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Dia / OVOODOCORVO
“António
Costa não recebeu convite nem aparece no quadro do presépio”
Costa
estava em Bruxelas com o Centeno a celebrar um ano “particularmente saboroso”
enquanto Portugal vivia o seu “annus horribilis” ?
(...)
"O mal-estar da população para com Costa agravou-se depois do
primeiro-ministro ter dito que 2017 tinha sido um "ano saboroso" para
Portugal, referindo-se às conquistas económicas. "
OVOODOCORVO
Marcelo é o
convidado de honra no Natal em Pedrógão
16.12.2017
12:08 por Diogo Barreto
http://www.sabado.pt/…/marcelo-e-o-convidado-de-honra-no-na…
"Nós convidamos as pessoas que nos ajudaram" diz Associação de
Vítimas de Pedrógão Grande. António Costa não recebeu convite nem aparece no
quadro do presépio
Marcelo
Rebelo de Sousa vai cumprir a palavra dada poucos dias depois dos incêndios em
Pedrógão Grande e passa o Natal com os habitantes das localidades mais
afectadas pelos incêndios de Junho que vitimaram mortalmente 66 pessoas. Da
lista de convidados da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande
(AVIPG) não faz parte o primeiro-ministro, António Costa.
Na
segunda-feira, dia 25 de Dezembro, o Presidente da República vai ser o único
não-familiar das vítimas a participar no almoço privado, que não reunirá mais
de 30 pessoas , em Pedrógão Grande. O almoço será organizado pela AVIPG que,
depois do almoço irá inaugurar a sua sede. Na cerimónia vão marcar presença o
presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, bem como
representantes de várias fundações, como a Gulbenkian e a Júlio Resende. Terão
ainda sido convidadas instituições como a Turismo da Região Centro, o bispo de
Leiria ou o presidente da Unidade de Missão para a Valorização do Interior,
auferiu o jornal Expresso.
Governo já
apoiou 35 projectos de empresas afectadas "Nós convidamos as pessoas que
nos ajudara", explicou a presidente da AVIPG, Nádia Piazza, que explicou
que Marcelo foi convidado porque "ele não deixou o território e a tragédia
serem esquecidos". E Marcelo marcou de tal maneira esta associação que
João Viola, habitante do Nodeirinho, pintou um quadro a representar o presépio
em que o Presidente aparece representando um pastor: um "guia e orientador
da população".
O mal-estar
da população para com Costa agravou-se depois do primeiro-ministro ter dito que
2017 tinha sido um "ano saboroso" para Portugal, referindo-se às
conquistas económicas.
O
primeiro-ministro está este fim-de-semana na zona mais afectada para reunir com
a associação de vítimas para tratar de temas como a atribuição de indemnizações
e o processo de reestruturação.
REPORTAGEM
SEIS MESES DE INCÊNDIOS
Quando a
resposta do Estado tarda, é a sociedade civil que resiste
Seis meses
depois dos incêndios de Pedrógão Grande, dois meses depois dos incêndios da
Beira Interior, como se vive nos territórios que acabaram quase calcinados e
como se ultrapassa o trauma de 110 mortos, 1500 casas destruídas, 500 empresas
afectadas, dezenas de milhares de pessoas que viram os seus cultivos destruídos
e animais perdidos? Sobrevive-se. Mais com a ajuda de voluntários e movimentos
solidários do que com as respostas institucionais que demoram muito a chegar ao
terreno. A justiça, essa, já começou a procurar culpados. Pedrógão Grande já
tem dois arguidos.
LUÍSA PINTO
(Texto), PAULO PIMENTA (Fotografia) e SIBILA LIND (Edição de vídeo) 17 de Dezembro de 2017, 7:00
De cada vez
que abre a janela da cozinha, Irene Santos confronta-se com o vale enegrecido.
O céu está azul, os rebentos de eucalipto agarram-se aos troncos queimados, a
tentar fazer regressar o verde, mas Irene só vê o preto que lhe pinta o
horizonte. Todos os dias pensa na casa dos vizinhos e na mesa que estava pronta
e posta para nove pessoas. Nenhuma delas voltou. Todas morreram na estrada, a
fugir do fogo de 17 de Junho. Viver em Várzeas, em Pobrais, em Nodeirinho, na
Barraca da Boavista, em Vila Facaia, lugares tristemente conhecidos por causa
do incêndio de Pedrógão Grande, continua a ser sinónimo de provação, de
tristeza, de dor.
O marido de
Irene, Cesário Santos, está vestido de fato-macaco, empoleirado numa estrutura
de ferro que teimosamente tenta transformar em barracão. Precisa de arranjar um
sítio para guardar a lenha. Passaram seis meses, e na memória tudo está vivo,
como se fosse ontem. E, afinal, já tanta coisa aconteceu, tanta coisa mudou. Já
esteve a dormir semanas a fio com o telhado esburacado, os tacos retirados a
expor o cimento frio do chão — até que ficassem concluídas as obras de
reparação que o Estado lhe fez na casa. A casa começou a arder pelo telhado e
se água impediu o fogo, também deixou danos.
“As obras
terminaram na semana passada”, explica Irene. Mas não chegaram a ficar sem
telhado para dormir. A mesma sorte não teve todo o equipamento agrícola,
resultado “do trabalho de uma vida inteira”, como diz Irene. “Arderam-me
alfaias, tractores, fresas, moinhos, atomizador, rachador de lenha…”, enumera
Cesário, interrompendo um rol que se adivinha interminável, para o forçar à
soma final da contabilidade dos prejuízos: ultrapassou os 46 mil euros. “Recebi
4980 euros. Caíram-me na conta no final de Novembro”, informou, explicando que
esta não chegou para pagar sequer os 118 metros quadrados de área ardida. “Eles
pagam 180 euros o metro quadrado. Mas, acima dos 5000 euros de prejuízo era
preciso fazer um projecto. Eu, com 73 anos, vou fazer projecto de quê e para
quê? Já não tenho forças para reconstruir tudo de novo”, termina, com um
encolher de ombros e um esgar de conformação.
Na casa de
Irene e Cesário Santos, acabaram as obras de reconstrução, uma das 34 primeiras
intervenções do Fundo Revita, cujo objectivo primordial é custear a
reconstrução das habitações afectadas pelos incêndios de 17 de Junho
Depois do
fatídico incêndio de Pedrógão Grande — e que afectou os concelhos vizinhos de
Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos, Pampilhosa da Serra, Góis e Penela —,
não se trata apenas de fazer o luto dos que morreram. Foram muitos, 65. E o
luto tem muitas fases, muitos ritmos, é um processo necessariamente longo.
Trata-se, sobretudo, de encarar o trauma. “Somos uma comunidade de desastre.
Passou aqui uma guerra. As pessoas têm de perceber isso, nós precisamos de
falar sobre isto, enfrentar o trauma”, sintetiza Nádia Piazza, a presidente da
Associação das Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande (AVIPG).
E Irene
Santos, 70 anos, é a primeira a admiti-lo. “Não aguentei mais. Tive de procurar
ajuda. Ando no psiquiatra, estou medicada. Ainda não está a ser fácil, custa-me
dormir. Agora estou a tentar convencer o meu marido a fazer o mesmo. Ele diz
que não precisa, mas eu sei que ele não anda bem”, garante, num sussurro para
que ele não a ouça.
92 casas
a cargo do
fundo Revita, representando um total de apoio de 2,9 milhões de euros.
Cesário
Santos recebeu uma pequena fatia dos 2,4 milhões de euros que constituem
praticamente a única verba que o Governo tirou do Orçamento do Estado para
aplicar no fundo Revita, a instituição criada para gerir os donativos que foram
chegando logo após a tragédia e que, de acordo com fontes do Governo, estavam,
no início de Dezembro, cifrados em 3,7 milhões de euros. O objectivo primordial
deste fundo é custear a reconstrução das habitações afectadas pelos incêndios
de 17 de Junho, ou seja, as 264 casas identificadas e cujo custo de
reconstrução ascende a 9,2 milhões de euros. O Revita tem directamente a seu
cargo 92 casas, representando um total de apoio de 2,9 milhões de euros.
O reforço
do Revita serviu para apoiar 763 produtores agrícolas e de agricultura de
subsistência. Esse anúncio surgiu já em Novembro, cerca de cinco meses depois
do fatídico dia. “Não se trata apenas de reconstruir, mas também de restituir
um modo de vida e devolver a esperança a estas pessoas”, disse na altura Rui
Fiolhais, presidente do Instituto da Segurança Social e que ficou também a
presidir o conselho de gestão do Fundo Revita.
O difícil é
arrancar com a obra
O maior
esforço financeiro está, pois, destinado à reconstrução das casas. A 7 de
Dezembro, as informações oficiais apontavam para o facto de estarem em curso
cerca de 80 intervenções e de o Fundo Revita já ter pago obras de primeiras
habitações em pouco mais de 110 mil euros — uma verba que lhe permite dizer que
já tem 34 obras concluídas, sendo uma delas a de Cesário Santos. Mas há obras de
monta que ainda estão todas por entregar. E por garantir financiamento. Por
isso, continuam a surgir iniciativas como aquela que foi divulgada na semana
passada pelo presidente da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de criar um
fundo para apoio às vítimas dos incêndios com o apuro dos jogos de Natal.
Entretanto, há outras instituições no terreno a avançar com obras. A SIC
Esperança, por exemplo, que está a gerir donativos de 850 mil euros (angariados
na campanha “Um abraço a Portugal”) e vai reconstruir ou reabilitar 26
habitações.
O difícil é
arrancar com a obra — decidir quem paga, quem faz o projecto, quem faz a
construção. Quando chega a altura de pôr as mãos na massa e começar a montar
tijolos, tudo avança rapidamente — “o Inverno atrasou-se e isso ajuda o nosso
trabalho”, diz Luiz Gama, funcionário da construção civil de uma empresa de
Alvaiázere e que anda pela região desde que terminaram os incêndios. Está a
reconstruir um barracão para guardar ração e animais, no lugar de Pobrais, e
demorará mais três semanas. “O trabalho por aqui não pára. Há muito por fazer”,
diz. Do outro lado da rua, os funcionários da empresa Justo Rigor, de Pedrógão
Grande, apressam-se a terminar uma casa que está a ser reconstruída a partir do
chão, a placa de obra denuncia o orçamento: 55 mil euros. Mas não diz que está
a ter modificações: a casa tinha cinco quartos no original, vai ser
reconstruída só com dois. “Mas fica tudo pronto para a família ampliar quando
puder e conseguir”, explica um dos funcionários, que pediu para não ser
identificado.
Cesário e
Irene Santos já não esperam mais nada — nem do Estado nem de ninguém. “Eu
demorei mês e meio para voltar a ter coragem e vir até aqui, onde nos ardeu
tudo o que trabalhámos tanto para construir. Já me bastava abrir a janela da
cozinha para encarar de frente tudo o que aconteceu. Já me bastava olhar para o
carro e lembrar-me que foi o meu primo que o veio salvar e buscar, e, à conta
disso, ardeu o dele. E a seguir lembro-me de que a mulher dele ainda está no
hospital a recuperar das queimaduras pelo corpo todo. É tudo muito duro. É tudo
muito triste”, termina.
"Passou
aqui uma guerra", sintetiza Nádia Piazza, a presidente da Associação das
Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande
Um antes e um depois de Pedrógão
Houve um
antes e um depois deste 17 de Junho, não só para as vítimas mortais e os seus
familiares, ou para toda a comunidade de residentes daqueles seis concelhos.
Foi, na verdade, um despertar de consciência para todo o país. “Foi quando
descobrimos que era possível morrer dentro de um carro a fugir de um fogo”,
disse Emília Esquina, na aldeia de Travancinha, concelho de Seia. Ela pensou
várias vezes nisso, quatro meses depois, quando andava aturdida a tentar acudir
ora à sua casa e aos seus bens, ora ao alojamento rural Chão do Rio, onde
trabalha, e que naquela noite de 15 de Outubro estava com uma taxa de ocupação
de 50%, quando tudo à volta estava a arder.
Em Outubro,
com a ajuda do furacão Ofélia ao largo dos Açores, houve mais concelhos
afectados, e nessas 24 horas ardeu tanto como durante o ano inteiro (Pedrógão
Grande incluído): mais de 220 mil hectares de floresta, 44 concelhos atingidos,
foi o pior dia de sempre em termos de incêndios. Foram atingidas 1254 casas, há
prejuízos reportados em 484 empresas, 45 pessoas perderam a vida.
Em
Travancinha não morreu ninguém — “O que não deixa de ser um milagre, o fogo
veio de repente e de todo o lado”, emociona-se Emília Esquina. “Estava muito
calor e muito vento. Víamos o fogo lá ao longe do lado da serra e não
acreditava que chegasse aqui. Foi isso que disse aos hóspedes. Mesmo assim,
andamos a fazer o rescaldo, molhámos tudo, para prevenir. Quando vi o fogo a vir
do lado de Oliveira do Hospital, já comecei a temer. Andava cá, no Chão do Rio,
e lá, na minha casa, à entrada da aldeia. Acabei por vir dizer aos hóspedes que
era melhor arrumarem as coisas e sair. Pedi-lhes para se juntarem no centro da
aldeia. Que não fossem para mais lado nenhum, que não fossem para a estrada.
Lembrei-me de Pedrógão”, insiste.
Emília
Esquina e Sofia Borges trabalham com Catarina Vieira, proprietária do Turismo
de Aldeia Chão do Rio. Nos incêndios de 15 de Outubro, Emília andou a tentar
salvar o que era seu e a acudir aos hóspedes
Uma casa
estava ocupada com um casal de estrangeiros, outra com um casal de portugueses,
uma terceira com uma mãe e uma criança. Os portugueses acabaram recolhidos por
vizinhos, os estrangeiros ficaram dentro do carro, porque ninguém sabia falar
com eles.
Emília
ainda soluça quando se recorda da aflição e se vê, de novo, ali no meio do
hotel a gritar por ajuda, sem que ninguém a viesse socorrer. “O meu instinto
foi ligar a autobomba e andei a tentar apagar o fogo. Gritei, chorei, vi-me
sozinha, chamas por todo o lado. Tive de desistir e fui a correr para os meus.
Encontrei um polícia ali a dizer, a ‘senhora não pega no carro’! ‘Mas eu tenho
de ir’, gritei. Cheguei à frente e o estaleiro do meu vizinho já ardia. Eu
daqui não passo, pensei. Mas tinha de passar. Não estava na minha hora. Com o
nascer do dia, chegar aqui e ver metade do hotel destruído, a mata toda
queimada, chorei que me desalmei”, termina.
"Com o
nascer do dia, chegar aqui e ver metade do hotel destruído, a mata toda
queimada, chorei que me desalmei”
Emília
Esquina
A dois
meses do Natal e da passagem de ano, uma época de muita procura nas aldeias da
serra, a tristeza de Emília Esquina não era infundada. Ela perdeu não apenas as
batatas (“e este ano a colheita tinha sido boa”), as couves e o azeite e as
galinhas poedeiras — poupou a casa mas ardeu-lhe o resto.
Achou que
também ia perder o emprego. Ela e Sofia Borges, as duas mulheres nadas e
criadas em Travancinha e que são o braço direito e esquerdo da proprietária,
Catarina Vieira. Mas a dona do Turismo de Aldeia Chão do Rio não se deixou
esmorecer. Encontrou no facto de os carvalhos que havia plantado pela sua mão
há dez anos ainda estarem de pé o sinal de que precisava para confiar que devia
arregaçar as mangas e não desistir. A primeira opção foi cancelar todas as
reservas e avisar do encerramento do alojamento até à Páscoa.
Depois, ao
negrume deixado pelos incêndios veio somar-se a escuridão da incerteza. Era
preciso começar de novo, recuperar facturas, redesenhar projectos, replantar,
reconstruir. Haverá apoios? Pedrógão voltou a ser exemplo, e todos leram as
notícias a dizer que o dinheiro dos apoios ainda não chegou ao destino, que a
maior parte das casas reconstruídas não iriam estar prontas a tempo do Natal,
como tinha pedido o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa das
muitas intervenções públicas que tem feito sobre o tema.
Marcelo
prometeu que não ia abandonar as vítimas dos incêndios — e a agenda para as
festas de fim de ano também já está anunciada: o Presidente da República vai
passar o dia 25 de Dezembro em Pedrógão e o dia 1 de Janeiro em Oliveira do
Hospital, um dos concelhos mais atingidos pelos incêndios de Outubro (ardeu
98,1% do concelho, segundo os dados oficiais disponibilizados pela Comissão de
Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro).
O poeta Sá
de Miranda perguntava num soneto “o que fazer quando tudo arde”, e Catarina
Vieira escolheu inspirar-se na resiliência que encontrou em toda a população de
Travancinha para não desistir do seu sonho — porque foi um sonho que a levou a
construir aquele refúgio na montanha. “Foi preciso saber esperar. Mas a
legislação lá apareceu e os apoios virão a seguir. Ter aqui um conjunto de
voluntários a ajudar-nos a limpar a mata foi a injecção de energia que eu
precisava para acreditar que valia a pena recomeçar”, comenta a empresária.
O passo
seguinte foi accionar o seguro (“foram muito sensíveis aos nossos argumentos e
pagaram o adiantamento de que precisava para arrancar com o processo”, explica
Catarina); depois, foi começar reuniões com a Câmara de Seia e esperar para
ver. “A própria câmara também não sabia como é que as coisas iam ser, se ia
haver legislação especial, se os projectos podiam ser simplificados. Tivemos
todos de ter paciência”, admite. Agora, o objectivo é abrir as portas de novo
aos turistas por altura da Páscoa.
Apoios além
dos prejuízos cobertos pelo seguro
Os
incêndios de 15 e 16 de Outubro já foram declarados como o maior sinistro da
história da actividade seguradora em Portugal. As empresas de seguros ainda
andam no terreno a fazer as peritagens dos estragos, mas entre as ocorrências
participadas já há 4177 sinistros cobertos por apólices de seguros — a que
corresponde um valor agregado de danos (pagos ou provisionados) superior a 230
milhões de euros — dos quais, 30 milhões já foram efectivamente pagos. De
acordo com a Associação Portuguesa de Seguradoras, três mil sinistros dizem
respeito a seguros de habitações e cerca de 700 a seguros de actividades
comerciais e industriais.
A dúvida de
Catarina Vieira, e porventura de todos os empresários da área do turismo e não
só, é saber com que apoios contar para além dos prejuízos cobertos pelo seguro.
De acordo com o Turismo de Portugal, as infra-estruturas turísticas que
declararam ter sofrido danos no decorrer dos incêndios de Outubro foram 40,
entre parques de campismo e empresas de animação turística até alojamentos
locais e hotéis de cinco estrelas. Foi aberta uma linha de crédito a empresas
de turismo no valor de 1,5 milhões de euros para apoio à tesouraria e que
abrange 11 concelhos directamente afectados, e até ao final da primeira semana
de Dezembro haviam sido apresentadas 24 candidaturas, das quais foram aprovadas
14, com um financiamento associado de 516 mil euros.
Todas estas
coisas demoram o seu tempo, mas é impossível não reparar que também houve
diferenças nas reacções governamentais em Junho e em Outubro. Na sequência da
tragédia de Pedrógão Grande, o Governo demorou a assumir responsabilidades —
pediu primeiro estudos, relatórios, conclusões a uma comissão técnica
independente. E, em termos de orçamento, o que fez foi disponibilizar-se para
gerir a vaga de donativos, que foi avassaladora, e assim surgiu o Revita. Em
Outubro, a reacção foi diferente e quase imediata — só foi notado, sobretudo, a
ausência do pedido de desculpas e o ruidoso puxão de orelhas ao Governo deixado
por Marcelo Rebelo de Sousa.
“Depois de
tudo o que aconteceu em Junho, fomos sujeitos a três investigações, relatórios
para todo o lado. Em Outubro, não foi preciso relatório nenhum. O Estado fez o
que devia ter feito logo no início, em Junho. Assumir as suas responsabilidades.
E depois apurar o que aconteceu e daí extrair consequências. O que se passou em
Pedrógão é, também por isso, incompreensível”, acusa Nádia Piazza.
Portugueses
de quantas categorias?
Ana
Abrunhosa, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do
Centro (CCDR-C) tem sido, no terreno, o elemento principal, em representação do
Governo, a assegurar a gestão deste “enormíssimo e complexo processo”. Admite
que pode parecer que tudo demora muito tempo, mas garante que na sua gestão e
na sua vida não tem entrado outra prioridade que não esta: a de resolver os
muitos problemas que os incêndios, primeiro de Junho, depois de Outubro,
deixaram na região que tutela. Ana Abrunhosa sabe bem o momento em que percebeu
que “a vida ia mudar”: “Quando comecei a receber telefonemas dos autarcas na
noite de 15 de Outubro, aflitos, a dizer que estava tudo a arder, que eram
impossível saber quantas pessoas tinham morrido.” Pedrógão ainda estava por
resolver, agora vinha “tudo de novo, numa área e numa dispersão de território
ainda maior”.
Pedrógão,
admite, já tinha sido, e ainda é, um dossier muito complexo, por envolver uma
infinidade de áreas e instituições. Houve reuniões e decisões a tomar
juntamente com câmaras, Infra-estruturas de Portugal, Instituto da Conservação
da Natureza e das Florestas, Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana,
Autoridade Nacional de Protecção Civil, Instituto de Segurança Social, Turismo
de Portugal, IAPMEI, Ordem dos Engenheiros, Ordem dos Arquitectos... A lista
não termina, e Ana Abrunhosa diz ter orgulho na equipa que tem a trabalhar
consigo e que lhe permitiu ter começado a dar respostas concretas no terreno,
sobretudo no que respeita à recuperação das casas. “Infelizmente, não vamos
cumprir o desejo do Presidente e ter as pessoas todas de regresso a sua casa
pelo Natal. Não foi, de todo, possível. Sei que para as pessoas é uma desilusão
e toda esta espera parece-lhes uma eternidade. Mas foi preciso fazer este
trabalho”, explica Ana Abrunhosa.
A
presidente da CCDR-C refere-se, por exemplo, aos critérios que ajudam a definir
o que é uma casa de primeira ou de segunda habitação — porque só as primeiras,
aquelas que têm residentes em permanência durante todo o ano, terão apoio
prioritário. Ana Abrunhosa sabe que vão surgir dúvidas, como aquela que Rita
Cruz, professora, com três filhos de 4, 7 e 9 anos de idade expôs em Midões.
“Comprei uma casa no centro da vila, mas ainda não me tinha mudado porque
precisava de obras. Estou em casa dos meus sogros, e agora acham que isto é
segunda habitação. E só para repor a cobertura pedem-me 40 mil euros. Que eu
não tenho”, desabafa.
“Não é
possível planear tudo, resolver tudo, com a rapidez que as pessoas precisam e
merecem. O limite vai ser sempre a lei e a boa gestão dos dinheiros públicos.
Vamos sempre tentar resolver todos os problemas. Acho, até, que estamos a
conseguir dar respostas em tempo recorde. Se não fazemos mais, não é por falta
de prioridade e de empenho”, afirma Ana Abrunhosa
O tempo que
foi investido após o dia 17 de Junho a definir metodologias, a estabelecer
métricas, a organizar equipas de intervenção e de trabalho acabou por servir
também em Outubro. “Foi voltar a aplicar aquilo que conseguimos estabilizar
para Junho. Só foi possível agir com tanta rapidez porque tínhamos uma
metodologia montada e testada no terreno”, explica a presidente da CCDR-C.
Porém, nota
Luís Lago, presidente da recém-fundada Associação das Vítimas do Maior Incêndio
de Sempre em Portugal (AVMISP), a matriz não foi replicada totalmente, e as
medidas de apoio que o Governo disponibilizou para os incêndios de Junho e de
Outubro são discriminatórias, sobretudo no que diz respeito aos apoios às
empresas. E por isso está a ponderar avançar com uma acção judicial contra o
Estado, que ainda não avançou porque a associação está a levar, primeiro, todos
os seus argumentos aos grupos parlamentares para os sensibilizar para uma
situação que, acusa, “discrimina os portugueses”.
No caso das
empresas afectadas pelos incêndios de Junho, poder-se-ão candidatar ao concurso
lançado no âmbito do Programa Operacional do Centro de Portugal 2020 em 24 de
Julho (e que vai estar aberto até 31 de Janeiro de 2018). Este anúncio tem uma
dotação de 25 milhões de euros e prevê financiar 85% dos projectos apresentados
a fundo perdido. Nas empresas afectadas pelos incêndios de Outubro, a
comparticipação a 85% só é dada aos primeiros 200 mil euros; acima deste
prejuízo, os apoios serão de 70%, no caso de ser uma PME, ou apenas 25% se não
for uma PME.
A razão
destas diferenças é rapidamente explicada por Ana Abrunhosa: “Em Junho foi
possível fazer uma reprogramação do PO Centro e conseguir esse reforço de verba
de 25 milhões de euros. No caso dos incêndios de Outubro, vamos usar os
concursos e as metodologias dos Sistemas de Incentivos, mas o dinheiro vem do
Orçamento do Estado.” Esta linha de financiamento é de 100 milhões de euros e,
de acordo com o Ministério do Planeamento e Infra-estruturas (MPI), tinham sido
admitidas até ao início de Novembro 38 candidaturas, das quais 28 já se
encontram aprovadas, e envolviam o apoio a um investimento elegível de 7,4
milhões de euros. As outras dez candidaturas ainda estavam em análise e
representavam um investimento de 16,7 milhões de euros. Em concreto e pelo
fluxo de tesouraria entre as empresas e CCDR-C já passou um montante global de
627 mil euros.
No caso das
empresas que já pediram apoio após os incêndios de Outubro, o MPI contabilizou
a recepção de 39 candidaturas na região Centro, com um investimento previsto de
17,6 milhões de euros, e uma candidatura na região Norte de 100 mil euros.
Relativamente às candidaturas já aprovadas até ao início de Dezembro, o MPI
contabiliza 11 candidaturas, todas elas na região Centro, que implicam um
investimento de 2,1 milhões de euros e um apoio público de 1,6 milhões de
euros.
Cláudio
Guerra, gerente da empresa J. Guerra, uma fábrica de Sirgaria e Passamanarias
com 55 funcionários, os apoios que o Estado oferece não são suficientes. Com 60
anos de história e um vasto rol de clientes — era aqui que os museus e hotéis
de luxo encomendavam fitas tecidas, franjas, embraces, cordões e galões, e onde
também a artista plástica Joana Vasconcelos se abastecia de material para as
suas criações —, a J. Guerra estava instalada na zona industrial de Oliveira do
Hospital há 25 anos. O incêndio destruiu por completo todas as máquinas e
instalações. “Ainda não terminámos o levantamento de prejuízos, mas pelas
nossas estimativas devemos chegar aos 15 milhões. Há, porém, coisas que nenhuma
indemnização pode pagar, nomeadamente as máquinas antigas que já não se
fabricam. Nada disso é recuperável”, explica.
O gestor
está inconformado com a diferença de tratamento que está a ser dada às empresas
afectadas em Junho e em Outubro. “O drama calhou-nos agora a nós. Mas fica o
aviso que, no próximo incêndio, o Estado já só vai ajudar em 50 ou 60% do
prejuízo. Não é aceitável. Não há portugueses, nem empresários, de primeira e
de segunda categorias”, critica. Cláudio e o irmão, a segunda geração à frente
da empresa, estão a tratar de arranjar uma solução provisória que lhes permita
ir dando resposta imediata aos clientes — “felizmente, tivemos logo os nossos
concorrentes, que nós vemos como parceiros, a dizer que nos punham aqui
máquinas no dia a seguir, só tínhamos de arranjar um espaço”.
Cláudio vai
avançar com a solução provisória para continuar a cumprir com os clientes, mas
o objectivo é reconstruir a fábrica, no mesmo sítio. Vai demorar “uns bons dois
anos”. “Só para demolir, vão ser precisos dois meses. Depois, meio ano ou mais
para reconstruir.” Para já, Cláudio não sabe, sequer, quando começará a
demolição, uma vez que os peritos ainda não fizeram o levantamento de tudo. “Só
passado um mês do incêndio é que começaram a sair as leis. Agora ainda
precisamos de as analisar. E também estamos a ponderar se não processamos o
Estado por esta discriminação”, conclui.
Nélson de
Souza, o secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão, foi a Castelo de
Paiva sossegar os empresários, para lhes dizer que achava que os 200 milhões de
euros que tinham conseguido alocar em duas linhas de financiamento para atrair
e repor o investimento empresarial seriam suficientes para acudir a todos os
prejuízos. Disse-o na mesma cerimónia em que Pedro Marques, com a pasta do
Planeamento, disse ser “um bom dia para ser ministro de Portugal”. Porque
mostrava como “com trabalho e dedicação” e alguma “criatividade” é possível
resolver os problemas: e no caso em concreto, conjugando as duas linhas de
financiamento já mencionadas, impedir que fechasse a fábrica de calçado de
Castelo de Paiva que ardeu por completo e cujos 96 trabalhadores receberam uma
carta de despedimento dois dias depois. A fábrica vai ser reconstruída, agora
nas mãos de um novo investidor, que vai aproveitar o financiamento a fundo
perdido para reabrir a fábrica e, sobretudo, para não perder a mão-de-obra
qualificada que ali existe.
Renascer
das cinzas
Paulo
Rogério já não tem forças para ser criativo e diz que tem ainda mais razões
para falar da discriminação. Dono de uma queijaria tradicional em Oliveira do
Hospital, assistiu, impotente, à voracidade das chamas a incinerar o seu
ganha-pão: tem 150 animais, perdeu automaticamente 100 no incêndio e depois
outros 20, que tiveram de ser abatidos por causa das queimaduras. Ficou com 30
borregos jovens. Para o Natal, a época do ano em que o queijo da Serra tem mais
procura, a produção ficou perdida. Paulo Rogério quer recuperar para a Páscoa e
para o Verão.
“Costumo
dizer que já nasci debaixo de uma ovelha, sempre fiz isto. Mas, depois do que
aqui passámos, pensei se devia continuar. Tive as malas feitas para emigrar”,
admite. Paulo tinha passado duas noites sem dormir, a velar a morte do pai. Diz
que passou a noite de 15 de Outubro em claro a tentar evitar o inevitável, até
lhe falhar a água, a luz, as forças. Resistiu até o fogo se cansar. Depois,
pensou em desistir.
O que o fez
ficar? “Um amigo que me organizou um jantar solidário que me permitiu comprar
40 animais em Tondela e 20 em Celorico. Eu tinha comprado dez em Arganil, pude
recomeçar. Estive 36 dias parado, agora já estou a trabalhar, a produzir queijo
e requeijão. Mas ainda só faço entregas em Oliveira do Hospital, dia sim, dia
não. Porque tenho pouca produção. Por esta altura, estava a entregar 80
queijos. Agora estou a entregar seis”, relata.
O pastor
chama “amigo” a alguém que não conhecia de lado nenhum, “mas que fez mais do
que o Estado”. “As políticas para a agricultura deixam muito a desejar, a
agricultura é o parente pobre e continua a ser. O Governo e os outros partidos
não vêem a agricultura como sendo um pilar do país. Senão como é que explicam
que dêem apoios de 85% às empresas até 200 mil euros e na agricultura esses
apoios só vão para os primeiros 50 mil euros? A partir de 50 mil e até 400 mil
euros os apoios são só de 50%. Acho que os nossos governantes não querem a
agricultura no nosso país”, diz.
Paulo
Rogério fez os cálculos a quanto precisa para reerguer tudo o que perdeu e
manter a produção da sua queijaria ao nível que estava antes de 15 de Outubro:
190 mil euros. “A época de seca foi muito prolongada. Eu já gastei aquilo que
tinha e não tinha para manter os animais bons, bem alimentados, e começar a
época de Inverno em força. Com estas medidas de apoio, tenho de pensar
duas vezes. Não consigo
arranjar 90 mil euros. Não consigo”, lamenta.
Mas, depois
de ter chorado muito, decidiu que vai continuar. Sem esperar nada do Estado e a
contar com a solidariedade dos que vai conhecendo. “Agora é renascer das cinzas
com o apoio de alguns amigos. Acho que vou conseguir. A prova disso são estes
borreguinhos que estão agora a nascer [nasceram três no dia em que o P2 passou
por Oliveira do Hospital]. As mães estão agora a dar leite para alimentar os
filhos. Mas ainda este ano vão dar leite para o fabrico de queijo.”
É a pensar em casos destes que o presidente da Câmara de
Oliveira do Hospital, o socialista José Carlos Alexandrino, tem sido tão
crítico à falta de apoios específicos para o sector da agropecuária, lembrando
o papel tão importante que os pastores têm também na ocupação destes
territórios e na sua manutenção e limpeza. Alexandrino tem pedido reforço de verbas no Orçamento do Estado para
apoiar este sector, sob pena de haver um abandono da actividade.
Foi em
abandono que Inês Moura pensou quando viu a sua casa arder completamente, no
lugar de Monte Frio, em Arganil. Tinha uma casa de madeira, que construiu com
as próprias mãos, em conjunto com o companheiro e alguns amigos. Temeu que o
sentimento de comunidade que a fez sair do Porto e de uma vida urbana dita
“normal” para viver em contacto com a natureza se perdesse perante a enormidade
dos estragos, não só nas casas de cada um, mas na natureza que os atraiu ao
vale da Benfeita e do Monte Frio.
“Foram 40
famílias que ficaram sem casa nesta região. São 150 adultos e cerca de 50
crianças. Algumas destas famílias, a maior parte são estrangeiras, estão cá há
15 anos. Temi que se fossem embora perante esta devastação... Felizmente,
escolheram ficar”, conta Inês, ela própria com dois filhos, uma menina de cinco
anos e um bebé de 20 meses, acrescentando que dificilmente iria desistir de
“viver o sonho”.
Vive numa
casa que lhe foi emprestada por uma inglesa até ao Verão. O sentimento de
comunidade volta a estar bem visível e todas as famílias se apoiam na
reconstrução. Uma parte destas casas e abrigos não está, sequer, inventariada
nos cadernos municipais, e as vítimas organizaram-se em crowdfunding
internacionais, para angariar fundos para a reconstrução.
40 famílias
que ficaram
sem casa no vale da Benfeita e de Monte Frio. São 150 adultos e cerca de 50
crianças
Inês Moura
quis, também, sublinhar o empenho e a dedicação que encontrou na SOS Arganil,
uma associação criada no dia seguinte aos incêndios e que rapidamente assumiu a
complexa gestão de organizar os donativos e o trabalho dos voluntários que
praticamente todas as semanas se disponibilizam, vindos quase sempre de Lisboa
e arredores, para “ajudar no que for preciso”.
Foi na SOS
Arganil que Inês foi buscar quase tudo o que precisava — “custou perder alguns
objectos mais emocionais, como o Livro do Bebé que andei a preparar para cada
um deles; de resto, os objectos do dia-a-dia foram automaticamente repostos. O
desafio foi convencer a minha filha de que não precisa agora de começar a acumular
brinquedos e bonecas. Só vamos buscar aquilo que de facto precisamos. É
essa a nossa filosofia de vida”, conclui.
A família
de Inês planeia começar a construir a ruína de pedra que existe no terreno que
comprou — “a casa de madeira sempre foi provisória, reconstruir a ruína era o
nosso objectivo”, explica, e no último feriado de 8 de Dezembro contou com
vários braços na ajuda.
A SOS
Arganil recebeu três dezenas de voluntários, distribuiu-os por quatro equipas e
enviou uma delas para ajudar esta família. Houve acções de reconstrução,
de remoção de escombros, de limpeza e reparação de linhas de água. Sofia
Garção, gestora, residente em Lisboa, levantou-se de madrugada, com os filhos
de 13, 11 e 6 anos, para estar em Arganil às 9h00 do dia 8 de Dezembro e participar
na limpeza de uma linha de água e em acções de estabilização do solo em Barril
de Alva. “Por entender que é
importante ajudar. E é importante mostrar aos meus filhos que estas coisas
podem acontecer a qualquer um e que temos de estar sempre disponíveis para
ajudar os outros.”
O melhor e
o pior dos homens
Em conjunto
com Rodrigo Oliveira, o coordenador da associação, Sara Andrés é um dos rostos
mais dinâmicos da SOS Arganil. Ultimamente tem ocupado os seus dias para, em
conjunto com a mãe, tentar organizar os muitos donativos que continuam a chegar
às instalações que a Junta de Freguesia da Coja cedeu à associação, onde ficava
a antiga empresa cerâmica A Carriça. A tarefa é hercúlea e parece interminável.
“O desafio é garantir que as pessoas que mais precisam são de facto atendidas.
Creio que é também isso que quem enviou bens espera e merece”, explica.
Sara não
esmorece. Rodrigo, designer de profissão, também não. E agora nem conseguem
imaginar quando é que darão por findo o trabalho que têm pela frente. No
gigantesco armazém estão bens doados, organizados e por organizar, mobiliário
por escolher e mobiliário já escolhido e catalogado, à espera que fiquem
prontas as casas dos seus novos donos. “Parece que há sempre mais alguma coisa
para fazer e há sempre alguém a ajudar e alguém a querer oferecer ajuda. Não
sabemos quando vai terminar“, diz Rodrigo. Sara não está, ainda, preocupada com
isso. Diz que tem crescido e aprendido muito. “Chegam-nos relatos de abusos, de
pessoas que se aproveitam desta onda de solidariedade. Mas, felizmente, não são
a maioria. Aqui também estamos a crescer e a enriquecer como pessoas. Da
comunidade de Benfeita, por exemplo, muitas famílias que até desconhecíamos que
viviam na região, têm dado grandes lições nesse apego à natureza e à sua
preservação e no desprendimento dos bens materiais”, argumenta Sara Andrés.
Em Oliveira
de Frades, é a associação Médicos do Mundo que está a assumir essa função, de
coordenar voluntários e organizar donativos. E é Francisca Onofre, licenciada em
Educação Especial e com missões de voluntariado no Brasil e em Cabo Verde, que
largou o emprego num colégio para assumir esta actividade que traz tantos
desafios. A começar pelas questões logísticas: desde o mobiliário que é preciso
catalogar e medir às toneladas de roupa enviadas, havendo uma grande quantidade
“que não serve a nada nem a ninguém. Tem de ir directamente para o lixo”,
admite. Esse é o trabalho menos gratificante. Mas depois há todos os outros,
como ter a certeza de que se arrancam sorrisos genuínos a pessoas como Zeferino
Estêvão, um viúvo que perdeu a casa nos incêndios de Outubro e que está a viver
numa casa que lhe foi emprestada no centro da vila de Oliveira de Frades.
Nesse dia
de Dezembro em que o P2 esteve em Oliveira de Frades, uma das missões dos
voluntários da Médicos do Mundo era levar a Zeferino um sofá para a sala, para
que pudesse acolher a irmã quando esta o visita. “Eu não tinha uma casa. Tinha
um casarão, com capela e tudo! Ardeu tudo, até as pobres galinhas e a criação
de coelhos. Vamos ver quando é que consigo para lá voltar”, afirma. Zeferino
nunca esquece o mais importante: “Sobrevivi e fiquei para contar. Tenho de
aproveitar essa dádiva.” Diz que vai todos os dias a casa, para ver a ruína
onde foi tão feliz com a mulher, desde que regressaram de Moçambique. E
não desiste de a ver de pé, de novo. “A câmara diz que isso vai acontecer. E eu vou esperar. Estou nas mãos
desta gente”, encolhe os ombros. Não sabe quando acontecerá. “Terei
paciência.”
Enquanto a ajuda oficial não chega aos territórios
afectados, são os movimentos de solidariedade que mais têm contribuído para
levar apoios às vítimas. Se em
Junho foram os donativos em dinheiro que foi preciso gerir — com as
complicações e a inoperância que o Fundo Revita revelou —, em Outubro o que
mais se viram foram os donativos em espécie, com os doadores a querer entregar
em mãos aquilo de que as pessoas mais precisam.
Sílvia
Cruz, dinamizadora do Movimento Esposende com Pedrógão no Coração é o melhor
desses exemplos. Visitou as aldeias de Pedrógão 15 dias depois dos incêndios de
Junho, levando numa carrinha os donativos que recolheu entre amigos. “Fiquei
muito sensibilizada com o abandono a que estavam votadas aquelas pessoas, quase
todos idosos, muito isolados. Não me sai da cabeça a Dona Angelina, com mais de
80 anos, que ficou feliz só porque viu uma garrafa de água e alguns vegetais”,
relata esta socióloga que acabou por, nos últimos seis meses, ser uma espécie
de cicerone de um incansável grupo de meia centena de voluntários que já enviou
duas dezenas de camiões TIR com todo o tipo de bens para as regiões do Pinhal
Interior e da Beira Alta.
A primeira
missão foi a 30 de Outubro: saiu de Esposende um comboio de camiões, com 14 TIR
de donativos chegados até da Córsega. No dia 8 de Dezembro, uma nova incursão,
com mais 12 camiões TIR e quatro carrinhas. Levaram um camião cheio de animais
vivos, três mil oliveiras, material de
construção para duas casas completas, ração para animais, electrodomésticos,
mobílias, brinquedos, bolos-reis e pão-de-ló.
“Andamos a
bater de porta a porta, junto das empresas, a angariar donativos. Em alguns
casos, sabíamos do que as pessoas precisavam, tratávamos de recolher. O que nos
move é a empatia e o espírito de solidariedade. Hoje são eles, amanhã podemos
ser nós”, explica Sílvia Cruz.
Quem tem
estado a apoiar o grupo Movimento Esposende com Pedrógão no Coração, que não
mudou de nome mesmo depois de se ter expandido para a Beira Alta, a identificar
as necessidades da população nesta região é o Movimento Associativo de Apoio às
Vítimas de Midões (Maavim).
“Andamos a
bater de porta a porta, junto das empresas, a angariar donativos. O que nos
move é a empatia e o espírito de solidariedade. Hoje são eles, amanhã
podemos ser nós
Sílvia Cruz
Localizado
numa das instalações do grupo Tavfer, do empresário Fernando Tavares Pereira, o
MAAVIM é uma espécie de quartel-general de todas as operações. O próprio
Fernando Tavares Pereira, candidato derrotado à Câmara de Tábua, e que tem por
sua conta cerca de 700 funcionários em cinco países, foi uma vítima dos
incêndios. Contabiliza prejuízos de cerca de 15 milhões de euros — isto num
grupo que factura por ano cerca de 48 milhões, em áreas como a metalomecânica,
construção civil, inspecção automóvel, agricultura, saúde, turismo e hotelaria.
Arderam-lhe olival, vinha, várias casas — uma delas, um solar no centro da vila
de Midões, para o qual aguardava aprovação para um projecto de turismo. Mas
desde Outubro que os negócios ficaram para segundo plano e a prioridade tem
sido organizar donativos. E angariar verbas para cabazes solidários. Por estes
dias, anda a organizar a entrega de 400 cabazes de Natal: “Eu dou o azeite, as
batatas, o vinho e as couves. E ando a pedir ajuda para arranjar dinheiro para
comprar o bacalhau. Está quase.”
Rosa Maria
Rodrigues é uma dessas vítimas a viver da generosidade alheia, em Midões. “Só
tenho a agradecer às pessoas que nos enviam ajuda de todo o lado. Há muita
gente má, e invejosa, gente que me critica só porque não pego em tudo o que me
deixam à porta. Chamam-me pobre e mal agradecida. Mas eu sempre tive que
chegasse para mim e para os meus filhos. E ainda dava. Esta situação é nova
para mim. Nova e difícil. A coisa boa é que percebi que também há gente boa,
que ajuda quem não conhece. Estou por isso muito agradecida”, explica.
“Tínhamos
tudo. Agora ficámos sem nada”, diz o marido de Rosa, António Bernardino. O
grupo Esposende com Pedrógão no Coração levou-lhe material de construção para
reconstruir a casa e um enxoval completo para a bebé Serena, a neta mais nova
dos Bernardino, que conta agora com dois meses de vida. “É nos meus filhos e
nos meus netos que eu penso, para poder olhar para a frente”, diz Rosa. Os seus
olhos, marejados, revelam que na verdade o que lhe apetece mesmo é chorar. Chorar
muito.
Aldeias
resilientes
Conformação.
Resignação. Mas também desespero. E revolta. É nas alturas da tragédia que as
pessoas se definem. E Nádia Piazza, quando descobriu que o filho de cinco anos
tinha morrido daquela forma estúpida, nos braços do pai, na estrada que estava
cortada por um pinheiro, Nádia escolheu definir-se como uma lutadora. “Tinha
duas opções. Fazer as malas e ir embora. Ficar e lutar. Escolhi ficar e lutar.
E procurar saber a verdade para impedir que possa um dia voltar a acontecer com
quem quer que seja”, afirma.
Por isso, a
revolta que sentiu quatro meses depois daquele fim-de-semana de Junho foi ainda
maior. “Se em Pedrógão parece óbvio que existiu incompetência do Estado, em
Outubro só pode ter havido má-fé. É incompreensível que se tenham cometido os
mesmos erros [nas questões de meios de combate e respectiva coordenação]”,
acusa a presidente da AVIPG.
O que aconteceu em Pedrógão ainda não está completamente
apurado, mas já há várias pistas e relatórios com conclusões. Nomeadamente, o
da Comissão Técnica Independente, liderada por João Guerreiro, que apontou para
a possibilidade de ter havido curto-circuito em postes da EDP na origem da
ignição e demonstrou que foi a existência de um pinheiro derrubado na estrada
que impediu a passagem das viaturas que acabaram calcinadas, juntamente com os
seus ocupantes. A via judicial para apurar responsabilidades criminais também
já está em curso e já fez os primeiros dois arguidos, indiciados pelos crimes
de homicídio por negligência e ofensas corporais: Augusto Arnaut, comandante
dos bombeiros de Pedrógão, e Mário Cerol, segundo comandante distrital de
Leiria.
“Independentemente
de haver Estado para nos socorrer ou não, a verdade é que temos de voltar à
organização inicial no combate aos fogos. Nós, sociedade civil, temos de nos
bastar até chegar uma resposta institucional”
Como se não
bastasse o desafio de enfrentar o vazio da destruição, os moradores nestas
aldeias mais ou menos isoladas enfrentam também o pânico de que tudo possa, um
dia, voltar a acontecer. As alterações climatéricas são uma realidade, o fogo
começou a vir com intensidade que nunca tinha sido vista antes, os bombeiros
não chegam a todas as solicitações.
“Independentemente
de haver Estado para nos socorrer ou não, a verdade é que temos de voltar à
organização inicial no combate aos fogos. Nós, sociedade civil, temos de nos
bastar até chegar uma resposta institucional”, simplifica Nádia Piazza, dizendo
que essa é a única conclusão que qualquer cidadão pode tirar. “Nós temos a
quinta maior mancha contínua de eucalipto no mundo. Só perdemos para países com
outra dimensão, como a China, a Índia, a Austrália ou o Brasil. Com a agravante
de que em Portugal o período de calor é também o período seco, enquanto nesses
países o calor é acompanhado de chuva, quase sempre”, recorda a presidente da
associação, formada em Direito Público e que está em Portugal há 17 anos e no
interior há 12.
O professor
Domingos Xavier Viegas, especialista em Incêndios Florestais da Universidade de
Coimbra, a quem o Governo pediu um relatório a analisar a tragédia, diz que o
sistema nacional de defesa da floresta está assente em três pilares: a
Protecção Civil, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, o
Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (Sepna) da GNR. Mas falta o
quarto pilar, que é o da sociedade civil, a população, que não tem qualquer
tipo de informação sobre o que deve fazer e como se deve proteger.
“É preciso
ser-se muito estúpido para não perceber que numa zona com estas características
o combate é impossível? E para não reparar que nesta mancha de eucaliptos há estrelinhas
que se chamam aldeias, onde ainda existem pessoas? É preciso salvá-las. Vamos
ficar à espera de que o Estado nos venha dar alguma coisa? Formação? Não. Vamos
avançar nós”, explica Nádia Piazza.
25 aldeias
participam
já no projecto-piloto Aldeias Resilientes
A sede da
Associação das Vítimas de Pedrógão Grande vai ser instalada na antiga escola
primária da Figueira, numa recuperação financiada pela Fundação Calouste
Gulbenkian, e vai ser também sede das muitas iniciativas que a associação já
tem em curso. Uma delas é Aldeias Resilientes, um projecto-piloto que passa
pelo levantamento das populações que residem nas aldeias (geo-referenciar as
habitações permanentes, as sazonais, as pessoas aptas a constituir uma equipa e
a participar activamente nos esforços de autoprotecção, pessoas com
deficiências ou mobilidade reduzida) e também os eventuais mecanismos de
combate existentes e necessários. O projecto envolve já 25 aldeias.
“Às vezes,
não é preciso comprar nada, é só preciso saber onde se encontra uma boca de
incêndio ou um tanque, ou até uma máquina de arrasto”, explica Nádia. Resume:
“Nós queremos continuar a ver as aldeias habitadas. E ter a certeza de que a
população sabe o que tem de fazer em caso de perigo”, sintetiza a presidente da
associação, admitindo que são estes projectos que lhe dão fôlego, enquanto há
outras preocupações a tirarem-lhe a energia. “Posso estar a cruzar-me,
diariamente, com pessoas que possam ter tido algum grau de responsabilidade no
que aconteceu. E isso é difícil de imaginar. Mas temos de ir até ao fim”,
termina.
Ir até ao
fim significa deixar passar um dia de cada vez. Tendo na ideia o objectivo de
impedir que o interior fique ainda mais desertificado, a Associação Aldeias de
Montanha, que representa 41 aldeias de nove municípios na região da serra da
Estrela, está a pensar não apenas no Natal, mas também no futuro. Sendo um
destino turístico que viveu sempre da Natureza, e da sua exuberância, terá, nos
próximos tempos, de se focar mais nas suas tradições culturais e na resiliência
desta gente. A aldeia de Folgosinho, uma das jóias da coroa, saiu preservada,
mas tudo à sua volta ardeu. “Ficaram as pessoas e as suas tradições, e a sua
resiliência. O nosso calendário de actividades de 2018 irá estar muito focado
na divulgação do destino através deste ponto de vista cultural”, diz Célia
Gonçalves, a representar essa associação. Ardeu muita coisa (por exemplo, todos
os circuitos cicláveis), mas a maior parte da rede de caminhos de aldeia é
recuperável — 140 dos 160 quilómetros da rede permanecem em bom estado.
Francisco
Freire tem apenas 24 anos e passou o último mês de Setembro com o avô José, na
aldeia de Coucedeira, em Seia, a ajudá-lo a fazer aguardente. É, de entre os
netos de José Nunes Freire e Prazeres da Silva, aquele que mais gostava de
frequentar a aldeia. A família habituou-se a passar ali o Verão e todas as
férias. Coucedeira é uma aldeia-presépio, daquelas encaixadas nas encostas da
serra. O núcleo central, com 15 casas, ardeu completamente — entre elas, a casa
de José e Prazeres, onde Francisco gostava de vir passar as férias. Mas, das 15
casas, apenas duas são de habitação permanente. As outras dificilmente serão
reconstruídas a expensas próprias. O avô, com 84 anos, e por enquanto a viver
de favor na casa de um primo, só quer ver a casa recomposta. Ir para Lisboa
viver com os filhos continua fora de questão. Ele é o aldeão resiliente. Mas a
aldeia sobreviverá? Francisco resigna-se: “Tudo vai ser diferente.” Este
ano, o Natal terá de ser em São Domingos de Rana. O futuro? “Logo se vê.”
tp.ocilbup@otnip.asiul tp.ocilbup@dnil.alibis
SEIS MESES
DE INCÊNDIOS FLORESTAIS
Os que
salvaram também sofrem
Dói-lhes a
alma por aqueles que não conseguiram salvar. É um pesadelo que os persegue. O
seu trabalho foi questionado e criticado e também por isso ficaram calados até
hoje. Domingos Xavier Viegas, que elaborou um dos relatórios sobre a tragédia,
a pedido do Governo, revelou os actos de coragem de Sérgio Lourenço e Manuel
Antunes, Pedro Nunes e Nuno Dinis na noite mais negra da história recente
quando, por sua conta e risco, salvaram dezenas de pessoas. O P2 foi saber quem
são e acompanhou-os neste regresso às memórias de um dia que não conseguem
esquecer.
LILIANA VALENTE (Texto), ADRIANO MIRANDA (Fotografia) e VERA
MOUTINHO (Edição de vídeo) 17 de
Dezembro de 2017, 7:30
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