Tão
bons lá fora, tão maus cá dentro
JOÃO MIGUEL TAVARES
06/10/2016 – 06:14
A
dimensão do país, a sua equidistância e o temperamento português
com certeza ajudaram à concretização deste improvável feito.
A eleição de
António Guterres para secretário-geral da ONU é, sem dúvida, um
feito extraordinário, tendo em conta tudo aquilo que ele tinha
contra si. Não vinha do sítio certo (nasceu no Ocidente, e dizia-se
que esta era a hora de uma figura de Leste), não tinha o sexo certo
(é homem, e dizia-se que tinha chegado a vez de uma mulher) e não
tinha o discurso certo (adoptou sempre uma postura humanista e
pró-refugiados que se dizia poder afugentar a Rússia e a China).
Ainda por cima, Guterres teve de enfrentar uma adversária de última
hora, que muitas consideravam favorita. Mas de cristalino Kristalina
só tinha o nome, e acabou por ser fragorosamente derrotada na
votação de quarta-feira, no que foi uma vitória da transparência,
como Marcelo sublinhou, e bem.
Custa-me olhar para
estas votações como se estivéssemos a assistir a um jogo da
selecção nacional, mas o patriotismo está inscrito nos nossos
genes e acaba por ser mais ou menos inevitável sentir algum orgulho
por um português atingir o mais elevado patamar na hierarquia das
Nações Unidas – uma instituição que, por muitos defeitos que
tenha, impede há mais de 70 anos a eclosão de um novo conflito
mundial. Guterres tem os princípios, a cultura, a experiência e a
capacidade de negociação necessárias para o cargo. Imagino que
continue a não ter, como nunca teve, a capacidade de decisão e a
firmeza necessária para dar murros na mesa. Mas o secretário-geral
da ONU também não tem uma mesa onde dar murros. A mesa que conta é
a do Conselho de Segurança, e aí António Guterres não tem
assento.
A competência
técnica e a sua personalidade redonda terão sido essenciais para a
vitória, como, de certa forma, já havia acontecido na Europa com
Durão Barroso. Não há outro país no mundo inteiro, seja grande ou
pequeno, que tenha tido dois cidadãos seus a ocupar os lugares de
presidente da Comissão Europeia e de secretário-geral da ONU – o
cargo mais elevado da política europeia e o cargo mais elevado da
diplomacia mundial. A dimensão do país, a sua equidistância e o
temperamento português com certeza ajudaram à concretização deste
improvável feito. Com uma dobradinha de tamanho calibre, Portugal
mais parece a Suíça das relações internacionais.
Contudo, ao mesmo
tempo que a minha costela patriótica sente alegria por António
Guterres, e lhe deseja a melhor sorte do mundo, a minha costela
realista não consegue deixar de sentir uma enorme melancolia por ver
a disparidade entre os feitos que estes dois homens alcançaram
internacionalmente e as limitações que revelaram enquanto
primeiros-ministros de Portugal. Barroso e Guterres não são
diferentes do canalizador português do Luxemburgo ou da porteira de
Paris: a qualidade que lhes foi reconhecida no estrangeiro nunca foi
revelada cá dentro.
Não é possível
olhar para isto sem apreensão. É absurdo que quem tem talento para
chegar a presidente da Comissão Europeia ou secretário-geral da ONU
não tenha qualquer talento para desempenhar o cargo de
primeiro-ministro de Portugal – e tanto Guterres como Durão
falharam redondamente em São Bento, cada um à sua maneira. Ora, o
mal não pode estar apenas nestas pessoas. O mal tem de estar nas
insuficiências estruturais do país e na tremenda inércia das suas
instituições, que secam os melhores. É por isso que ao mesmo tempo
que fico feliz por Guterres cresce a minha desilusão em relação a
Portugal. A sua vitória pessoal é um espelho da nossa derrota
colectiva.
EDITORIAL
A
missão mais difícil do mundo
DAVID DINIS
06/10/2016 – 06:29
“O melhor de todos
nós”, nas palavras do amigo e Presidente Marcelo Rebelo de Sousa,
vai ser hoje escolhido para a missão mais difícil do mundo. Esta é
a hora, portanto, de lhe desejar toda a sorte do mundo. Mas é
sobretudo a hora de dizer como todos ganhamos com esta vitória. Não
digo nós, portugueses. Digo todos.
Todos ganhamos
porque o processo de escolha abriu uma nova era nas Nações Unidas.
A escolha de António Guterres foi a mais transparente de sempre. Foi
rápida. Foi clara. E até legitimada por uma candidatura de última
hora que chumbou logo na sua primeira ida a votos (com oito votos
contra, dois dos quais vindos dos cinco que compõem o Conselho de
Segurança). O processo avançou ontem, aliás, com 13 votos a favor
do português, sem votos contra, sem vetos de qualquer dos cinco mais
poderosos. Pode dizer-se, portanto, que Guterres teve uma vitória
cristalina. E isso dá-lhe espaço para um bom começo.
Mas ganhamos todos,
também, porque foi escolhido o melhor. Não a mulher, não por
critério geográfico. Mas por reconhecimento.
António Guterres
não chegou agora à ONU, está por lá há muitos anos. No cargo de
alto-comissário correu os piores cenários, os mais difíceis
territórios. Carregou consigo a grande responsabilidade de ajudar os
refugiados sem ter o poder de mediar os conflitos. A partir de
Janeiro será muito diferente: terá a responsabilidade toda do seu
lado, mas com um poder inversamente proporcional ao título que
conquistou.
Guterres será um
capacete azul no olho de um enorme ciclone. Terá pela frente
conflitos quase insanáveis, com consequências devastadoras que
ultrapassam fronteiras. Terá pela frente um mundo com uma economia
anémica, embora cada vez mais globalizada. Terá de contar com
líderes populistas (veremos o que acontece também nos EUA). E com
um mundo muito polarizado, mas onde as superpotências ainda contam.
Na ONU, a herança
também não é a melhor. Como escrevia ontem Miguel Monjardino, os
membros do Conselho de Segurança parecem mais interessados em ter um
secretário do que um secretário-geral à frente da organização.
Não, a missão de
António Guterres não é fácil. Mas é fácil dizer, depois da
votação de ontem, que Guterres garantiu um bom princípio de
conversa. Não lhe faltam as qualidades, não lhe falta a capacidade,
tão-pouco a experiência. Nem lhe faltaram os votos dos que contam.
Para o mundo,
Guterres pode ser a esperança de que a Organização das Nações
Unidas se reerga e recupere o papel central que deve ter. Para nós,
portugueses, soma-se uma só palavra, que dirá mais do que mil
imagens: orgulho.
O
mundo que espera Guterres
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 06/10/2016 – 06:32
Era
mais fácil ser secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da
Guerra Fria ou na brevíssima e ilusória Pax Americana que se lhe
seguiu.
Em 2014, quando era
ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Laurent Fabius pediu
aos seus colaboradores que lhe respondessem a uma questão: “Porquê
tantas crises no mundo ao mesmo tempo?” Ignoramos a resposta — se
é que foi dada —, mas António Guterres deverá estar a fazer a
mesma interrogação. Há cada vez mais crises a controlar e cada vez
menos meios para o fazer.
Não cabe ao futuro
secretário-geral da ONU fazer a teoria do presente caos, mas é com
os seus actores, e já não apenas com as suas manifestações, que
ele se vai agora defrontar. Sabe que não será o líder do mundo.
Sabe apenas que a ONU está no olho do ciclone.
Ele parte de uma
experiência ou de um observatório excepcional onde muito terá
aprendido: os refugiados. As sucessivas crises de refugiados ligam-se
a sangrentos e quase insolúveis conflitos locais — “guerras dos
pobres”, como na África. Mas também são um imprevisto produto da
globalização, que não se limitou aos fluxos de bens e capitais,
mas se tornou também uma mola de movimento de populações. Aquilo a
que um filósofo chamou “a globalização do sofrimento”.
Do ponto de vista
europeu, o foco mais dramático é hoje a guerra na Síria. E o que é
a guerra na Síria? É o produto do caos regional que se seguiu às
“primaveras árabes”, a luta pela hegemonia entre as potências
do Médio Oriente, a conjugação fatal entre este conflito e o
factor religioso. Para se tornar finalmente uma ressurgência de
“guerra fria” entre a Rússia e os Estados Unidos.
A grande mudança de
estatuto de Guterres é que terá de passar da “gestão” de
crises para o plano da resolução dos conflitos. Era mais fácil ser
secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da Guerra Fria ou
na brevíssima e ilusória Pax Americana que se lhe seguiu. Emergiram
novas potências enquanto, após a guerra do Iraque, os Estados
Unidos se retraíram, deixando um vazio que nenhuma outra potência
ou coligação de potências pode preencher. Dos mares da China ao
Médio Oriente, passando pela Coreia do Norte, surgem novas ameaças.
Pesada de consequências poderá ser ainda a conjugação do
retraimento americano com a crise económica e política que avassala
a Europa. O desafio é navegar num mundo em que os Estados Unidos,
continuando a ser a “maior potência”, perderam grande parte da
influência.
Os efeitos perversos
da “nova desordem mundial” manifestam-se dentro dos próprios
Estados, numa vasta maré de retrocesso da democracia: de acordo com
o politólogo americano Larry Diamond, “entre 2000 e 2015, a
democracia ruiu em 27 países”, enquanto “muitos regimes
autoritários existentes se tornaram menos abertos, transparentes e
responsáveis perante os seus cidadãos”. A que devemos acrescentar
a perigosa deriva de países da União Europeia para modelos
nacionalistas com traços autoritários.
A nova “ordem”
internacional já não conta apenas com Estados nacionais, mas com
múltiplos actores não estatais, dos movimentos jihadistas às ONG
humanitárias.
Tal como não conta
apenas com os interesses, mas com as mais delirantes paixões. No seu
último livro, La Revanche des Passions (2015), o filósofo político
Pierre Hassner lembra que a nossa grelha de leitura do mundo e da
barbárie, inspirada no “realismo”, é cada vez menos pertinente.
Os povos não seguem tanto os seus interesses como as suas paixões:
o medo, a avidez, a vaidade, a raiva ou o desespero. “São paixões
compósitas resultantes da evolução das desigualdades e o estatuto
dos diferentes actores, como o ressentimento ou o desejo de vingança.
Os piores excessos vêm dos dominantes que temem perder o poder, dos
dominados que se tornaram dominantes, da raiva dos perdedores e da
vingança dos novos ganhadores.”
Tudo isto faz parte
do mundo que espera António Guterres.
Sem comentários:
Enviar um comentário