Visita pelas
lojas que vemos todos os dias e em que nunca entramos
"Há
coisas que ainda temos e que não sabemos se vamos ter daqui a uns tempos, por
isso vamos lá conhecê-las". Apanhámos boleia de uma visita guiada pela voz
de Manuel Sousa, historiador e autor do Porto D'Honra, às lojas com tradição do
Porto que nesta altura se vestem para o Natal.
RENATA MONTEIRO 10 de Dezembro de 2017, 8:48
Há seis
meses que Miguel Carneiro — o alfarrabista que não partilha o apelido com a
livraria que viu passar cinco gerações da sua família, a Moreira da Costa —
está a vender todos os livros a metade do preço marcado. Diz que é um presente
para os seus leitores nos 115 anos da “mais antiga livraria da cidade do
Porto”, que em 1902 abriu portas a cerca de 50 metros de onde agora pode ser
visitada, no número 30 da Rua de Avis. Nas últimas semanas, esta porta que se
abre para um pequeno átrio e umas catacumbas revestidas de livros e fechadas ao
público, é a única do prédio na Praça Filipa de Lencastre que ainda serve o seu
propósito.
As outras
fecharam-se e estão escondidas atrás de uma barreira de andaimes e gruas para
as obras de restauro profundas do Hotel Infante de Sagres (no valor de 7,5
milhões de euros), que se espera que reabra em 2018, com novos espaços. Um
deles estava pensado para onde agora está a livraria e foi por isso que o The
Fladgate Partnership, o grupo que em 2016 comprou o hotel, já com ideias de o
renovar, contestou o processo de reconhecimento da Moreira da Costa no programa
Porto de Tradição, da Câmara do Porto.
A autarquia
disse ao PÚBLICO que recebeu a reclamação durante os 20 dias de período
mandatário de consulta pública e que o processo de reconhecimento como
“estabelecimento de interesse histórico e cultural ou social local ainda está
em fase de análise”.
Os donos do
hotel disseram esta semana que gostariam que a Moreira da Costa saísse “até ao
final do ano”. O PÚBLICO não conseguiu entrar em contacto, em tempo útil, com
Adrian Bridge,o director do grupo que disse ao Jornal de Notícias que teme que
os livros que o alfarrabista guarda na cave sejam “material inflamável”. Já
Miguel Carneiro, trisneto do fundador da livraria, preferiu “não comentar a
situação”.
Actualmente,
segundo números da câmara, existem 36 estabelecimentos reconhecidos pelo Porto
de Tradição. Na próxima reunião do executivo, terça-feira, deverá ser
apresentada uma proposta que visa reconhecer, com efeito imediato, a Casa
Soleiro, as Galerias da Vandoma e Lopo Xavier & Companhia Lda., que, tal
como a Moreira da Costa, também tinham sido alvo de oposições pelos
proprietários dos respectivos prédios.
Estes três
estabelecimentos poderiam ter entrado na lista de lojas tradicionais que o
PÚBLICO visitou numa manhã de sábado, guiado pelo historiador Manuel de Sousa,
52 anos. “Para a visita guiada escolhi 21 localizações. Algumas porque têm o
selo Porto de Tradição, outras porque mesmo sem o ter acrescentam valor e
variedade à cidade”, diz-nos, na mesa do Café que foi baptizado como Âncora
Douro mas que é conhecido pela alcunha, o Piolho, uma das paragens do percurso
organizado pela empresa turística Gbliss. Os outros estabelecimentos de
comércio tradicional por onde haveríamos de passar (e entrar) serviriam de
embalo à narrativa que o autor do Porto d’Honra, um livro sobre “histórias
pouco conhecidas da cidade", nos contava ao ouvido, através de
auscultadores, durante as mais de três horas de percurso pela baixa da cidade
onde nasceu.
Os
cinquenta participantes no passeio desta manhã poderiam bem passar por
turistas, de máquinas fotográficas ao peito, mas falavam todos português e, na
sua maioria, viviam ou trabalhavam nos arredores do Porto. “Antes de começar
pelos turistas, temos que começar por casa. Há coisas que ainda temos e que não
sabemos se vamos ter daqui a uns tempos, por isso vamos lá conhecê-las”, diz o
historiador, em jeito de tiro de partida. A próxima visita, ainda com os
estabelecimentos decorados a rigor para a época do Natal, realiza-se no sábado,
16 de Dezembro e já está esgotada. A empresa vai por isso abrir inscrições para
uma terceira ronda, a 6 de Janeiro, dia de Reis, em que, nas montras, o
pão-de-ló sai da frente do bolo-rei.
“Vivi num tempo em que para fazer qualquer
coisa era preciso ir à baixa, às várias lojinhas. E vi a mudança”, diz. “Com o
aparecimento dos shoppings, as pessoas começaram a viver em cápsulas. Passam do
ponto A para o ponto B sem olhar em redor. Saem de apartamento, entram no
elevador do prédio, entram no carro, estacionam no parque do centro comercial,
sobem as escadas rolantes e pronto”, ri-se, fazendo passar o exagero. “Ora, é
um completo desperdício termos uma cidade com 2700 anos de história e acharmos
melhor enfiar-nos num shopping”.
É essa
também a primeira coisa que quem está atrás do balcão nos diz, tenha 91 anos,
como Fernando Brás, do Cafézeiro, que pouco mais se lembra de ter feito, tenha
25 anos, como Maria Loureiro, que de manhã trabalha na Favorita do Bolhão e à
tarde faz o estágio para a Ordem de Advogados. “Quase toda a gente que aqui vem
entra bem-disposta”, anuncia, sorriso aberto e riso fácil.
Desde 1934,
tal qual diz na fachada, que “a Favorita continua praticamente igual desde o
dia em que foi inaugurada”, diz neta do proprietário da “Favorita”, Valentim
Loureiro, de costas para uma montra onde figos, cortados a meio, abrem a boca para
receber nozes e outros frutos secos, “o produto mais vendido, sempre a granel”.
“Vêm muitos turistas, sim, mas é exactamente por isto ainda parecer uma
mercearia local. Dizem que o espaço é lindo, gostam de ver o moinho ao fundo da
loja e ficam contentes por não o termos alterado. Mas eles vão embora e nós
criamos uma ligação muito forte com os nossos clientes habituais”, diz.
Quando
perguntamos se o mesmo se passa numas ruas acima, no Cafezeiro, na Rua Augusto
Rosa, na Batalha, a resposta chega sem palavras. Primeiro com a entrada de uma
cliente, apressada, que nem precisa de fazer o pedido para ser servida. “Café
moidinho na hora”, ouve-se, por cima do som dos grãos a serem desfeitos. E a
seguir num álbum que é pousado no balcão, repleto de postais com fotografias de
turistas que vieram, compraram e, depois de deixar Portugal, enviam pelo
correio uma fotografia, ou uma mensagem. E quando chegam, são imediatamente
catalogados. “Se quisermos ir à Alemanha temos aqui este envelope com tudo o
que precisamos”, dizem.
À saída,
depois de algumas promessas de envio de fotografias, chega o comentário que o
historiador mais diz ouvir: “tantas vezes que passo aqui à porta e nem uma
entrei”. Ia-se repetir, na mesma voz, à porta do Bazar Paris, da Casa
Crocodilo, da Bernardino Francisco Guimarães, agora encurtada para BFG. “E esta
já está cá desde 1900, por isso não deve ter sido por falta de tempo!”, ri-se,
ao entrar na antiga loja de ferragens que foi ampliada para as traseiras e
ocupa uma área bastante superior à média do comércio tradicional da cidade.
Saiu o
armazém do material importado da Alemanha e Alexandra Oliveira, a neta do
fundador, que emprestou o nome à loja, pôs a descoberto em Setembro, um
“recanto soalheiro”, o Pátio Bonjardim. Lá vende “coisas menos duras de roer”,
que é como quem diz, bolos e refeições ligeiras feitas a partir de receitas da
família que é proprietária de todo o edifício, inclusive a parte superior, de
habitação.
“A
cafetaria veio modernizar a loja e é quase o culminar de um processo”, já que a
loja agora vende também móveis em segunda mão e peças de decoração, explica
Alexandra Oliveira. “O comércio tradicional tem de se ajustar à realidade de
hoje em dia. Não podemos parar, não podemos ficar de braços cruzados a
queixarmo-nos. Temos que ver o que as pessoas procuram e gostam, não destruir o
que está feito, não deitar fora a história e tradição. Uma loja centenária não
se deita abaixo para fazer tudo de novo”, conclui.
Sobre os
efeitos do turismo, um dos temas que mais perguntas suscitou durante a visita,
Manuel Sousa considera que é tempo de “parar, ver o que ainda existe e ponderar
sobre o tipo de cidade que queremos vender a quem visita”. O caminho? “Não
podemos parar no tempo, mas também não podemos perder a alma – e isso é a parte
difícil”, garante. “Isto é óbvio, mas pensem nisto: os turistas só vêm cá
porque temos coisas que eles não têm lá. E como nós não temos um grande marco
que nos distinga, temos que saber usar e preservar o conjunto”.
“Por falar em turistas”, continua, a visita guiada termina
mesmo em frente à Livraria Lello, a única em todo o mundo em que se paga para
entrar (4 euros) e que diz ser “o ponto mais visitado da cidade” – Manuel de
Sousa, além de historiador e autor, é também o director de comunicação da
livraria que, ao contrário da Moreira da Costa, já tinha sido visitada por
todos os participantes. Talvez
por isso o historiador pouco tenha falado. Ficou-se quase por dizer que, os
irmãos Lello acreditavam “que os livros deveriam ser o motor do desenvolvimento
do país”. “Loucos, não?”.
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO |
As lojas
tradicionais da Baixa: desafios presentes e futuros
Finalmente,
os proprietários das Lojas Tradicionais encontraram-se em Lisboa, e
estabeleceram contacto através de uma plataforma de “cidadania”.
ANTÓNIO SÉRGIO ROSA DE CARVALHO
25 de Junho de 2015, 2:39
Este é o
exacto título de um artigo da minha autoria, inserido no volume intitulado
“Reabilitação Urbana: bases para uma intervenção de salvaguarda”, publicado em
Junho de 2005 pela CML, com a coordenaçào editorial de João Mascarenhas Mateus
(http://www.academia.edu/3876080/MASCARENHAS-MATEUS_Jo%C3%A3o_ed._Baixa_Pombalina_bases_para_uma_interven%C3%A7%C3%A3o_de_salvaguarda_Baixa_Pombalina_Bases_for_Intervention_and_Preservation )
exemplo de um completo estudo de conteúdo, no contexto preparatório da classificação da Baixa a Património Mundial.
(http://www.academia.edu/3876080/MASCARENHAS-MATEUS_Jo%C3%A3o_ed._Baixa_Pombalina_bases_para_uma_interven%C3%A7%C3%A3o_de_salvaguarda_Baixa_Pombalina_Bases_for_Intervention_and_Preservation )
exemplo de um completo estudo de conteúdo, no contexto preparatório da classificação da Baixa a Património Mundial.
Isto é
relevante, agora que a CML anunciou a sua intenção de reactivar a ideia da
Classificação, estendendo-a aos bairros históricos e simultaneamente voltar a
repetir a ideia/intenção, tantas vezes repetida, de promover o programa “Lojas
com História”, onde se pretende simultaneamente defender as características
culturais/patrimoniais dos estabelecimentos históricos e promover o comércio
tradicional.
Ora,
precisamente no artigo acima referido e também em artigo publicado no PÚBLICO
em 16/07/2006 Made in Portugal, eu descrevo as experiências que tive
oportunidade de desenvolver em lojas tradicionais com interiores de valor
histórico, em permanente colaboração com a Unidade de Projecto Baixa-Chiado e o
então IPPAR.
Assim, na
antiga alfaitaria Rosado Pires, na Rua Augusta, conseguiu-se convencer o novo
proprietário a manter todo o interior intacto, utilizando a sua autenticidade
como uma mais valia. Pena que, com o tempo, uma parte do mobiliário original
tenha desaparecido e o interior tenha sido “funcionalizado”. O mesmo foi
conseguido na Perfumaria Pompadour, com projecto de interiores de Raúl Lino
(agora Swarovski /Rua Garret ) assim como na farmácia Normal na Rua da Prata.
Isto serve
apenas para ilustrar que, embora estes processos tenham conhecido avanços e
recuos paradoxais e inexplicáveis, existe uma base de conhecimento já considerável
e aproveitável.
Um bom
exemplo destes paradoxos constitui a recusa de classificação, por parte do
IPPAR neste período, da Ourivesaria Aliança, juntamente com outros importantes
estabelecimentos que constavam nos dossiers completos desenvolvidos pelo Núcleo
dos Estudos do Património da CML.
No entanto,
posteriormente, sobre a pressão da Opinião Pública e Comunicação Social, Manuel
Salgado exigiu e garantiu a preservação deste notável e insubstituível
estabelecimento.
A
vigilância e o contacto entre os interessados é portanto fundamental.
Mas, e aqui
chego ao objectivo deste artigo, há que manter objectividade e pragmatismo nos
objectivos imediatos.
O
acontecimento mais importante no que respeita a salvaguarda concreta perante a
ameaça progressiva que constitui a Lei das Rendas, tomou lugar no Porto no
Hotel Intercontinental, numa conferência intitulada Reabilitar para Revitalizar
(PÚBLICO 20/09/2014) onde Rui Moreira exprimiu as suas preocupações de forma
confrontadora perante uma assembleia de empreendedores e proprietários,
ameaçando chegar ao ponto de expropriar edifícios, caso os insubstituíveis
estabelecimentos históricos instalados no mesmos fossem ameaçados e
consequentemente extintos, pelo aumentos das rendas.
Ora,
finalmente, os proprietários das Lojas Tradicionais encontraram-se em Lisboa, e
estabeleceram contacto através de uma plataforma de “cidadania”.
Se isto
fizer algum sentido será, não apenas na troca de informações e de postais
“culturais”, ficando “entretidos” num circulo inefectivo, enquanto a espada
ameaçadora da Lei das Rendas continua a descer sobre as suas cabeças, mas
precisamente numa acção coordenada e sistemática de forma a levarem Medina e Salgado a tomarem uma posição
explícita e pública de compromisso na defesa das Lojas Tradicionais, perante a
ameaça crescente para a sua existência e sobrevivência, que a Lei das Rendas
constitui.
Historiador de Arquitectura
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