Transformação
de palácio do séc. XVII em condomínio continua apesar da polémica
POR SAMUEL
ALEMÃO • 13 DEZEMBRO, 2017 •
Imunes à
celeuma em torno da transformação do Palácio de Santa Helena, em Alfama, num
condomínio de luxo, as obras mantêm-se e a bom ritmo. O movimento Fórum
Cidadania Lisboa diz que a empreitada viola as regras do Plano Director
Municipal (PDM) viola o sistema de vistas dos espaços públicos envolventes.
Situação a que se juntam outras, apontadas por moradores, como a retirada para
restauro de azulejos com elevado valor histórico, o desmantelamento de fachadas
e a execução de trabalhos aos fins-de-semana e feriados. Segundo outros
críticos da obra, foram encontrados vestígios históricos aos quais não se tem
dado a devida importância. Entre eles, encontram-se 20 esqueletos do período
islâmico e os silos do rei D. Dinis. A Associação do Património e População de
Alfama (APPA) e os moradores do bairro continuam a reunir elementos para travar
a construção do novo empreendimento. Há mesmo um abaixo-assinado a correr
pedindo a discussão da obra em reunião de câmara. A promotora do
empreendimento, a Stone Capital, garante, porém, que todas as regras estão a
ser cumpridas.
Texto: Sofia Cristino
As obras do Palácio de Santa Helena, em
Alfama, prosseguem, apesar da polémica gerada em torno da transformação do
imóvel do século XVII em 20 apartamentos de luxo. O movimento Fórum Cidadania
Lisboa tem denunciado, através da sua plataforma online, várias situações com
as quais não concorda, sobretudo por considerar não estarem garantidos quer a
manutenção do sistema de vistas dos espaços públicos envolventes, como o Largo
do Outeirinho e os miradouros das Portas do Sol e de Santa Luzia.
A Associação do Património e População de
Alfama (APPA) e os moradores do bairro continuam a reunir elementos sólidos
para travar a obra e avançarem com a providência cautelar, que anunciaram no
passado do mês de Outubro. Segundo a presidente da APPA, Lurdes Pinheiro, “a
recuperação do palácio deve ser feita, mas preservando o património cultural e
histórico do mesmo”. “Podiam até construir apartamentos mas tinham de ser
menos, para não tirar a vista. O ideal seria construírem apartamentos para as
pessoas que moram cá”, acrescenta. A empresa que promove o empreendimento
garante, todavia, a O Corvo que cumpre com todas as exigências legais. E diz
que os azulejos serão preservados na sua integridade.
Há, contudo, quem esteja preocupado. Paulo
Ferrero, fundador do Fórum Cidadania Lisboa, diz que, no passado dia 1 de
Dezembro, foram demolidas fachadas do Palácio de Santa Helena e retirados
azulejos de elevado valor histórico das mesmas, não estando presentes fiscais
nem arqueólogos para acompanhar a intervenção. Num dos últimos posts do blog do
movimento, lê-se que “as paredes onde estavam os azulejos, simplesmente,
desapareceram”. Para Ferrero, estes azulejos não deveriam ter sido retirados.
“Os azulejos, segundo os entendidos, devem ser restaurados in situ. Ao serem
retirados, podem-se partir ou tornar-se mais difícil a sua posterior colocação.
Quando vejo uma parede vazia, desconfio”, diz, em declarações a O Corvo.
Júlio Soares, morador do rés-do-chão do prédio
contíguo ao palácio, também está intrigado com a retirada dos azulejos. “Estes
azulejos são muitos valiosos e contam a história dos Condes de São Martinho na
Corte Portuguesa. Mesmo que voltem a ser colocados, em que paredes vão ser? Ou
será que uma parte destes azulejos classificados e protegidos não vão voltar
para o Palácio de Santa Helena?”, questiona.
A Stone Capital, no entanto, garante que os
azulejos, que estão a ser restaurados manualmente, voltarão para o palácio. “Os
azulejos serão preservados e recolocados de acordo com as melhores técnicas”,
informa a imobiliária em depoimento escrito a O Corvo. Pedro Cassiano Neves,
historiador, também não vê nenhum problema na retirada e recolocação dos
mesmos. “Penso que é possível os azulejos serem repostos na íntegra, desde que
este trabalho seja feito por especialistas”, garante a O Corvo. “O que critico
na obra é a ocupação do pátio de entrada, uma das maiores marcas da casa, que
passará a ter um índice de ocupação muito grande, assim como o sistema de
vistas. Na ala nascente, que será novamente construída, o rio deixará de se
ver”, adianta. De acordo com o historiador, os azulejos datam dos séculos XVII
e XVIII, sendo que a maior parte pertence ao século XVIII.
Nuno Neto, arqueólogo da empresa de
arqueologia Neoépica e responsável pelas escavações no Palácio de Santa Helena,
não concorda com as considerações tecidas pelo Fórum Cidadania Lisboa. “Os
arqueólogos estão presentes em todas as intervenções em que tal seja necessário
e esteja previsto, de acordo com o plano de acompanhamento de trabalhos
arqueológicos. As fachadas originais com valor patrimonial, de acordo com o
estudo histórico efectuado, serão mantidas, procedendo-se apenas à demolição de
componentes degradados sem valor arquitectónico. O que foi destruído foi apenas
uma parede de betão”, refere.
Em maio deste ano foram, ainda, encontrados 20
esqueletos, datados do período islâmico, no pátio da antiga Escola Superior de
Educação Almeida Garrett, que esteve instalada durante duas décadas no Palácio
de Santa Helena. Descobriram-se, também, os silos do rei do D. Dinis do século
XIV. Nuno Neto, confirmou o achado a O Corvo. “Entre maio e junho deste ano,
encontrámos 20 enterramentos, de ocupação islâmica, dos quais nove, que estavam
mais completos, foram guardados para serem estudados e devidamente
acompanhados. Posteriormente, todo o espólio será entregue à Câmara de Lisboa”,
informa, acrescentando que “não é comum encontrar vestígios desta época mas,
também, não é uma raridade”. “Temos vindo a encontrar. Do ponto de vista
histórico, é sempre muito importante”, explica.
Segundo a Direcção Geral do Património e
Cultura (DGPC), “desde o início da intervenção arqueológica foi possível
constatar que o subsolo estava repleto de informação arqueológica relacionada
com o passado medieval da cidade, revelando a existência de uma necrópole de
ritual funerário islâmico, cortada por enormes silos, possivelmente associáveis
às designadas ‘covas de pão’ implementadas no reinado de D. Dinis”. “Também o
edifício actual revelou a incorporação estrutural de partes substanciais do
anterior edifício de época moderna destruído com o terramoto de 1755”, informa
a DGPC, em depoimento escrito a O Corvo.
Carlos Moura e João Ferreira, vereadores do
PCP, entregaram, no passado dia 21 de Setembro, tal como o Corvo noticiou, um
requerimento ao presidente da CML, Fernando Medina, a questionar se a aprovação
e deferimento da operação urbanística no Palácio de Santa Helena deveria ter
sido deliberada ou não pela Câmara de Lisboa, uma vez que se trata de uma
intervenção com impacto urbanístico relevante. A resposta chegou no dia 19 de
outubro, na qual se pode ler que o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, “tem competência
para decidir sobre pedidos de informação prévia e sobre a aprovação dos
projectos de arquitectura relativos a operações de edificação quando, nos
termos do artigo 6º do RMUEL, a operação urbanística seja considerada de
impacto relevante”.
Paulo Ferrero enviou, também, recentemente, um
email à Provedora de Justiça, questionando-a porque não foi feita uma discussão
pública, obrigatória por lei em obras de grande impacto como loteamentos ou
outros, e que não se verificou neste caso, para avaliar a pertinência da
construção de obras de grande impacto. “Provavelmente, terei a resposta quando
a obra terminar”, ironiza. “A empreitada viola claramente as regras do Plano
Director Municipal (PDM), revisto em 2012. Se os moradores e a APPA avançarem
mesmo com uma providência cautelar, têm de ter informação muito sólida e um
advogado que realmente comprove o que é o ponto fulcral da ilegalidade da obra,
que é o sistema de vistas”, acrescenta.
Tal como O Corvo noticiou a 23 de Outubro, o
que está por trás da vontade da APPA e dos moradores em impedir a transformação
do imóvel do século XVII num condomínio de luxo é a“descaracterização” do
bairro histórico e a perda de vista dos habitantes sobre Alfama e o Rio Tejo.
Carlos Moura colocou, por isso, outra questão ao vereador responsável pelo
pelouro do Urbanismo numa reunião de Câmara de Lisboa. A esta segunda pergunta
recebeu uma resposta verbal. “Não recebemos resposta por escrito do vereador
Manuel Salgado, mas este transmitiu-nos em reunião de câmara que entende que os
moradores não vão ficar sem luz”, explica, em declarações a O Corvo.
A presidente da APPA, Lurdes Pinheiro, diz não
entender a posição do vereador. “Há aqui uma discrepância muito grande na forma
de tratamento das pessoas. Eu não tenho autorização para abrir uma janela mas
os moradores dos novos apartamentos de luxo terão. Os critérios não são iguais.
Esta obra não respeita os conceitos mínimos de estética”, acusa. “O que importa
nesta cidade é o dinheiro. Não temos acesso ao projecto todo, que só teríamos
acesso com reunião de câmara, que nos foi negada. Mesmo assim, não vamos
desistir, e vamos reunir os elementos necessários para impedir que a obra
continue”, garante a O Corvo.
A decisão da Stone Capital, imobiliária
responsável pela empreitada, de derrubar um muro do prédio contíguo ao portão
do Palácio de Santa Helena, sem consultar os moradores, foi a “gota de água”
para estes declararam a vontade de avançarem com uma providência cautelar,
juntamente com a APPA, no passado mês de Outubro. Na altura, Arthur Moreno,
dono da Stone Capital, argumentou que o muro precisava se encontrava com
“graves problemas de estabilidade”. Contudo, segundo o auto de vistoria
realizado pela Unidade de Intervenção Territorial da Câmara Municipal de Lisboa
(CML), a que O Corvo teve acesso, o muro em questão não tinha nenhum problema
desta natureza. Um mês e meio depois, numa reunião realizada entre dois
representantes dos moradores do prédio adjacente ao imóvel do século XVII e a
Stone Capital, a empresa imobiliária reconheceu que o muro é propriedade do
prédio e não do Palácio de Santa Helena, garantindo, ainda que só verbalmente,
que não vai derrubar o mesmo, mas construir um igual.
Questionada sobre a mudança repentina de
planos, a Stone Capital diz apenas que “foi aceite uma solução técnica
alternativa motivada exclusivamente por espírito de colaboração e vontade de
fomentar relações de boa vizinhança”, não se alongando em pormenores. Júlio
Soares não está tão confiante, mostrando-se até surpreendido. “Tentaram deitar
o muro abaixo por três vezes e, de todas, eu ligava para a polícia ou para os
bombeiros e eles fugiam com as picaretas. Arranjámos uma advogada e, de
repente, disseram-nos que não iam mexer no muro. Quero acreditar na palavra
deles, embora ainda não tenham escrito o que disseram e isto soa tudo muito
esquisito”, refere.
Segundo Júlio Soares e a presidente da APPA,
Lurdes Pinheiro, as obras continuam e a “bom ritmo”. Os operários de construção
civil têm trabalhado aos fins-de-semana e feriados, mesmo sendo proibida a
prática de actividades ruidosas temporárias na proximidade de imóveis
habitacionais nestes dias. Questionada pelo O Corvo sobre o facto da legislação
não impedir a execução do seu trabalho, a Stone Capital disse, em depoimento
escrito a O Corvo, que “em todas as suas obras procura cumprir com a
calendarização dos trabalhos de modo a que a perturbação inerente às obras seja
reduzida ao período mínimo possível, sem descurar os procedimentos
obrigatórios”. “A obra de Santa Helena não é exceção”, salienta.
Desde o último domingo ( 10 de Dezembro), está
a circular um abaixo-assinado entre os moradores do bairro de Alfama sobre este
assunto. O objectivo é recolher assinaturas de todos aqueles que se dizem
afectados pela requalificação do Palácio de Santa Helena e criar condições para
o tema ser levado a discussão em reunião de câmara.
Sem comentários:
Enviar um comentário