quinta-feira, 6 de outubro de 2016

António Guterres eleito para secretário-geral da ONU



Tão bons lá fora, tão maus cá dentro
JOÃO MIGUEL TAVARES 06/10/2016 – 06:14

A dimensão do país, a sua equidistância e o temperamento português com certeza ajudaram à concretização deste improvável feito.

A eleição de António Guterres para secretário-geral da ONU é, sem dúvida, um feito extraordinário, tendo em conta tudo aquilo que ele tinha contra si. Não vinha do sítio certo (nasceu no Ocidente, e dizia-se que esta era a hora de uma figura de Leste), não tinha o sexo certo (é homem, e dizia-se que tinha chegado a vez de uma mulher) e não tinha o discurso certo (adoptou sempre uma postura humanista e pró-refugiados que se dizia poder afugentar a Rússia e a China). Ainda por cima, Guterres teve de enfrentar uma adversária de última hora, que muitas consideravam favorita. Mas de cristalino Kristalina só tinha o nome, e acabou por ser fragorosamente derrotada na votação de quarta-feira, no que foi uma vitória da transparência, como Marcelo sublinhou, e bem.

Custa-me olhar para estas votações como se estivéssemos a assistir a um jogo da selecção nacional, mas o patriotismo está inscrito nos nossos genes e acaba por ser mais ou menos inevitável sentir algum orgulho por um português atingir o mais elevado patamar na hierarquia das Nações Unidas – uma instituição que, por muitos defeitos que tenha, impede há mais de 70 anos a eclosão de um novo conflito mundial. Guterres tem os princípios, a cultura, a experiência e a capacidade de negociação necessárias para o cargo. Imagino que continue a não ter, como nunca teve, a capacidade de decisão e a firmeza necessária para dar murros na mesa. Mas o secretário-geral da ONU também não tem uma mesa onde dar murros. A mesa que conta é a do Conselho de Segurança, e aí António Guterres não tem assento.

A competência técnica e a sua personalidade redonda terão sido essenciais para a vitória, como, de certa forma, já havia acontecido na Europa com Durão Barroso. Não há outro país no mundo inteiro, seja grande ou pequeno, que tenha tido dois cidadãos seus a ocupar os lugares de presidente da Comissão Europeia e de secretário-geral da ONU – o cargo mais elevado da política europeia e o cargo mais elevado da diplomacia mundial. A dimensão do país, a sua equidistância e o temperamento português com certeza ajudaram à concretização deste improvável feito. Com uma dobradinha de tamanho calibre, Portugal mais parece a Suíça das relações internacionais.

Contudo, ao mesmo tempo que a minha costela patriótica sente alegria por António Guterres, e lhe deseja a melhor sorte do mundo, a minha costela realista não consegue deixar de sentir uma enorme melancolia por ver a disparidade entre os feitos que estes dois homens alcançaram internacionalmente e as limitações que revelaram enquanto primeiros-ministros de Portugal. Barroso e Guterres não são diferentes do canalizador português do Luxemburgo ou da porteira de Paris: a qualidade que lhes foi reconhecida no estrangeiro nunca foi revelada cá dentro.

Não é possível olhar para isto sem apreensão. É absurdo que quem tem talento para chegar a presidente da Comissão Europeia ou secretário-geral da ONU não tenha qualquer talento para desempenhar o cargo de primeiro-ministro de Portugal – e tanto Guterres como Durão falharam redondamente em São Bento, cada um à sua maneira. Ora, o mal não pode estar apenas nestas pessoas. O mal tem de estar nas insuficiências estruturais do país e na tremenda inércia das suas instituições, que secam os melhores. É por isso que ao mesmo tempo que fico feliz por Guterres cresce a minha desilusão em relação a Portugal. A sua vitória pessoal é um espelho da nossa derrota colectiva.


EDITORIAL
A missão mais difícil do mundo
DAVID DINIS 06/10/2016 – 06:29

“O melhor de todos nós”, nas palavras do amigo e Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, vai ser hoje escolhido para a missão mais difícil do mundo. Esta é a hora, portanto, de lhe desejar toda a sorte do mundo. Mas é sobretudo a hora de dizer como todos ganhamos com esta vitória. Não digo nós, portugueses. Digo todos.

Todos ganhamos porque o processo de escolha abriu uma nova era nas Nações Unidas. A escolha de António Guterres foi a mais transparente de sempre. Foi rápida. Foi clara. E até legitimada por uma candidatura de última hora que chumbou logo na sua primeira ida a votos (com oito votos contra, dois dos quais vindos dos cinco que compõem o Conselho de Segurança). O processo avançou ontem, aliás, com 13 votos a favor do português, sem votos contra, sem vetos de qualquer dos cinco mais poderosos. Pode dizer-se, portanto, que Guterres teve uma vitória cristalina. E isso dá-lhe espaço para um bom começo.

Mas ganhamos todos, também, porque foi escolhido o melhor. Não a mulher, não por critério geográfico. Mas por reconhecimento.

António Guterres não chegou agora à ONU, está por lá há muitos anos. No cargo de alto-comissário correu os piores cenários, os mais difíceis territórios. Carregou consigo a grande responsabilidade de ajudar os refugiados sem ter o poder de mediar os conflitos. A partir de Janeiro será muito diferente: terá a responsabilidade toda do seu lado, mas com um poder inversamente proporcional ao título que conquistou.

Guterres será um capacete azul no olho de um enorme ciclone. Terá pela frente conflitos quase insanáveis, com consequências devastadoras que ultrapassam fronteiras. Terá pela frente um mundo com uma economia anémica, embora cada vez mais globalizada. Terá de contar com líderes populistas (veremos o que acontece também nos EUA). E com um mundo muito polarizado, mas onde as superpotências ainda contam.

Na ONU, a herança também não é a melhor. Como escrevia ontem Miguel Monjardino, os membros do Conselho de Segurança parecem mais interessados em ter um secretário do que um secretário-geral à frente da organização.

Não, a missão de António Guterres não é fácil. Mas é fácil dizer, depois da votação de ontem, que Guterres garantiu um bom princípio de conversa. Não lhe faltam as qualidades, não lhe falta a capacidade, tão-pouco a experiência. Nem lhe faltaram os votos dos que contam.

Para o mundo, Guterres pode ser a esperança de que a Organização das Nações Unidas se reerga e recupere o papel central que deve ter. Para nós, portugueses, soma-se uma só palavra, que dirá mais do que mil imagens: orgulho.


O mundo que espera Guterres
JORGE ALMEIDA FERNANDES 06/10/2016 – 06:32

Era mais fácil ser secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da Guerra Fria ou na brevíssima e ilusória Pax Americana que se lhe seguiu.

Em 2014, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Laurent Fabius pediu aos seus colaboradores que lhe respondessem a uma questão: “Porquê tantas crises no mundo ao mesmo tempo?” Ignoramos a resposta — se é que foi dada —, mas António Guterres deverá estar a fazer a mesma interrogação. Há cada vez mais crises a controlar e cada vez menos meios para o fazer.

Não cabe ao futuro secretário-geral da ONU fazer a teoria do presente caos, mas é com os seus actores, e já não apenas com as suas manifestações, que ele se vai agora defrontar. Sabe que não será o líder do mundo. Sabe apenas que a ONU está no olho do ciclone.

Ele parte de uma experiência ou de um observatório excepcional onde muito terá aprendido: os refugiados. As sucessivas crises de refugiados ligam-se a sangrentos e quase insolúveis conflitos locais — “guerras dos pobres”, como na África. Mas também são um imprevisto produto da globalização, que não se limitou aos fluxos de bens e capitais, mas se tornou também uma mola de movimento de populações. Aquilo a que um filósofo chamou “a globalização do sofrimento”.

Do ponto de vista europeu, o foco mais dramático é hoje a guerra na Síria. E o que é a guerra na Síria? É o produto do caos regional que se seguiu às “primaveras árabes”, a luta pela hegemonia entre as potências do Médio Oriente, a conjugação fatal entre este conflito e o factor religioso. Para se tornar finalmente uma ressurgência de “guerra fria” entre a Rússia e os Estados Unidos.

A grande mudança de estatuto de Guterres é que terá de passar da “gestão” de crises para o plano da resolução dos conflitos. Era mais fácil ser secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da Guerra Fria ou na brevíssima e ilusória Pax Americana que se lhe seguiu. Emergiram novas potências enquanto, após a guerra do Iraque, os Estados Unidos se retraíram, deixando um vazio que nenhuma outra potência ou coligação de potências pode preencher. Dos mares da China ao Médio Oriente, passando pela Coreia do Norte, surgem novas ameaças. Pesada de consequências poderá ser ainda a conjugação do retraimento americano com a crise económica e política que avassala a Europa. O desafio é navegar num mundo em que os Estados Unidos, continuando a ser a “maior potência”, perderam grande parte da influência.

Os efeitos perversos da “nova desordem mundial” manifestam-se dentro dos próprios Estados, numa vasta maré de retrocesso da democracia: de acordo com o politólogo americano Larry Diamond, “entre 2000 e 2015, a democracia ruiu em 27 países”, enquanto “muitos regimes autoritários existentes se tornaram menos abertos, transparentes e responsáveis perante os seus cidadãos”. A que devemos acrescentar a perigosa deriva de países da União Europeia para modelos nacionalistas com traços autoritários.

A nova “ordem” internacional já não conta apenas com Estados nacionais, mas com múltiplos actores não estatais, dos movimentos jihadistas às ONG humanitárias.

Tal como não conta apenas com os interesses, mas com as mais delirantes paixões. No seu último livro, La Revanche des Passions (2015), o filósofo político Pierre Hassner lembra que a nossa grelha de leitura do mundo e da barbárie, inspirada no “realismo”, é cada vez menos pertinente. Os povos não seguem tanto os seus interesses como as suas paixões: o medo, a avidez, a vaidade, a raiva ou o desespero. “São paixões compósitas resultantes da evolução das desigualdades e o estatuto dos diferentes actores, como o ressentimento ou o desejo de vingança. Os piores excessos vêm dos dominantes que temem perder o poder, dos dominados que se tornaram dominantes, da raiva dos perdedores e da vingança dos novos ganhadores.”


Tudo isto faz parte do mundo que espera António Guterres.

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