Um
ano é muito tempo
MANUEL CARVALHO
05/10/2016 – 08:03
Raramente
se viu e ouviu tanto ódio e tanta paixão na vida política
nacional.
1. Na política, um
ano pode ser muito tempo. O ano de António Costa e do Governo durou
uma eternidade que exigiu doses industriais de táctica, condimentos
de talento negocial e rins elásticos para avanços e recuos, para
mimos à esquerda e à direita, para algumas acções concretas e
doses de propaganda, para aturar os partidos da coligação informal
e os militantes socialistas que ora sonham com o reformismo ora cedem
ao delírio da revolução, para gerir pressões de Bruxelas e avisos
dos mercados, para ser social-democrata sem que o pé fuja da
Terceira Via, para ouvir Passos Coelho e recordar o apocalipse da
troika, para apaparicar o Presidente e encaixar com o mesmo semblante
os golpes no ventre que vêm de Belém, para se congratular com
ministros competentes ou para desesperar com erros de casting aos
quais atribuiu pastas sonantes como a das Finanças. Ufa, António
Costa há-de estar exausto com o seu primeiro ano. E, pior ainda,
há-de ficar sem saber se governa bem ou mal. Não está sozinho no
dilema.
O Governo é para a
maioria dos observadores independentes, ou seja, para a maioria
esmagadora dos portugueses que se sentem confortáveis entre
latitudes da direita do PSD à esquerda do PS, um corpo estranho numa
tradição política à qual se tinham habituado. Depois da
experiência drástica do ajustamento, suspeitámos que algo de novo
podia acontecer. Mas nunca imaginámos que esse acontecimento fosse
capaz de federar a esquerda e de criar um bloco de poder para fazer
frente às habituais coligações do PSD/CDS. O pecado ou mérito
original, depende da perspectiva, explicam o fosso que se cavou no
país em torno da apreciação do Governo. Raramente se viu e ouviu
tanto ódio e tanta paixão na vida política nacional. António
Barreto escreveu a propósito um texto notável no DN.
Um ano depois desses
primeiros passos que levaram António Costa, Jerónimo de Sousa e
Catarina Martins a dar as mãos para afastarem a direita do poder, há
quem acredite ainda que no poder está uma coligação contranatura.
Do ponto de vista programático, é verdade que está. Mas, após um
ano de experiência, olhemos à nossa volta e tentemos avaliar os
danos que esta Europa deslaçada e esta política económica falha de
senso e de norte estão a causar aos sistemas políticos e
partidários. Depois, olhemos para o que se passa em Portugal.
Teremos então de considerar que, ao menos, o país foi poupado a um
ano de instabilidade, que as instituições funcionam e que os custos
das cedências do PS ao populismo e à demagogia do Bloco e do PCP
não são tão elevados como muitos suspeitariam.
Está bem, temos o
disparate das 35 horas na função pública, o delírio do IVA na
restauração, a insensatez de devolver sobretaxas e salários a esta
velocidade, o absurdo de um modelo económico baseado na fé do
consumo. Mas, ainda assim, o PS não cedeu no essencial do seu
programa, não desatou a renegociar a dívida pública, não deixou
de participar nas sessões do “perdoa-me” com Bruxelas, não
desiste de controlar o défice, não acha que está na hora de
“perder a vergonha e ir buscar a quem está a acumular dinheiro”
nem acredita que seja possível tributar o património mobiliário
(acções, por exemplo) numa altura em que as empresas precisam de
financiamento. Talvez uma maioria do PSD/CDS fosse mais obediente e
focada no drama das finanças públicas, mas neste momento estaríamos
a discutir a “liberdade de escolha” na educação, a fechar mais
tribunais no interior ou a ceder às exigências dos que, como o FMI,
acreditam que isto só vai lá com mais desregulação do trabalho ou
salários mais baixos. O Governo é mau e o Governo anterior foi mau
porque, convém ter isto sempre presente, o país está mal. Não há
milagres que dispensem esse duro esforço de compreensão do tempo
que vivemos – a pior crise nacional em muitas décadas.
É por isso que
custa tanto a engolir a pastilha elástica que cola este Governo ao
poder. Dizer que depois de 4 de Outubro de 2015 entrámos num “tempo
novo” que “virou a página” da austeridade é uma mentira que
os repetidos anúncios de novos impostos desmentem sem apelo nem
agravo. As finanças públicas continuam no limiar do colapso, o
Estado continua a gastar mais do que pode e deve, a carga fiscal é
asfixiante, o investimento derrapa, o produto não cresce e estas são
razões mais do que suficientes para que o Governo assuma a verdade
inconveniente: o PS e os seus aliados no Parlamento não viraram
coisa nenhuma porque a coisa não se pode virar. A culpa não é da
Europa, nem dos mercados, nem de uma construção “historicista”
como refere Pacheco Pereira. A culpa é da dívida galopante e da
dependência externa para a gerir e pagar as contas.
Se o PS prestou ao
longo deste ano um serviço ao país ao garantir uma solução de
governabilidade e ao manter no essencial a linha de rumo iniciada no
25 de Abril e aprofundada com a integração europeia, cometeu ao
mesmo tempo o crime de criar uma mitologia que blindou a verdade e o
realismo. A criação da "geringonça" fez nascer uma
ideologia optimista que, como o sol enganador ou os amanhãs que
cantam, nos leva a crer no providencialismo e a negar a realidade. A
concertação com o Bloco e com o PCP exigiu uma “narrativa” que
tem por base a propagação da ideia que o mundo mudou quando os maus
da direita foram corridos e surgiu das brumas a cavalaria da esquerda
para devolver a esperança e os direitos. Até agora, o PS sobe nas
sondagens e a coligação mantém-se em grande medida à custa dessa
mitologia. Quando, e se, for necessário ajustá-la a tempos mais
duros, toda a construção política que sustenta o Governo ameaça
ruir. Sejamos gauleses como Costa e o PS: amanhã não será a
véspera desse dia.
2. A história da
Selminho é um imbróglio que pouco pode valer do ponto de vista
substantivo, mas já teve o condão de provocar estragos na imagem da
Câmara do Porto e do seu presidente, Rui Moreira. O facto de a
Selminho ser uma empresa da família Moreira e de ter um diferendo
judicial com a autarquia não é nada do outro mundo; o acordo que
encerrou o diferendo e remeteu para o próximo Plano Director
Municipal a decisão sobre se os terrenos da empresa têm ou não uma
determinada capacidade construtiva bastam para que acreditemos que
este caso será decidido sob a égide do direito do urbanismo e não
à custa de influências políticas directas. Por que razão é então
este caso tão grave? Porque mostra que a Câmara do Porto está a
perder pergaminhos democráticos e ameaça seguir um regime
caudilhista no qual o presidente reina absolutamente sem que se
pressinta o odor do sal da democracia – a oposição.
Rui Moreira
defende-se das suspeitas e das acusações que lhe apontam o dedo
nesta questão e não faz mais do que é legítimo esperar que faça.
Mas ao elevar a voz contra os jornalistas faz regressar o município
os tempos sombrios do seu antecessor que ele tão corajosamente
denunciou e combateu. Criticar jornalistas por fazerem perguntas, por
consultarem processos, por levantarem dúvidas e colocarem problemas
é um comportamento que não encaixa na imagem liberal e cosmopolita
que Rui Moreira gosta de cultivar. Se há dúvidas e divergências de
interpretação sobre o que está em causa, é fundamental que os
jornalistas façam o seu trabalho. Não o trabalho que Rui Moreira
gostaria de ver, mas o que os jornalistas na sua competência e
liberdade acham que devem fazer.
Mas pior do que Rui
Moreira esteve o vereador do PSD Amorim Pereira, que, não podendo ir
à reunião de câmara de ontem, fez tudo para evitar que a vereadora
substituta, Andreia Júnior, ocupasse a sua cadeira para fazer
perguntas sobre o caso Selminho. Ao dizer que ia à reunião para no
final não ir, Amorim Pereira cola ao peito uma imagem de
serventuário do poder que contraria a sua conhecida irreverência.
Ora se o Porto, a cidade que tanto gosta de ostentar a sua tradição
liberal e democrática, dispensa as arengas de Rui Moreira contra a
imprensa, dispensa ainda mais este tipo de gestos que degradam a
democracia e desprestigiam os políticos.
PS – Esta coluna,
que saía ao domingo, passa a ser publicada às quartas-feiras.
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