Uns fogem, os outros mentem
Não gozem connosco, senhores
deputados. Há um limite para a falta de vergonha. Foram à caixa. Comeram os
chocolates. Evitem ao menos esfregar as mãos sujas na nossa cara.
João Miguel Tavares
30 de Dezembro de 2017, 6:52
Os deputados portugueses aprovaram a nova lei do
financiamento partidário como se fossem crianças a ir às escondidas à caixa dos
chocolates, e ao serem apanhados pela comunicação social reagiram como crianças
que foram às escondidas à caixa dos chocolates. Uns desculparam-se dizendo que
nem sequer apreciam particularmente os chocolates que acabaram de comer (Bloco
de Esquerda e PCP), os outros dizendo que aquilo que comeram parece chocolate,
sabe a chocolate e cheira a chocolate, mas não é chocolate (PS e PSD). Uns
fogem, os outros mentem. Os deputados portugueses não só têm manifesta
dificuldade em reagir como pessoas adultas, como padecem de uma compulsão
sadomasoquista que os leva a prejudicar simultaneamente o país e a eles próprios.
Não sei bem qual o comportamento mais deplorável, se o dos
hipócritas, se o dos mentirosos, mas comecemos pelos hipócritas. O primeiro
partido a dizer “comi mas não gostei” foi o Bloco, garantindo que apenas votou
a favor da lei “pela necessidade de convergência”, embora ela “não espelhe a
posição de fundo do Bloco de Esquerda sobre esta matéria”. O Bloco até alerta
no seu comunicado para um problema grave, que não tem sido devidamente
discutido: o facto de a devolução do IVA aos partidos agravar a “discriminação
entre candidaturas partidárias e candidaturas de grupos de cidadãos eleitores a
autarquias locais”. Está muito bem visto. A lei é fraca, superficial e
discriminatória, logo, o Bloco votou a favor. O PCP fez o mesmo. Jerónimo de
Sousa declarou que as “melhorias” agora introduzidas são “insuficientes”, e
classificou a lei do financiamento partidário como – agarrem-se para não caírem
– “absurda, antidemocrática e inconstitucional”. No entanto, dado a lei ter
ficado, segundo os comunistas, ligeiramente menos absurda, menos
antidemocrática e um pouco menos inconstitucional, o PCP achou por bem
atribuir-lhe um voto favorável. Também faz sentido.
E depois dos hipócritas, os mentirosos: em vez de “comi mas
não gostei”, estes optaram pelo argumento “comi mas não era chocolate”.
Comunicado do grupo de trabalho clandestino, coordenado por José Silvano, do
PSD: da nova lei aprovada “não resulta nenhum aumento de subvenção estatal ou
quaisquer encargos públicos adicionais para com os partidos políticos”. Ana
Catarina Mendes, do PS: “é totalmente falsa a ideia de que há um aumento nos
cofres partidários com esta lei”, tal como é falso “qualquer propósito de
beneficiar retroactivamente qualquer partido político”. Não tenho espaço para
estar aqui a desmontar estas afirmações patéticas, e os jornais têm feito bem o
seu trabalho de analisar, através do fact-checking, o absurdo dos argumentos.
Deixo apenas uma citação da própria lei, para quem afirma não haver qualquer
retroactividade: “A presente lei aplica-se aos processos novos e aos processos
pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar
julgamento.”
Aquilo que me interessa sublinhar, em conclusão, porque
nenhum português merece ser tratado como imbecil, é isto: se a lei é tão
fantástica, tão cristalina, tão impoluta, e com o único e exclusivo objectivo
de dar resposta a um pedido do Tribunal Constitucional, qual é a justificação
para o secretismo de todos os procedimentos e o anonimato das propostas
partidárias? Não gozem connosco, senhores deputados. Há um limite para a falta
de vergonha. Foram à caixa. Comeram os chocolates. Evitem ao menos esfregar as
mãos sujas na nossa cara.
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