“Lisboa necessita
de um novo impulso político para lidar com os novos desafios”
REPORTAGEM
O Corvo
Texto
URBANISMO
Cidade de Lisboa
1 Fevereiro, 2018
É preciso
perceber o que se está a passar em Lisboa e mudar a estratégia de actuação
política. Sob pena de crescer o descontentamento dos cidadãos. Quem o diz é
João Seixas, urbanista, na véspera da realização do seminário “Viver em Lisboa
– Qualidade de Vida e Governo da Cidade”, na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas (Universidade Nova de Lisboa). Em entrevista a O Corvo, o investigador
alerta para a possibilidade de a satisfação com a qualidade de vida na capital
portuguesa, que é muito alta, dar lugar ao descontentamento popular. E a
escolhas políticas radicais. Como sucedeu em Barcelona. Defende, por isso, uma
mudança de paradigma, incluindo não apenas os poderes políticos
representativos, mas também “a cidadania, os sectores económicos e os sectores
intelectuais”. Além dos efeitos da onda turística e da pressão imobiliária dos
últimos anos, Lisboa precisa de estar preparada para os grande desafios da
globalização, alerta.
No seminário
‘Viver em Lisboa – Qualidade de Vida e Governo da Cidade’, a realizar na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Universidade Nova de Lisboa), nesta
sexta-feira (2 de fevereiro), serão debatidos os resultados do inquérito
encomendado pela CML e realizado em dezembro de 2016. Tendo por universo 2.502
residentes da capital, o estudo – “Inquirição aos munícipes e agentes da cidade
de Lisboa: qualidade de vida e governação urbana” -, apresentado em maio de
2017, na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), revela altas percentagens de
satisfação dos lisboetas com a qualidade de vida na cidade e no seu bairro.
Algo que, contudo, alerta João Seixas, poderá mudar, caso os poderes políticos
não exerçam de forma inequívoca o seu poder regulatório.
A cidade tem
passado por um processo de mudança muito forte e visível. Essas alterações
influem na percepção que as pessoas têm sobre a qualidade de vida?
Há aqui muitos
elementos que estão em movimento. Antes de mais, o que é a qualidade de vida?
Existe uma percepção subjectiva para cada pessoa, antes de mais, mas também
existem questões totalmente quantitativas, como por exemplo, poder ir a pé para
o trabalho ou ter transportes públicos óptimos, ter não sei quantas árvores per
capita na sua cidade ou escolas perto de casa. Contudo, pode estar a sentir-se
insatisfeito na sua vida. Isso pode, por exemplo, acontecer a um sueco, porque
a sua qualidade de vida se encontra estável ou até pode ter decrescido
ligeiramente, nos últimos tempos. Conta muito a percepção de evolução. Enquanto
alguém de um país menos desenvolvido pode estar “alegre” ou satisfeito, porque
sente uma evolução.
Estamos, então, a
falar de um conceito muito subjectivo, quando nos referimos à qualidade de
vida, não é?
Sim e não. É
evidente que, se uma pessoa tiver péssimas condições urbanas, se não tiver
estabelecimentos públicos de proximidade, se tiver um trânsito caótico, se
tiver grande poluição, pode estar satisfeito com a sua vida, mas apercebe-se, a
pouco e pouco, que as questões comunitárias e colectivas não estão nada bem. Há
aqui questões de percepção, que jogam com os nossos anseios, necessidades e
oportunidades, mas também como colectivo. Existe uma percepção da qualidade de
vida em Lisboa como um todo. Porque Lisboa também é um símbolo, é uma marca.
É possível, ainda
assim, perceber qual a tendência da forma como as pessoas vêem a evolução da
qualidade de vida de Lisboa?
O inquérito em
causa mostra resultados contraditórios. Antes de mais, é preciso referir que
foi feito em janeiro de 2017, há um ano portanto. E isso, tendo em conta a
velocidade vertiginosa das mudanças em Lisboa, acaba por ser muito tempo.
Embora haja que referir que essas grandes mudanças vertiginosas acontecem,
sobretudo, em certos territórios e não tanto noutros. O que acontece é que o
que se está passar no centro histórico e nas zonas envolventes acaba por ter um
efeito centrifugador.
A percepção que
os lisboetas têm, neste momento, sobre a sua qualidade de vida é, portanto,
influenciada pelo que se está a passar na zona central da cidade? Nomeadamente,
pela procura turística…
É influenciado
por isso tudo, mas não colocaria a demanda turística como elemento central.
Temos que analisar todos os dados e indicadores, subjectivos e objectivos,
sejam eles à escala do indivíduos, da família, das redes, das comunidades, do
bairro ou da cidade, e cruzá-los. Cruzar este dados é uma tarefa complexa, mas
não pode ser de outra maneira. Às vezes, uma pessoa pode ter a percepção de que
a sua qualidade de vida está a melhorar bastante numa determinada escala, mas
está a piorar noutra. E até pode ter uma sensação subjectiva de que está a
piorar, mas, em termos objectivos, estar a melhorar, com mais parques ou
escolas.
Mas há ou não uma
tendência?
Os resultados são
muito positivos em termos globais. Por exemplo, 80,7% dos inquiridos indica que
a qualidade de vida ao nível do bairro é boa, sendo que 7,8% a acham muito boa.
Isto é impressionante. Ao nível da cidade, estes valores são ainda mais
positivos, considerando como boa 81,7% e 8,3% muito boa. Mas, atenção, à
primeira desmistificação: a cidade não é o seu centro histórico apenas e as
suas pressões – embora as mesmas estejam a centrifugar e atingir os bairros
menos centrais. Se o estudo fosse feito agora, muito possivelmente, os
resultados já seriam algo diferentes.
De qualquer modo,
está aqui muito evidente a satisfação, em termos globais, por dois elementos:
um tem que ver com o facto de, em meu entender, a gestão urbana da cidade ter
melhorado nos últimos dez anos, embora hajam novos elementos de pressão que se
estão a agudizar. Vamos ver se a governação da cidade é capaz de os tomar para
si. A outra realidade tem que ver com a satisfação que as pessoas – lisboetas e
os outros portugueses – têm pela colocação de Lisboa no mapa global. Isso para
um povo com enorme necessidade de auto-estima, e que passou séculos a sentir
que estava na periferia, tem um valor enorme.
Há uma certa
vaidade?
Não é vaidade.
Lisboa colocou-se nos mapas da globalização, podemos dizer que está agora na
Champions League. E isso tem um valor enorme. Mas também tem pressões enormes.
E também tem um
custo enorme. No caso, será o aumento do custo de vida…
É verdade. Agora,
resta saber se os benefícios são maiores que os prejuízos. Trata-se de fazer uma
avaliação com base em coisas tão objectivas como o preço da habitação por metro
quadrado. Depois, temos de fazer uma avaliação mais sensorial, para tentar
perceber se as pessoas se sentem bem com a alteração dessa variável. Mas
continua a ser quantitativo o preço por metro quadrado e sua evolução, bem como
a capacidade que cada família tem ou não de chegar lá. Isso é
super-quantitativo.
Existe muita
gente que se sente excluída e frustrada, porque nota que essa qualidade de vida
na cidade aumentou, mas não é para ela, é para outras pessoas.
Sim, isso pode
acontecer. Esse é um factor grande, o das desigualdades. Podemos estar a falar
de um efeito de progresso na sociedade, mas que pode estar a atingir só
determinados territórios ou alguns agentes. Mas também há agentes económicos
que vêem todo este fenómeno como algo positivo, como uma dinamização, que traz
mudança e criação de riqueza. Era isso, afinal, que nós queríamos há 10 e há 20
anos, que o mercado da reabilitação urbana em Lisboa avançasse, finalmente.
O que é que
acontece hoje? Estamos inseridos nas redes globais, com agentes globais, que
estão a investir directamente em Lisboa, com variáveis que não dominamos, mas
que desejámos. A maior parte dos políticos desejou essa abertura. Agora,
estamos a sentir que essa realidade precisa de muito mais atenção, de maior
intervenção e de uma gestão muito mais musculada. Mas o poder político ainda
não deu esse sinal.
Acha que é
necessária essa intervenção mais musculada?
A cidade, ante as
novas oportunidades e as novas pressões, precisa de um novo impulso político.
Antes de mais, pelo poder político representativo. Houve eleições há pouco
tempo e o poder político da cidade, que foi religitimado por um coligação,
precisa de uma nova abordagem para estes novos problemas. Mas, ao mesmo tempo,
também há uma responsabilidade dos diferentes sectores sociais e intelectuais
da cidade. Isto porque, muitas vezes, o poder político representativo pode ter
alguma dificuldade em perceber as necessidades de mudança. A governação é mais
complexa porque a vida na cidade também é mais complexa. Já não basta decidir
apenas sobre onde se vai construir ou colocar os transportes. O acto de
governar tem muitas externalidades.
Acha então que a
Câmara Municipal de Lisboa tem de encontrar um novo modelo de gestão da cidade,
tendo em conta esses desafios?
Gestão…é um termo
insuficiente. Prefiro a palavra governação. É necessário um novo paradigma de
governação. Não pode ser business as usual. A cidade está com novas questões e,
portanto, precisa de um novo paradigma de governação. E isso, para que não haja
mal entendidos, não quer dizer que os sistema existentes não sirvam. É
necessária é uma nova atitude.
E essa atitude
poderá passar por que género de medidas?
Em primeiro
lugar, fazermos um diagnóstico, conhecermos os problemas da cidade, percebermos
o que se passa. Aí, as universidades podem ter um papel a desempenhar. E então,
depois, termos uma visão daquilo que pretendemos para cada bairro, para a
cidade e para a metrópole. Para que isso aconteça, é necessário que os poderes
políticos sejam musculados e eficazes e que trabalhem em conjunto com as forças
vivas da cidade. Isso dá trabalho. Mas as novas necessidades da cidade são tão
grande e diferentes de há cinco anos, que temos de encarar a questão.
Quais são as
novas necessidades da cidade?
A cidade de
Lisboa tem, neste momento, quatro grande áreas de desafios. A primeira é nova
economia e os desafios que provoca em termos de trabalho, de criação, de
projectos e rendimentos, para o indivíduo e para as famílias. É isso que define
uma cidade, em conjunto com a questão do habitat, que é a segunda grande área.
Nessa questão do habitat, conjugam-se dois aspectos em Lisboa. Antes de mais, a
qualificação do espaço público na cidade, que está a melhorar…
Isso é
irrefutável…
Sim, está a
melhorar, mas ainda há muito a fazer. Porque a qualificação do espaço público
já não é apenas fazer o (programa) Uma Praça em Cada Bairro ou renovar o
Saldanha ou pôr a Ribeira das Naus bastante bonita. Há muito a fazer por esse
sistema urbano fora, em cada beco, por exemplo, em sítios como Benfica, Marvila
e noutras zonas.
Há muito por
fazer…
E, tal como
estamos a assistir a uma mudança de paradigma no emprego, que é cada vez mais
‘não permanente’, também temos que assumir que há mudanças no uso da habitação.
Porque há residente permanentes, mas também há semi-permanentes, os ‘city
users’. Não se trata apenas de residentes versus os turistas. Há uma classe
cada vez maior entre o residente permanente e o turista que se vai instalando
nas cidades. E isso influencia imenso o mercado imobiliário. Tornou-se uma
questão charneira e na qual é preciso actuar.
Os princípios já estão
imbuídos nos projectos charneira, mas há toda uma cidade para fazer isso.
Pegando nesse princípio regenerador do Uma Praça em Cada Bairro, gostava que
toda a cidade fosse uma praça. Só que, como falava atrás, no habitat existe uma
outra questão muito importante, que é o problema da habitação. Esta
transformou-se na questão central em Lisboa, neste momento. Embora não nos
possamos esquecer da questão do emprego.
Como?
Na habitação, há
obviamente formas de continuar a atrair investimento para o imobiliário, mas,
ao mesmo tempo, defendendo o direito à cidade para todos. Há formas de defender
essa equação.
Acha isso
possível? Neste momento, o que está à vista do cidadão comum, e por mais que o
discurso da Câmara de Lisboa seja outro, é a realidade dura do mercado
imobiliário. O mercado dita as regras…
Sim, porque ainda
há grandes desfasamentos. Na verdade, até têm aumentado os desfasamentos entre
as oportunidades imobiliárias que a cidade vai criando e a cada vez maior
dificuldade que as famílias residentes e semi-residentes têm para encontrar uma
casa.
Como é que se
pode mudar este estado de coisas?
Uma forma
inteligente de lida com o fenómeno seria a de tentar usar a favor da cidade a
enorme força financeira e imobiliária global a que Lisboa está sujeita,
servindo-se dela para melhorar o mercado da habitação. Temos que acreditar
nisso, até porque muitas cidades europeias estão a fazer essa mudança de
paradigma. Não é fácil, porque há uma super-estrutura normativa, política e mental
que considera que basta atrair investimento para que o mercado se regule e dê
oportunidades. Neste momento, sabemos que pode criar oportunidades, mas também
iniquidades e desigualdades, como está a acontecer em Lisboa. Portanto, é
preciso regular melhor e, ao mesmo tempo, dar satisfação aos investidores, que
têm direito à sua rentabilidade.
Como é que isso
se faz? Poderia ser, por exemplo, através da imposição de quotas nos edifícios
de andares com rendas acessíveis?
Sim, isso poderia
ser. Mas, antes de optar por essa via mais restritiva, seria talvez mais
interessante criar fórmulas em que os investidores, nacionais e internacionais,
estivessem interessados em canalizar o seu dinheiro para habitação a custos
controlados e para habitação mais acessível. Há várias formas de o fazer. É
evidente que pode haver muitas operações financeiras, que obtenção rápida de
lucros, que considerem essa equação não tão interessante. Mas um investidor
inteligente, interessado em ter rentabilidade no longo prazo, segura e com
menos risco, pode estar interessado.
O mercado
imobiliário é um mercado de tempos longos. Vai ser necessária uma redefinição
das equações políticas para que, por sua vez, influenciem as equações
financeiras, dos investidores, para que proporcionem a uma cidade como Lisboa
maiores oportunidades para a maior parte da sociedade. Isso é possível fazer.
Isto aconteceu no século no século XX, em que uma grande parte dos
investimentos privados e públicos foram dirigidos para dotar a cidade de
habitação. É possível fazê-lo de novo. Claro que há agora efeitos novos. A
pressão sobre o mercado imobiliário no centro é tão grande, que se torna mais
difícil. Mais aí é preciso regular.
Que os poderes
públicos não tenham medo de assumir o seu papel central de reguladores.
Claro. Precisamos
do seu papel mais do que nunca. Neste tempo, em que os investimentos se
tornaram de escala global, precisamos de um papel de governação de cidade mais
activo do que nunca. Sob pena de a percepção dos cidadãos sobre a sua qualidade
de vida poder sofrer um desgaste muito sério. Sabemos hoje que, por uma série
de factores, que não apenas a percepção da qualidade de vida, que as sociedades
podem muito rapidamente mudar de tendência.
Temos visto o que
se tem passado com o Brexit, as eleições norte-americanas ou na Catalunha. Este
último caso, por exemplo, tem muito que ver com um sentimento que as pessoas
têm de que estão a perder algo, que não sabem bem o que é, mas consideravam
relativamente seguro. E um desses activos muito importantes chama-se cidade.
Isso aconteceu em Barcelona.
Aliás, tal
sentimento foi notório, através de atitudes anti-turismo de alguns grupos mais
radicais.
Sim, mas isso é a
ponta do iceberg em termos de contestação. Depois, há uma sociedade inteira que
nota que há pressões do mercado imobiliário, que em muitos casos a política não
consegue acompanhar e, portanto, as pessoas sentem-se insatisfeitas.
Teme que, aqui em
Lisboa, salvaguardando as devidas diferenças, se possa criar um sentimento
semelhante?
Ainda não estamos
aí. Preferíamos que não chegássemos lá.
Mas acha que as
pessoas, em Lisboa, se se sentirem muito acossadas por essa ideia de que estão
a ser empurradas para fora da cidade, poderão ter tendência a deixar-se seduzir
por ideias políticas mais radicais?
Sim, claro. Pode
acontecer em qualquer sociedade. Nós não somos excepção. Preferia que isso não
se tivesse que equacionar, daqui a uns tempos, cá em Lisboa. É preciso que os
poderes políticos actuais, que são democráticos, tenham capacidade de regular
aquilo que as pessoas sentem como algum risco de perda. Há esse risco, embora
nós ainda estejamos numa fase anterior, em que, como viu, 80% das pessoas estão
satisfeitas com a qualidade de vida na cidade. Parece um paradoxo, mas é algo
que pode acontecer. Se formos olhar pra inquéritos à qualidade de vida em
Barcelona há 10 ou 15, teriam resultados semelhantes. E agora as pessoas sentem
uma ameaça à sua qualidade de vida, a percepção altera-se.
Para além das já
referidas preocupações com o trabalho e o habitat, há ainda duas áreas com
desafios que se põem a Lisboa, não é?
Sim, e são muito
importantes. Uma delas é a ecologia e a outra a identidade. No que se refere à
ecologia, estamos a assistir a alterações climáticas, temos que fazer uma
mudança profunda nos paradigmas de consumos, de comportamentos. A salvação
ecológica do planeta vai ser determinada pela nossa mudança de comportamentos
nas cidades. E Lisboa, nesse aspecto, não é periférica.
Por último, temos
a questão da identidade e do reconhecimento cultural. Num mundo cada vez mais
global e online em permanência, temos de ter a capacidade de nos focarmos
naquilo que podemos conceber como comunidade. Se não, andamos todos cada vez
mais atomizados. Aí há um papel fundamental dos governos territoriais, como as
juntas de freguesia e a CML. A junta de freguesia tem de promover encontros
cívicos, bibliotecas, actividades culturais, algo mais virado para o futuro e o
reconhecimento da comunidade.
Mas parte desse
trabalho já é feito. Algumas juntas têm mesmo um trabalho muito interessante.
Sim, mas acho
que, face ao tsunami digital em que andamos envolvidos, é um trabalho enorme
que é preciso fazer. As ferramentas tecnológicas também nos permitiriam
trabalhar com coisas como os bancos de tempo a favor da comunidade. Há ainda
muito trabalho que pode ser desenvolvido na direcção da criação de um
sentimento de bem-comum, este é apenas um exemplo.
Sem comentários:
Enviar um comentário