uma potência
atómica, terá depois do ‘Brexit’.
E há a
estabilidade financeira.
A moeda única
implica uma estabilidade financeira que não está garantida, há uma divergência
face aos países do Sul. Há várias propostas de reorganização, algumas estão
adquiridas, outras serão discutidas e terão de ser implementadas até às
eleições para o Parlamento Europeu. A mais importante tem a ver com a criação
de um Fundo Monetário Europeu, uma unificação fiscal e social, porque não é
possível haver 27 sistemas fiscais diferentes e em competição aberta. Mas não é
só isso. São necessárias modificações significativas na área social,
nomeadamente criar uma solução solidária para o desemprego, e que se conclua a
união bancária, para que a segurança dos investidores bancários não fique
confinada a cada país, mas seja entregue ao conjunto dos países da UE.
Estão criadas as
condições para a mudança?
Há agora melhores
condições do que nunca. Há uma maior consciencialização na Europa, houve um
grande susto nas eleições francesas, uma situação particular na Europa Oriental
e a própria solução política alemã CDU/CSU-SPD há de ser mais aberta, tanto por
força do próprio SPD como da aprendizagem da senhora Merkel, que percebeu que
os populismos, afinal, não aconteciam só fora, o partido de extrema-direita de
inspiração nazi tem cerca de 90 lugares no Parlamento. A segurança da Alemanha
deriva da segurança europeia e a sua estabilidade económica também depende do
mercado europeu. Há boas condições para a Europa adquirir uma nova arquitetura
e respeitar os seus valores, que podem fazer dela uma potência tranquila capaz
de manter uma certa intervenção de pacificação no mundo, obrigando-a ao mesmo
tempo a responder aos desafios da economia moderna.
Exclui a
possibilidade de adesão da Turquia?
A Turquia tem
outros valores. Erdogan nunca esteve verdadeiramente interessado em aderir à
UE. Fez todo este espetáculo porque a UE impunha condições para a adesão e uma
delas era a subordinação das FA ao poder político. Isso permitir-lhe-ia
domesticar as FA, como fez. Elas eram o principal bastião progressivo e
depositário da herança de Kemal Atatürk e sustentavam politicamente o movimento
progressista. Resolvido esse problema, Erdogan tem mostrado o que é, um
indivíduo que pensa na velha Turquia otomana. A motivação geopolítica é muito
compreensível, não quer que os curdos tenham qualquer hipótese, são uma ameaça
militar terrível, como demonstraram na Síria e no Iraque. É um homem que não
está preocupado com os direitos europeus, nem com a liberdade de expressão. A
construção do seu palácio brada aos céus e demonstra até que ponto há ali uma
megalomania.
Foi o Presidente
da República mais novo, aos 41 anos, e também o que teve mais poderes na
história recente do país. O que conseguiu mudar?
Quem tem muito
poder não tem poder nenhum, sobretudo quando os que tem conflituam. Eu tinha o
poder político como Presidente da República, e o poder militar, que tem uma
cultura muito diferente da cultura política. A política é a arte do possível, a
cultura militar é a arte de se fazer o que se deve, o compromisso, o que a
instituição impõe. Portanto, a instituição militar não via muito bem a
instituição política. Depois havia um Conselho da Revolução, com poderes que eu
tinha que ter em consideração, e que, devido à ação de muitos conselheiros, me
deu uma colaboração boa. Em termos formais tive muito poder, é certo, mas tive
de o executar com grande prudência. Há o poder que se exerce numa democracia
institucionalizada e o que se exerce na institucionalização e consolidação de
uma transição democrática. Eu tinha lido e refletido sobre as obras do Eduardo
Lourenço e do padre Manuel Antunes e entendia que era indispensável uma reforma
estratégica do país, definir um novo horizonte. Mas não era possível fazer uma
estratégia deste tipo com umas FA em perturbação e uma luta intestina
partidária. Mesmo depois de reinstitucionalizadas formalmente as FA, não era
possível fazer isto porque os partidos e a população estavam a aprender a
democracia, até a utilizar uma linguagem democrática. Isso impediu que esta
grande necessidade, historicamente evidente, não tivesse tido resposta, embora
eu me tivesse empenhado nela.
E o que não
conseguiu fazer?
Hoje entendo que
devia ter sido muito mais exigente numa reforma educativa profunda, forçando os
partidos a empenharem-se. Uma reforma que fosse definida por especialistas
nacionais e estrangeiros, que se tivesse debruçado sobre os melhores exemplos
alemão, americano, japonês, francês, e que tivesse podido criar condições para que
tudo o resto, a modernização económica e o desenvolvimento social, se tivesse
realizado. Não é que não tenha pensado nisso nessa altura, mas entendia que
numa relação em que se estão a estabelecer as instituições e a fazer a rodagem
da sua interação, o modelo impositivo do Presidente iria desencadear uma reação
partidária terrível. E só iria por diante com o apoio do Conselho da Revolução
e o apoio tácito das FA. Isto introduzia uma contradição que eu tinha dúvidas
que conseguisse liderar com suficiência virtuosa. Hoje penso que teria sido bom
correr esse risco, a situação do país podia ser diferente.
Sentiu a sua
imagem prisioneira do 25 de Novembro?
Isso aconteceu,
mas aceitei-o com naturalidade, porque quando se participa num evento com muita
visibilidade e impacto emocional, isso fica. Esquecemos com grande facilidade
as coisas muito pensadas mas não as emocionais. Há um livro, “A Psicoterapia de
Deus”, do professor da Universidade de Toulon, Boris Cyrulnik, que mostra como
muitos meninos soldados esqueceram tudo mas não esqueceram os momentos
traumatizantes da guerra. É tão vivo, tão impressivo, tão violento, que miúdos
que ele entrevistou — cristãos e muçulmanos — explicam que só encontram paz na
mesquita ou na igreja, porque o deus que estas instituições representam é um
deus de afeto.
O que lembra com
mais intensidade desse período?
A
institucionalização das FA, que se tinham fragmentarizado e, pior,
caudilhizado, havia caudilhos. Por outro lado, numa situação de grande
impreparação e insegurança, aqueles homens deixaram de ter uma relação de
lealdade com as FA e criaram uma relação de afetividade com as forças
partidárias. Havia um conflito geracional muito complicado e entre aqueles que
tinham feito o 25 de Abril e os outros. E havia ainda uma questão
inultrapassável: muitos dos responsáveis do 25 de Abril queriam um Exército
novo — como se poderia fazê-lo, mantendo os nossos compromissos na NATO? E
mesmo que assim não fosse, qual era o modelo do Exército novo, o suíço? Não era
viável em Portugal. Eu tive de reinstitucionalizar as FA, devolver à
instituição militar a sua ideologia formal — unidade, hierarquia, disciplina,
competência, eficácia e a oportunidade. Foi extremamente difícil. Claro que
este trabalho foi feito por muita gente, nomeadamente pelos nossos camaradas do
Conselho da Revolução, mas foi extremamente difícil. Outra coisa difícil — e
essa muito gratificante: penso que consegui, com a colaboração de muitos,
devolver um certo espírito de tolerância à sociedade civil. Com o 25 de Abril
houve perseguições inaceitáveis, um país não se faz com parte dos seus filhos,
faz-se com todos. A pouco e pouco, os portugueses começaram a sentir que, além
de todas as diferenças ideológicas e de interesses, havia em comum a cultura, o
local de nascimento, o futuro. A democracia é pluralidade, é conflito, mas
muitas pessoas tinham-se ido embora e muitos eram homens de alta competência
profissional, penso por exemplo em Jardim Gonçalves. Fiz tudo o que pude para
que voltassem e em parte resultou.
Estamos pois a
falar do seu legado político.
Sim. Um outro
trabalho foi termos conseguido poucos anos depois da descolonização normalizar
as relações com todos os países, nomeadamente Angola, o que não foi nada fácil
e para o que contribuíram muitos africanos, nomeadamente Luís Cabral. Outro
trabalho foi a reconciliação dos emigrantes com o país. Com as nacionalizações
deixaram de mandar divisas e estavam muito apreensivos. Foi preciso
esclarecê-los, mobilizá-los, restabelecer a ligação com o país, tentar organizá-los
nos países de acolhimento para que fossem uma força política capaz de dialogar
com o poder e conseguir benefícios e tentar que ajudassem a modernizar a
economia portuguesa. Neste aspeto Vítor Alves teve um papel notável.
Porque se meteu
na política?
Conhecia
relativamente bem a história militar, fiz, em Direito, Ciência Política e
Direito Constitucional, deixei a Psicologia, onde tinha feito o 3º ano, porque
entendi que era necessário ter mais conhecimento político. Sabia que as FA
tinham sido secularmente condenadas a ocupar o vazio criado pela incapacidade
de ação política dos políticos. Aconteceu no rotativismo monárquico, na 1ª
República, no Estado Novo. Dada a perturbação da altura, entendia que podia
criar-se de novo um vazio e as FA seriam condenadas a ocupá-lo. Seria muito
prejudicial para elas e inaceitável para o país, porque sem o império, que foi
a solução coletiva durante séculos, a Europa não iria aceitar-nos se não
tivéssemos um regime consentâneo com os seus valores. Entendi por isso que era
necessário travar uma luta no plano político. Foi isso que me empurrou para a
cena política, com a preocupação de vir a criar condições para que, acabando
definitivamente o ciclo colonial, Portugal pudesse desenhar um propósito
estratégico coletivo com a Europa e permitisse que o país resolvesse os seus
males endémicos, nomeadamente a modernização económica e o desenvolvimento
social. Basta pensar no que era a educação, apesar da grande reforma de Veiga
Simão e de outras reformas feitas por Marcello Caetano, que iam no sentido da
modernização do país e, a prazo, de uma democratização inevitável.
Lidou com muitos
políticos. De quais se tornou admirador?
Henrique de
Barros, Palma Carlos, Salgado Zenha… e os então novos políticos António
Barreto, Medeiros Ferreira, Mota Amaral, entre muitos outros. Havia políticos
de grande qualidade. A classe política emergente depois de Abril não tinha uma
grande experiência na ação política, mas era constituída por homens de grande
mérito, porque tinham feito grandes carreiras profissionais, tinham mantido
fidelidade aos princípios numa altura extremamente difícil, tinham manifestado
grande coragem e sentido do bem comum. Há outros políticos por quem, não tendo
esta admiração, tinha grande apreço, pela coerência que manifestaram durante
aquele período.
Disse numa
entrevista há poucos anos ser “um velho preocupado com saudades do futuro”, o
futuro que sonhara para os seus filhos. O que sonhou no 25 de Abril que não se
concretizou?
Hoje sou um velho
mais velho com a mesma preocupação. Entendia que íamos criar uma democracia que
não fosse meramente formal, procedimental, mas profunda, em que reconhecêssemos
o mérito, respeitássemos a dignidade e se impusesse a todos a ética do bem
comum. Isso era um pouco utópico, reconheço hoje, mas era o que eu e muitos dos
meus camaradas pensávamos. Pensávamos que podíamos criar um desenvolvimento
económico com um Estado social que não deixasse ninguém para trás. Isso
infelizmente não aconteceu, muitos foram os que deixámos para trás e deixamos
ainda.
Mas no início da
entrevista falou da necessidade de “utopias realizáveis”. Em quê ou em quem
reside a sua esperança?
Há uma frase que
nunca esqueci de Delors, que diz, já velho, que nunca renunciou nem à utopia
nem à revolta. Quando se está vivo politicamente e se entende que se tem uma
responsabilidade na realização do bem comum, nunca se perde a utopia e dá-se
sempre força à revolta, democrática, evidentemente. Há utopias realizáveis,
sim, mas em vez de perdermos tempo com a discussão do fait divers, não seria
melhor que os nossos intelectuais, grandes escolas, fundações perdessem o seu
tempo numa reflexão profunda do que é o país, quais os seus males endémicos,
quais as suas capacidades e respostas possíveis?
Cita muitas vezes
autores humanistas, como Rousseau, que defende que o homem aprende toda a vida.
Do que aprendeu na sua vida, o que pode ensinar?
Rousseau tinha
uma definição muito interessante, a de que o homem é um ser que se
perfectibiliza toda a vida, que aprende toda a vida, mas não pode aprender como
se fosse um continente fechado, mas sim um continente com ligações múltiplas à
sociedade. Sabe o que eu aprendi? Aprendi que, quando temos a sorte — não sei
se a sorte se o azar… — de nos mantermos vivos durante muito tempo, acabamos necessariamente
por olhar para trás e olharmos fundamentalmente para os nossos erros e para as
razões desses erros. O que nos retempera é quando sabemos que fizemos tudo o
que nos era possível pelos outros, pelos nossos filhos, amigos, pelos nossos
concidadãos. Tudo num respeito grande por valores civilizacionais e que têm uma
determinação e um objetivo ético. Quando olho para o espelho, além de verificar
que estou velho, entendo que estou em paz comigo mesmo. Posso ter cometido
erros mas entendo que os cometi quase sempre com bom propósito, boa intenção,
com uma correção ética preocupada.
“PUSEMOS AS
FORÇAS ARMADAS NUM GUETO. ELAS NÃO TÊM A AUTONOMIA INSTITUCIONAL SUFICIENTE”
Como explica um
acontecimento como Tancos?
Não queria falar
sobre isso porque não tenho informação suficiente. Preocupa-me
extraordinariamente.
A situação das FA
degradou-se muito?
Há essa ideia,
mas não concordo. Há um quadro de oficiais e sargentos com muito mais qualidade
do que no meu tempo. A preparação é moderna, as FA foram reestruturadas e a sua
atuação no estrangeiro tem merecido elogios internacionais. A sua preparação é
notável, visando a competência, a responsabilidade, a eficácia. Mas não se olha
para as FA, o seu perfil institucional ou as suas capacidades disponíveis, que
podem ser utilizadas no país. Até dá a impressão que tem havido uma
transferência de algumas das suas capacidades e responsabilidades para as
forças de segurança.
Por exemplo?
As forças de
segurança estiveram no Iraque, o que não era próprio das forças de segurança
mas das FA. São elas que representam o país nas ações militares no estrangeiro.
Por outro lado, as suas capacidades não têm sido aproveitadas, e elas têm-nas
em matéria de transportes, sobretudo em situações de emergência, ou em
situações sanitárias graves, elas têm um corpo médico de grande qualidade e em
situações diversas de carácter geoespacial. Além disso, têm uma engenharia
muito capaz, que está mobilizada 24h sobre 24h, como se viu nos incêndios. E têm
uma alta competência no campo dos ciberataques. Deveria haver maior preocupação
em usá-las e responsabilizar os seus chefes. Passaram elas a ter um papel
irrelevante no recrutamento, incorporação, promoções e gestão financeira, o que
é prejudicial ao exercício eficaz e correto da sua função. Tem de haver
unidade, hierarquia, competência e oportunidade nas decisões. Quando há uma
dependência financeira apertada, os chefes têm dificuldade em responder com
oportunidade ao que são os sentimentos e necessidades dos seus homens. Pode e
deve haver uma confiança absoluta nas FA porque desde o 25 de Abril têm tido um
comportamento institucional exemplar. Quando houve a necessidade de as
reinstitucionalizar depois do 25 de Novembro, foi complicado, mas fez-se. Depois,
elas têm cumprido de modo exemplar todas as funções atribuídas pelo poder
político. E há que ter em consideração que a Europa passará a preocupar-se com
a sua defesa e Portugal tem sido um fornecedor de segurança de qualidade e
deverá continuar a sê-lo, até para aumentar a nossa capacidade de intervenção a
nível europeu. É necessário olhar para as FA, ouvi-las mais, e dispensar-lhes
cuidados que são democraticamente razoáveis e que poderão fazer com que elas
deem ao país o que delas ele precisa.
A instituição
está excessivamente dependente do poder político?
As FA devem estar
dependentes do poder político. Mas uma coisa é a dependência, outra é não terem
liberdade suficiente para responderem em tempo ao que são as suas necessidades
e as exigências que em boa verdade o país devia fazer às FA.
Parece uma
pescadinha de rabo na boca.
Há uma
dependência virtuosa e outra tendencialmente perversa. É necessário que as FA
sejam plenamente responsáveis perante o poder político e devem ter até uma
dependência mais visível da própria Assembleia da República. Mas devem ter
autonomia institucional, até para evitar que as associações profissionais
possam ser tentadas a mudar a sua índole e ser mais de índole sindical.
As FA não têm
autonomia institucional?
Não têm a autonomia
institucional suficiente. Em França, existe um alto comité para a condição
militar, que é dirigido por um senador, e que faz um relatório anual para o
Presidente e a Assembleia Nacional. Aqui talvez houvesse interesse em perceber
como é que podemos exigir aos militares tudo o que é nacionalmente necessário,
legal e legítimo, mas dando as condições mínimas suficientes para que se sintam
motivados e possam dar as respostas com competência, eficácia e empenho.
Temos as FA que o
Estado precisa?
É uma questão que
devia ser discutida entre o Estado e a sociedade civil. O que é que quer o
Estado das FA? É o mesmo que quer a sociedade civil? Chegando a um
entendimento, fazer uma definição estratégica das FA em matéria de efetivos,
instrução, etc. A partir daí, os militares sabem qual o propósito do país e
responderão da melhor maneira. Mas há uma certa indefinição. Tem de haver uma
clarificação indispensável para que a instituição militar possa ser um
instrumento importante nas mãos do Estado e para a sua ação externa e não só.
Mas os jovens não
estão a aderir à instituição militar.
A pergunta é:
porquê?A instituição militar é extremamente exigente e, possivelmente, as
remunerações não são suficientemente compensadoras. Muitos países estão a
voltar ao serviço militar obrigatório, ou a fazer uma espécie de serviço
cívico, sendo que os jovens que o fazem têm facilidades de emprego, nas
escolas, etc. Não podemos pensar no regresso do serviço militar obrigatório,
isso está afastado, a nossa população jovem não o aceitaria, mas podíamos
pensar num serviço cívico obrigatório e, quem sabe, o interior talvez fosse
beneficiado com isso, a proteção das florestas beneficiasse, a saúde (se os
médicos tivessem de fazer algum tempo no interior), e permitir-se que alguns dos
mancebos pudessem fazer o serviço militar, que devia ser mais atrativo. Agora,
com uma fraca remuneração, em que ao fim de alguns anos saem e têm de iniciar
uma outra atividade, não é fácil.
As populações
mais jovens, que viveram sempre em paz, estão distantes das FA.
Os jovens não têm
essa consciência e eu pergunto: porque é que deviam ter? Isso é indispensável
numa democracia adulta, mas não acontece naturalmente. Deveria ser o Estado,
através da educação. Devia permitir que os jovens se apercebessem dos objetivos
das instituições e não apenas da militar, para terem capacidade para refletir
sobre o que representam e motivarem para participar de outra maneira. Não há
nenhuma informação sobre as FA, há pouca sobre o seu papel na História e ainda
se estigmatiza o seu papel nomeadamente na guerra colonial, dizendo-se que
foram elas que a fizeram. Não é verdade. Fizeram-na porque entendiam que era
possível fazê-la de maneira correta e benéfica para o país e os povos
coloniais.
E como?
Numa guerra
revolucionária cabe às FA acantonar o inimigo, concentrar as populações em
aldeamentos, promover socialmente essas populações, com médico, escola, etc., e
dar tempo ao poder político para responder. Este responde com infraestruturas,
com medidas de carácter social – como escolas, etc. – e a indicação de uma data
para realização de eleições supervisionadas internacionalmente. As FA entendiam
que isto se podia fazer. Quando houvesse esses referendos, concorreriam os
movimentos de libertação que porventura se desarmassem e todos os movimentos
políticos ou partidos que o próprio Estado português pudesse ter estimulado. As
eleições acabariam por eventualmente dar soluções diferentes daquelas que
ocorreram e que pudessem ter sido de pacificação e mais forte ligação a
Portugal. Os militares fizeram a guerra por estas razões e depois fizeram a
descolonização, de que são acusados. Quando o Estado não consegue responder ao
seu papel e pôr termo à guerra, e quando há uma revolução, o que se faz? Não é
numa altura em que os cidadãos não querem ir para a guerra – e percebe-se – que
se vai continuá-la. A única solução era a paz através de negociações com os
movimentos de libertação. Nós devíamos esclarecer a população acerca do papel
das FA e explicar que, numa situação repetidamente imperial, como foi a
situação histórica portuguesa, as FA têm um papel político a desempenhar.
Devíamos explicar o que eram as FA, porque o eram, o que são e como poderão
ser. Chegaríamos à conclusão de que as Forças Armadas foram uma grande escola.
De identidade nacional, porque estavam portugueses de todas as áreas; de
igualização baseada no mérito, porque nas FA entravam todos e não eram só os
oriundos de um estrato económico elevado que ocupavam uma função
hierarquicamente elevada, o filho do trabalhador podia ser oficial e o de um
grande empresário soldado raso. Ali percebia-se que era o mérito que distinguia
as pessoas e não o estatuto socioeconómico. Isso não tem sido dito. E num país
em que o abandono escolar é tão grande, e que a população que sai do secundário
e universitário é tão pequena, as FA poderiam ter um papel na requalificação
académico-profissional dos cidadãos, como já tiveram. E seria possível que as
FA tivessem, através de um serviço cívico obrigatório, um papel na resposta a
situações problemáticas. Nas FA, dada a disciplina e a igualização, certamente
algumas razões que motivam os desmandos de alguns jovens poderiam ser evitadas.
“TODOS OS PAÍSES
ESTÃO A ARMAR-SE. PODEMOS ENTRAR NUMA NOVA GUERRA FRIA MAIS TECNOLÓGICA”
Diz que a paz
mundial não está garantida, uma vez que se assiste ao armamento de várias
nações. Que conflitos potenciais o preocupam?
Quando se olha
para esta nova corrida armamentista todos devemos ficar preocupados. Se Trump
aumentou em muito o orçamento para a defesa, é bom não esquecer que Obama já
tinha no seu último ano considerado um orçamento grande. Isto acontece porque
os geoestrategas americanos entendem que a situação é de novo muito complicada.
A Rússia, que se julgava ir ter um período de grandes dificuldades e que ia
responder às exigências sociais da população, não fez nada disso, aproveitou o
rendimento petrolífero para remodelar e armar as FA. Quando todo o Ocidente esperava
que as FA russas estivessem em mau estado, elas apareceram na Síria com alto
grau de preparação, novas tecnologias, grande instrução, eficácia e novos
meios.
Os próprios
Estados Unidos pareciam então acreditar que a Rússia não teria esse
protagonismo militar.
A Rússia
aproveita para fazer um novo jogo na cena mundial, faz uma coligação com a
Turquia, o Irão e a China. Os EUA entendem que esta coligação, a reafirmação
militar russa e o crescimento exponencial da China são uma ameaça e talvez
tenham uma certa razão. O líder chinês Xi Jinping tinha prometido que os atóis
e ilhéus em que construíram ilhotas não seriam armados, mas algumas delas
estão-no fortemente, com armas antiaéreas extremamente sofisticadas. Além
disso, há aspetos preocupantes no Médio Oriente, entre xiitas e sunitas,
potenciados com o novo príncipe da Arábia Saudita, que quer fazer grandes
modificações, até porque 70% da população tem menos de 30 anos e é menos
tolerante do que os mais velhos. O Irão não está disposto a deixar pôr de pé
uma aliança entre sunitas e até com Israel. Não vai haver nenhuma intervenção
dos EUA na área, mas pode haver uma de Israel ou da Arábia Saudita, o que teria
efeitos imediatos, pelo menos na economia mundial, através do aumento do preço
do petróleo bruto.
E há o problema
da Coreia do Norte.
Não é uma ameaça
para os EUA. O seu Presidente, que é ridicularizado em permanência, é esperto e
procura apenas evitar que lhe aconteça o que aconteceu a Saddam ou Kadhafi e o
que não aconteceu a Bashar al-Assad porque a Rússia o ajudou. Isso consegue-se
aumentando a credibilidade da ameaça. Embora não haja previsivelmente uma
intervenção militar americana, pode haver qualquer descontrolo que leve a uma
situação de guerra. Os chineses estão a construir na fronteira com a Coreia do
Norte grandes campos de refugiados. Como eles planeiam a longo prazo, podem
achar que haverá manifestações sociais mais tarde ou mais cedo, mas também pode
ser que admitam a hipótese de um conflito.
Como a Rússia, a
China está a armar-se.
Todos os países
estão a armar-se. São consideradas ameaças para os estrategas americanos. Estou
convencido de que não vai haver uma guerra porque existe a chamada ameaça
nuclear mutuamente assegurada, mas podemos entrar numa nova Guerra Fria mais
tecnológica e muito complicada. Em todos os momentos da História houve uma
potência dominante. Depois da II Guerra Mundial, os EUA eram uma espécie de
provedor dos grandes interesses internacionais. Agora, estão a abdicar dessa
posição. Quem os deveria substituir era a China. Mas a China não quer pagar
esses custos, quer ser a maior potência económica e tecnológica mas não a
superpotência mundial, a “polícia do mundo”. Se não houver uma potência
provedora dos grandes interesses mundiais, pode haver uma perturbação que leve
a uma guerra localizada, com influência marcante na economia mundial.
Uma guerra
localizada pode estender-se?
Com a Coreia acho
que não, os EUA não irão fazer essa asneira. Existem ali dois grandes
dissuasores, a China e a Rússia. Onde as coisas são mais complicadas é no Irão
— e há quem nos EUA entenda que tem de haver uma resposta militar para o
problema. Dada a degradação da situação no Iémen e os ataques com mísseis à
Arábia Saudita, esta poderá responder sobre o Irão, com o apoio israelita mais ou
menos camuflado. Aí sim, pode haver uma guerra complicada, porque o Irão faz
nesta altura parte de uma coligação onde estão a Turquia e a Rússia. A Rússia
tem grandes interesses geoestratégicos na região e foi a sua presença na guerra
da Síria que lhe permitiu reafirmar-se como potência militar mundial.
“NA GUERRA, O
HOMEM É UM PEQUENO DEUS E UM GRANDE DEMÓNIO”
Não tenho um
poema de vida, mas vários. Aprecio muito Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner
e Eugénio de Andrade. Impressionam-me a simplicidade e a musicalidade da sua
poesia, em especial da inspirada na sua terra natal (Póvoa da Atalaia, Fundão)
e na sua infância.
O meu livro
preferido é a “Obra ao Negro”, de Marguerite Yourcenar. Pode achar-se que ele
está um pouco desatualizado temporalmente, mas acho-o extremamente importante
porque o tema da obra é a resposta da liberdade do homem a todas as dominações,
sejam elas inclusivamente religiosas. Porque também há uma dominação religiosa
que não tem nada a ver com o amor pregado por Cristo, amor que devia ser o
grande dogma da Igreja, mas tem a ver com o interesse dos homens e com
determinada hermenêutica religiosa, que está infelizmente desatualizada. Há uma
outra obra impressionante, porque mostra como é a política, como são os homens,
como é a demagogia, em que o homem é capaz de perverter valores em função
precisamente daquilo que julga que são valores: estou a pensar no “Júlio César”
(de Shakespeare) e não no Cássio, mas em Brutus, que é um homem de valores, de
preocupações, e que depois tem um comportamento de antivalores, porque tem uma
compreensão dos valores que não é correta.
Nos filmes —
“Júlio César” deu também um filme extraordinário — falo de um que apresentei
uma vez na Cinemateca Portuguesa, para surpresa de muita gente: “O Resgate do
Soldado Ryan”. É uma história extremamente interessante do absurdo que é a
guerra e como ela consegue fazer com que o homem bata no cimo e bata no fundo,
seja um pequeno Deus e um grande demónio. Ali está tudo dito de maneira
cinematográfica impressionante. E há outro filme extraordinário, “Cartas de Iwo
Jima”, porque mostra até que ponto uma cultura pode não libertar mas
escravizar, e mostra como o Exército pode ser uma instituição que leva os
homens a respeitar em si valores, ou que não tendo havido capacidade para que
eles interiorizem esses valores, se permite que eles tenham os piores
comportamentos. Estou a pensar na liquidação dos prisioneiros japoneses por
americanos.
Depoimentos
recolhidos por Luísa Meireles e Pedro Santos Guerreiro
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