O que é raro
e o que é banal no caso Raríssimas
Disse Marcelo
no domingo que não devia ser “necessário haver denúncias para o Estado saber o
que se passa nestas instituições”. Pois não devia. Mas a pergunta é outra: será
que o Estado quis saber? Tudo indica que não.
João Miguel
Tavares
12 de
Dezembro de 2017, 6:51
A
reportagem de Ana Leal sobre a presidente da associação Raríssimas deixou o
país de queixo caído, e por boas razões. Nada é mais perturbante do que ver
alguém a desbaratar dinheiro que é posto ao serviço de uma boa causa. Há um
excesso absolutamente caricatural nos abusos de Paula Brito e Costa e na forma
como punha e dispunha de pessoas e bens na associação que fundou: usou o cartão
de crédito da Raríssimas em vestidos e gambas; exigia o pagamento de
quilómetros para se deslocar de casa para o trabalho num carro que nem sequer
era seu; empregou o marido e o filho; assumia publicamente que o filho seria “o
herdeiro” da casa; impunha especiais deferências aos seus funcionários (a
história de o pessoal ter de se levantar das cadeiras sempre que ela entrava ou
saía do gabinete é digna de telenovela venezuelana). Tudo isto compõe um
retrato catastrófico de alguém que se convenceu de tal forma do mérito do seu
trabalho (e esse mérito é inegável), que adquiriu tiques ditatoriais. O poder
absoluto corrompe sempre, seja na Assembleia da República, seja na Casa dos
Marcos.
A
reportagem da TVI está tão bem fundamentada, não só em documentos mas também em
gente que dá a cara (honra lhes seja prestada por não se terem limitado à
confortável denúncia anónima), que o único caminho para Paula Brito e Costa é
mesmo a porta da rua. Convinha, contudo, que o caso não ficasse por aí. Porque se
há coisas raras na história da Raríssimas, há outras que são tristemente
banais. Reparem como a senhora em causa percebeu depressa como Portugal
funciona. Primeira regra: ter o poder político ao seu lado. A Raríssimas
conseguiu o alto patrocínio de Maria Cavaco Silva e a partir daí foi
construindo uma rede de amizades políticas: deputados, futuros secretários de
Estado, talvez um dia ministros. Note-se que muitas dessas ajudas podem ter
sido desinteressadas, e até generosas. O Estado começou por cumprir o seu papel
– apoiar alguém com uma história pessoal trágica que desejava e tinha
capacidade para trabalhar em prol da sociedade (Marco, um dos filhos de Paula
Brito e Costa, morreu de uma doença rara) –, mas as coisas rapidamente
descarrilaram, e as necessidades de financiamento estimularam as tentações e
convidaram ao disparate.
O actual secretário de Estado da Saúde, Manuel Delgado,
recebeu uma avença de três mil euros mensais a partir de 2013 (num total de 63
mil euros) para “colaboração técnica na área de organização e serviços de
saúde” (sem esclarecer que trabalho em concreto foi esse); o actual deputado do
PSD, Ricardo Baptista Leite, que faz parte da Comissão de Saúde, já estava na
calha para ser o próximo vice-presidente; a deputada do PS Sónia Fertuzinhos
teve os custos de uma viagem de trabalho à Suécia adiantados pela Raríssimas
(segundo a deputada, a associação terá depois sido ressarcida); e como Portugal
é muito pequenino, Fertuzinhos é mulher de Vieira da Silva, ministro da
Segurança Social, antigo vice-presidente da assembleia geral das Raríssimas e
absoluto desconhecedor (diz ele) de tudo o que se passava na instituição. Note-se: não há indícios de que
alguma destas pessoas tenha praticado maldades. Limitaram-se a ser políticos
portugueses, no que isso significa de inércia e amiguismo. Disse Marcelo no
domingo que não devia ser “necessário haver denúncias para o Estado saber o que
se passa nestas instituições”. Pois não devia. Mas a pergunta é outra: será que
o Estado quis saber? Tudo indica que não.
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