Agressividade
do crédito faz disparar riscos para as famílias
O crédito ao
consumo está a crescer e as condições dos empréstimos são cada vez mais
complexas, contendo verdadeiras armadilhas para os consumidores. Banco de
Portugal assume preocupação
"Natália
Nunes, coordenadora do Gabinete de Apoio ao Sobre-endividado (GAS) da Deco,
considera que “se voltou à forma de contratação praticada antes da crise
financeira de 2008”, e considera que “há um claro aproveitamento da iliteracia
financeira de muitos consumidores”, o que deveria levar “a uma outra atenção do
regulador”.
ROSA SOARES 10 de Dezembro de 2017, 6:49
Nos primeiros nove meses de 2017 foram emprestados, em
média, 17,7 milhões de euros de crédito ao consumo por dia. No total, foram
concedidos 4800 milhões de euros de novo crédito para compra de carro,
electrodomésticos e muitas outras coisas. Um crescimento acima 12% em termos homólogos, e que faz despertar
receios de que muitas famílias estão a cair, novamente, numa espiral de
endividamento excessivo.
As
campanhas de promoção deste tipo de crédito estão por todo o lado: na rádio, na
televisão, na caixa do correio, no email e no telemóvel. E são cada vez
agressivas, porque estão associadas a ofertas a que é difícil resistir, como
saldos em cartão, equipamentos electrónicos, viagens e descontos. A par da
forte persuasão, os produtos de crédito estão cada vez mais complexos, de
difícil compreensão, mesmo para pessoas com formação superior fora da área da
economia e gestão.
Alguns dos
produtos têm verdadeiras “rasteiras”, como a proliferação de cartões de crédito
com pagamento mínimo mensal de 5% e 10% dos saldos, percentagens que podem ser
aumentadas se o cliente se dirigir a uma caixa automática (vulgo multibanco),
ou no acto da compra. Pagar 5% ou 10%, ou mesmo 50% do montante em dívida, por
mês, é fazer disparar o valor pago em juros.
Por outro
lado, rapidamente o cliente atinge o limite de crédito autorizado e logo surge
a tentação de subscrever outro cartão. E praticamente ninguém tem noção dos
juros pagos, que nos cartões mais recentemente ronda os 16%, mas nos mais
antigos podem ficar muito acima dos 20%. E, novidade recente, começam a surgir
cartões em que o habitual período sem juros, de 30 a 50 dias, só se aplica a
quem optar pelo pagamento fraccionado.
O saldo
total do crédito ao consumo não é muito elevado, representava cerca de 20% do
endividamento das famílias no passado mês de Setembro (num total de 115.106
milhões de euros), com a habitação a representar os restantes 80%. Mas é este
crédito que gera maiores situações de incumprimento, e que está na origem de
boa parte das situações de “falência” financeira dos consumidores. Isto porque
é frequente as famílias terem vários créditos, nomeadamente através de cartões
de crédito, e de subscreverem novos empréstimos para pagar outros já em
incumprimento, e esse desequilíbrio chega, em muitos casos, ao empréstimo da
casa.
A
aceleração deste tipo de crédito, mais de 40% do qual é para a compra de
automóveis, fica a dever-se “ao aumento da confiança das famílias, sendo a
primeira variável a despertar num cenário de recuperação económica”, explicou
ao PÚBLICO Jorge Farinha, professor da Faculdade de Economia do Porto.
A forte
concorrência entre bancos para ganhar quota de mercado, um negócio dominado por
bancos estrangeiros, leva a práticas que “replicam o que já aconteceu no
passado, embora a sinistralidade [incumprimento] tende a ser menor que no pico
da crise”, adiantou Jorge Farinha, responsável por várias disciplinas na área
de Finanças.
E o que
aconteceu no passado foi a assunção de empréstimos que, em face de uma redução
de rendimentos, as famílias não conseguiram suportar, entrando em
incumprimento, o que leva, no desfecho mais dramático, à perda da casa e ou à
insolvência pessoal.
O Banco de
Portugal (BdP) começa a olhar com preocupação para o ritmo de evolução do
crédito, que resulta de critérios mais flexíveis na sua concessão, nomeadamente
na avaliação da capacidade financeira das famílias para cumprirem os encargos
assumidos em caso de redução do seu rendimento e num cenário de subida das
taxas de juro, que se deverá colocar a partir de 2019. Boa parte do crédito ao
consumo tem taxa fixa, ao contrário do que se passa na habitação, que está
associado à Euribor, o que acaba por ter um impacto muito elevado no orçamento
familiar.
No
relatório de Estabilidade Financeiro, divulgada esta semana, o BdP destaca que
“os fluxos de novos empréstimos a particulares [consumo e habitação] registaram
um crescimento significativo no primeiro semestre de 2017, tendo já superado,
em percentagem do rendimento disponível os níveis observados no início do
Programa de Assistência Económica e Financeira”, imposto pela “troika”, em
2011. A preocupação do supervisor é bastante maior no crédito à habitação, onde
admite tomar medidas para “apertar” alguns critérios de concessão por parte dos
bancos, que na prática funcionarão como travão a operações de maior risco.
Recentemente,
o BdP aprovou regras que reforçam os deveres das instituições na avaliação dos
deveres de solvabilidade, que entrarão em vigor a 1 de Janeiro de 2018, no
âmbito de legislação comunitária, que, no entanto, não impedem que o regulador
admita tomar medidas complementares.
Sinais de
alerta
A
agressividade comercial é acompanhada de uma certa ligeireza na avaliação da
capacidade financeira do cliente. Até 1500 euros é frequente encontrar crédito
concedido na hora, sem comprovação de rendimentos, e da situação
socioprofissional, despesas regulares. Quando muito, dá tempo para uma consulta
à Central de Responsabilidade de Crédito, que é uma espécie de cadastro do
histórico financeiro do cliente, contendo informação sobre eventuais falhas de
pagamento de empréstimos.
Agressivas
são também as campanhas de crédito com taxa de juro zero, reflectida na Taxa
Anual Nominal, que é a taxa habitualmente promovida, mas pode não ser zero,
porque os juros estão escondidos noutros custos, como o de abertura de
processo, seguros obrigatórios, comissão de pagamento de prestação, e isso só é
reflectido na Taxa Anual de Encargos Efectiva Geral (TAEG), que tem de ser
comunicada ao cliente, e tem que estar nos contratos, mas que não é de fácil
percepção pelos clientes.
Natália
Nunes, coordenadora do Gabinete de Apoio ao Sobre-endividado (GAS) da Deco,
considera que “se voltou à forma de contratação praticada antes da crise
financeira de 2008”, e considera que “há um claro aproveitamento da iliteracia
financeira de muitos consumidores”, o que deveria levar “a uma outra atenção do
regulador”. E os resultados são preocupantes. Natália Nunes refere que “todos
os dias chegam ao GAS pedidos de famílias sobre-endividadas e que não há uma
diminuição face aos anos anteriores. De Janeiro a 25 de Outubro, o GAS recebeu
26.080 pedidos de ajuda, já perto dos cerca de 30 mil do total do ano passado.
“A situação
das famílias não está também como parece”, refere a coordenadora do GAS,
admitindo que já é visível uma preocupação de muitas famílias com o impacto que
a subida da Euribor pode ter no seu orçamento.
O
presidente da Apusbanc Consumo, associação de defesa do consumidor, Júlio
Martins-Mourão diz não ter dúvidas que a publicidade do crédito ao consumo “é
agressiva e enganosa”, admitindo que há coisas a corrigir, como rápida
comunicação à Central de
Responsabilidade de Crédio da entrada em incumprimento dos clientes, que
actualmente é de dois meses. Júlio Martins-Mourão também defende medidas
rápidas relativamente à formação dos funcionários afectos à venda destes
produtos.
A
introdução de uma disciplina de formação financeira, a começar no secundário, é
fundamental, defende Jorge Farinha, considerando que essa matéria “não é menos
importante do que aprender Português ou História”. Da sua experiência pessoal,
diz o professor universitário, “há muitas pessoas com formação superior com
grande desconhecimento destas matérias”, em boa parte porque a linguagem “é
muito inacessível”.
(...)
"Outro dos motivos de preocupação do Banco de Portugal é o facto de que
"os fluxos acumulados de novo crédito à habitação mantiveram, no primeiro
semestre de 2017, uma dinâmica de forte crescimento - cerca de 40% em termos
homólogos". Além de que "a percentagem de transações de alojamentos
familiares financiadas por recurso a crédito aumentou para 45%, face ao mínimo
de 20% em 2013". Em 2009, o valor era de 65%."
"Neste
sentido, é importante que as instituições financeiras baseiem as suas decisões
de concessão de crédito em análises adequadas da capacidade de serviço da
dívida por parte dos clientes, em particular em condições macroeconómicas e
financeiras mais adversas", refere.
Carlos Costa
avisa banca para travar crédito à habitação
07 DE DEZEMBRO DE 2017
Elisabete Tavares
Banco de
Portugal admite dificultar a concessão de empréstimos para a compra de casa
para proteger bancos de nova crise
"Fazer
um crédito à habitação pode ser mais difícil num futuro próximo. O Banco de
Portugal pondera avançar com medidas que vão dificultar a vida a quem quiser
pedir um empréstimo para comprar casa. Em cima da mesa, admite, está um aumento
de exigências para a concessão de crédito, nomeadamente pedindo mais garantias.
Também pode exigir que a taxa de esforço a ter em conta seja mais apertada e
contemple a futura subida das taxas de juro na zona euro. Outra medida pode
envolver a descida do prazo de duração de um empréstimo. De acordo com o
supervisor, Portugal apresenta maturidades mais longas no crédito à habitação
face à média da zona euro, aproximando-se dos 40 anos."
"Os
fluxos acumulados de novo crédito à habitação mantiveram uma dinâmica forte no
primeiro semestre de 2017, com um peso crescente no valor das transações de
alojamentos familiares", refere o banco central no seu Relatório de
Estabilidade Financeira.
Para o
Banco de Portugal, "importa assegurar que as atuais dinâmicas do crédito à
habitação e da economia, em particular do mercado imobiliário, não comprometam
a redução do ainda elevado rácio de endividamento dos particulares". Por
outro lado, o banco central também quer assegurar que não é promovida a
"acumulação de risco excessivo no balanço dos bancos e a excessiva
afetação de recursos da economia ao setor imobiliário".
Posto isto,
"o Banco de Portugal pondera a adoção de medidas adicionais tendo em vista
reforçar a avaliação da capacidade creditícia dos mutuários pelas
instituições".
Spreads a
descer
Um dos
sinais de alerta verificados pelo Banco de Portugal é que, nos últimos anos, em
particular desde 2015, "observa-se uma compressão dos spreads dos novos
empréstimos à habitação, o que reflete, em larga medida, a concorrência entre
bancos neste segmento".
Mesmo que
os spreads aplicados atualmente "se situem muito acima dos níveis
praticados antes da crise, já se encontram em níveis relativamente baixos no
contexto da área euro".
Mas, além
dos spreads, "outros critérios de concessão de crédito mostram alguns
sinais de menor restritividade".
Outro dos
motivos de preocupação do Banco de Portugal é o facto de que "os fluxos
acumulados de novo crédito à habitação mantiveram, no primeiro semestre de
2017, uma dinâmica de forte crescimento - cerca de 40% em termos
homólogos". Além de que "a percentagem de transações de alojamentos
familiares financiadas por recurso a crédito aumentou para 45%, face ao mínimo
de 20% em 2013". Em 2009, o valor era de 65%.
"Neste
sentido, é importante que as instituições financeiras baseiem as suas decisões
de concessão de crédito em análises adequadas da capacidade de serviço da
dívida por parte dos clientes, em particular em condições macroeconómicas e
financeiras mais adversas", refere.
O banco
central lembra que, na perspetiva dos particulares, o crédito à habitação
constitui habitualmente o maior compromisso financeiro assumido, dados os
valores mutuados, o prazo típico de duração dos contratos e as consequências da
eventual execução da hipoteca.
A exposição
direta e indireta ao mercado imobiliário, por parte da banca, representa cerca
de 40% do ativo total do setor bancário. "Esta exposição assume sobretudo
uma natureza indireta, principalmente relacionada com crédito a particulares
para habitação, o qual é tipicamente garantido por hipoteca do imóvel". Em
junho de 2017, o crédito a particulares para habitação representava
aproximadamente 28% do ativo total.
Apesar de
tudo, os montantes acumulados de crédito à habitação estão a baixar, embora a
um ritmo mais lento do que nos últimos anos, devido a amortizações antecipadas
e ao vencimento de contratos antigos, que superam os novos contratos. Além de
que grande parte do aumento da procura de casas em Portugal vem de investidores
estrangeiros, com regimes fiscais favoráveis. E estes compram em dinheiro ou
com financiamento no exterior.
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