Azulejos na Praça
da Figueira: um grave atentado de leso-património
A importância
deste bloco deve-se ao facto de ele constituir um arquétipo ainda intacto da
primeira fase da Reconstrução Pombalina.
ANTÓNIO SÉRGIO
ROSA DE CARVALHO
6 de Fevereiro de
2018, 6:37
Repentinamente,
fomos confrontados com um acto consumado. A fachada tardoz do importante bloco
pombalino, elemento único e da mais alta importância patrimonial, determinante
para a formação das duas praças do Rossio e da Figueira, foi coberta por
azulejos.
A importância
deste bloco deve-se ao facto de ele constituir, juntamente com o outro no Largo
de S. Paulo, já referido por mim em outro artigo no PÚBLICO, um arquétipo ainda
intacto da primeira fase da Reconstrução Pombalina, segundo os parâmetros
estabelecidos por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.
Através dos
tempos, as volumetrias e tipologias dos edifícios das duas praças foram sendo
alteradas, no processo da segunda fase da Reconstrução, ao longo do séc. XIX e
mesmo do séc. XX (Hotel Metrópole, Rossio, 1917). Daí a importância deste
bloco, representante da escala original do projecto da Casa do Risco para a
Praça do Rossio.
Este casus da
proposta dos azulejos para a Praça da Figueira conheceu várias peripécias, com
momentos e episódios mais ou menos obscuros. Assim, o projecto inicial da
iniciativa de Daciano Costa data de 2001, no período do mandato de João Soares,
que simultaneamente se viu confrontado com todo o projecto para o Elevador do
Castelo.
O projecto, que
era caracterizado por uma polémica intervenção de radical afirmação em ruptura
e contraste com o legado patrimonial, através de uma linguagem “de azulejos
azuis e brancos mais escuros nos andares de baixo e mais claros nos pisos de
cima, de modo a criar um efeito degradée”, não foi realizado, e os respectivos
cem mil azulejos foram guardados num armazém em Alcântara.
Em 2004, o
projecto regressa, agora no mandato de Carmona Rodrigues, o que levou a uma
nova proposta de azulejos, agora fabricados na Viúva Lamego seguindo novas
exigências técnicas que se pretendiam mais adequadas. Custo desta nova
operação: entre 350 e 400 mil euros.
Este processo foi
“acompanhado” por Inês Cotinelli, assessora de Carmona entre Novembro de 2003 e
Julho de 2006, filha de Daciano Costa, e também posteriormente sócia-gerente da
empresa Sociedade Daciano da Costa. É de destacar que o atelier Daciano Costa,
depois da morte do titular em 2005, passou a ser dirigido pela arquitecta Ana
Costa.
A “relação” de
Ana Costa com o pombalino foi definida numa intervenção mais do que infeliz na
Rua Ivens (31) em 2013, determinada pelo conhecido “fachadismo” preconizado e
estimulado por Manuel Salgado, em que a fachada era o resultado de um pastiche
totalmente betonizado, criando um bloco monolítico, híbrido, betonizado e
plastificado, produto do nivelamento de duas anteriores fachadas presentes em
dois edifícios originais... Mansardas pombalinas, trapeirão, gaiolas, tudo foi
sacrificado, juntamente com os interiores, com excepção da escadaria e alguns
azulejos. Quanto à fachada tardoz, esta pode-se “perspectivar” a partir do
Largo da Boa Hora, confirmando a promessa de “Apartamentos de Luxo com garagem
e vista deslumbrante”.
Já em 2017, em
função do impacto deste novo projecto para os azulejos na Praça da Figueira,
perante as exigências do Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina
que “prevê a salvaguarda dos revestimentos primitivos das fachadas” que “se
encontravam rebocadas e pintadas”, foi pedido um parecer na DGPC ao conselho
consultivo, que produziu um parecer não consensual, onde dúvidas são exprimidas
sobre o valor desta intervenção para um conjunto de Interesse Público. Para que
serve então o plano de pormenor? Qual é o papel da DGPC na salvaguarda
patrimonial da Baixa?
Na minha opinião,
como reacção a este caso, e tendo em conta a ainda vigente mas cada vez menos
provável intenção de candidatura da Baixa a Património Mundial, a DGPC devia
ter respondido com uma proposta para a classificação deste único e determinante
bloco como Monumento Nacional, garantindo assim a preservação na íntegra das
suas características exteriores e interiores. Porque parece impossível,
simplesmente, restaurar um edifício desta importância, agora, através desta
intervenção “excepcional”, dividido na linguagem das suas fachadas entre Rossio
e Figueira e “desconstruído” esquizofrenicamente e neuroticamente de forma
bipolarizada, num atentado da sua unidade indivisível?
Um grave atentado
de leso-património permitido por todos!
Historiador de
Arquitectura
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