O Tejo é um rio de lamentações from Público on Vimeo.
O Tejo corre
para a morte
O Tejo
agoniza. Está seco e poluído. Os peixes morrem à procura de oxigénio. Os
animais recusam-se a beber as suas águas sujas e espumosas. Os turistas fogem
das praias. Quem ainda vive junto ao rio pouco sustento tira dele. Retrato de
um rio que já foi vida e é hoje uma tragédia
LUCIANO
ALVAREZ Texto, RICARDO LOPES Fotos e FREDERICO BATISTA Vídeo 6 de Dezembro de
2017, 6:40
Na lezíria
ribatejana junto ao Tejo, os borregos e os cabritos deixaram de beber água do
rio. Os cheiros que as águas soltam afastam-nos daquele que foi o seu bebedouro
natural ao longo de séculos de pastorícia na região.
Na Beira
Baixa e no Norte alentejano, os peixes apareceram mortos aos milhares em
Outubro e Novembro. Os pescadores do Tejo, cada vez menos, enumeram de enfiada
as espécies que antes pescavam com fartura e que agora desapareceram do rio. Em
alguns locais, o pouco peixe que resta nas águas já não presta para comer, e os
restaurantes, que antes o apregoavam, já o retiraram das ementas porque quase
ninguém arrisca o seu consumo.
Os turistas
fogem das praias fluviais, assustados com as notícias que dão conta da poluição
do rio, e os empresários que investiram perto das águas temem pelo futuro dos
seus negócios. Fogem também os jovens, porque o rio já não dá sustento nem
futuro.
As gentes
que vivem na margem do rio falam de um Tejo cada vez mais minguado de água,
pintado de castanho pela poluição, que deixa as margens e as suas pedras
tingidas de preto.
Relatam
marés de espuma causadas pelas “lixívias” que os poluidores lançam para a água.
Indignam-se com as autoridades e com os ministros “que nada fazem”. Desconfiam
da certeza assegurada pelos governos ibéricos de que a água descarregada por
Espanha para Portugal seja a acordada pelos dois países.
Este é o
retrato que os que ainda vivem e trabalham junto ao Tejo fazem do rio que no
passado foi a sua vida e o seu sustento, e que hoje dizem ser uma “tragédia”.
Uns mostram esperança de que o mal ainda possa ser reparado, outros dizem que
“o rio já está morto”.
Arlindo, o
guarda prisional a quem chamam o “guardião do rio”
Nos
primeiros quatro dias da semana passada, o PÚBLICO desceu o Tejo ao longo de
cerca 200 quilómetros. Desde a barragem espanhola de Cedillo, onde o Tajo passa
a ser Tejo, até à parte portuguesa onde o rio começa a ser navegável antes de
desaguar no Atlântico.
A Barragem
de Cedillo é uma espécie de fronteira ibérica entre a Estremadura espanhola e a
Beira Baixa portuguesa. É desde este obstáculo de água que é descarregada para
o Tejo português a água acordada na Convenção de Albufeira, assinada em 1998 e
em vigor desde 2000, que estabelece o aproveitamento sustentável das águas das
bacias hidrográficas luso-espanholas.
Desde que
nasce na serra de Albarracín, em Aragão, até chegar a Cedillo, o Tejo percorre
cerca de 795 quilómetros, passando por 207 represas de água, entre as quais 19
grandes hidroeléctricas. Daqui para baixo e até chegar ao Atlântico, o maior
rio ibérico percorre em solo português cerca de 212 quilómetros.
Ródão, onde “o problema começa”
Assim que
se chega a Vila Velha de Ródão pelo norte, a cerca de 40 quilómetros da
Barragem de Cedillo, sente-se de imediato um cheiro a podre. Vem das altas
chaminés que, à entrada da vila, soltam permanentemente para o ar fartas
colunas de fumo. São o resultado da operação de várias empresas ali instaladas.
No dia 22
de Novembro, o Ministério do Ambiente determinou o encerramento da actividade
de secagem de bagaço de azeitona da Centroliva, por esta empresa de Vila Velha
de Ródão ter descarregado para o Tejo “águas pluviais contaminadas”. É, porém,
a Celtejo, gigante da indústria da celulose, a principal acusada de poluir o
rio. O PÚBLICO tentou contactar um responsável da empresa, mas ninguém se
mostrou disponível. E ninguém respondeu até ao fecho desta edição às perguntas
enviadas por email.
“É aqui, em
Vila Velha de Ródão, que o problema começa. O Tejo já vem contaminado de
Espanha, mas é a partir daqui que a água fica castanha e que se formam ilhas de
espuma e os peixes morrem aos milhares”, diz Vasco Fernandes. Para este
empresário turístico de 43 anos, “o problema é “o rio sem correr” e “os
resíduos que as empresas largam para a água”, junto ao cais fluvial, um dos
lugares mais visitados pelos milhares de turistas que se deslocam a esta vila
no distrito de Castelo Branco.
É aqui, em
Vila Velha de Ródão, que o problema começa. O Tejo já vem contaminado de
Espanha, mas é a partir daqui que a água fica castanha e que se formam ilhas de
espuma e os peixes morrem aos milhares
“As descargas são directas para o rio, mesmo
aqui [aponta para um local à esquerda do cais]. Vê-se frequentemente uma mancha
castanha enorme a entrar no rio. Hoje não se vê porque Espanha está há uns dias
a largar água com fartura. Corre que se farta”, afirma o empresário,
proprietário de um hotel no centro da vila, de um restaurante no cais e de sete
barcos de passeio no rio.
Vasco
Fernandes assegura que “há muitos meses que a água não corria assim”. E tem uma
explicação: “Os caudais, devido à seca e à falta de descargas, estavam muito
baixos. As águas andavam negras, negras, negras. Morreram milhares de peixes.
As televisões começaram a falar nisto, deu polémica, e eles agora estão a
limpar. A poluição está lá, só que o rio corre com tanta força que não se vê.
Vai rio abaixo.”
O
empresário diz estar convencido, “embora não tenha forma de o provar”, de que
Espanha “não está a soltar as quantidades de água que tem acordado com
Portugal”. Uma percepção que se deve “à água que corria há dois, três anos e às
menores quantidades da que correram este ano”. “Eles [espanhóis] não a têm para
eles e vão largá-la para Portugal? Este ano passaram-se semanas em que não
largaram água.”
Vasco,
nascido na vila, lembra os tempos de miúdo em que mergulhava no rio e fazia
desportos náuticos “sem problemas”. Hoje ainda lá mergulha, mas a norte de Vila
Velha de Ródão, para o lado da barragem espanhola. “Pelo menos ali a água
parece limpa. Ali os peixes não morrem.”
É para lá
que os pescadores da vila e das proximidades passaram a ir pescar os
lagostins-vermelhos-do-luisiana, uma espécie invasora que é hoje o principal
sustento dos cada vez menos pescadores na zona. Uma espécie pouco apreciada
pelos locais, mas que vendem para Espanha, onde é transformada em pasta
alimentar com sabor a marisco.
“Se não fosse os lagostins, já nem havia
pescadores. Aos peixes, a não ser os pescadores desportivos, já ninguém vai.
Não há, não presta, e se o houver ninguém o come. Sabe a celulose”, afirma o
empresário.
Numa viagem
pelo rio num dos barcos de Vasco Fernandes, a cerca de dois quilómetros a norte
de Vila Velha de Ródão, vêem-se dezenas de bóias que assinalam o lugar onde
foram largadas as narsas (armadilhas de pesca aos lagostins). Já a sul,
passando as paredes graníticas de 170 metros de altura que formam as Portas de
Ródão, quase não se vêem bóias, e, embora o rio corra com força, é notória uma
água ligeiramente mais acastanhada.
Apesar de
ser “um dos grandes prejudicados” pelo estado do Tejo, Vasco Fernandes diz ter
esperança de que “as coisas melhorem no futuro”. Critica mesmo “os radicais que
dizem que o rio está morto”. “O Tejo não está morto, tem um problema, mas não
está morto.”
Afirmando
que as empresas da região “são as grandes responsáveis pela poluição no rio”,
não deixa também de atribuir “grandes responsabilidades” ao Estado. “As
empresas não podem ser fechadas, porque empregam centenas de pessoas, por isso,
o Estado tem de fiscalizar. Tem de exigir equipamentos que impeçam a poluição
do rio e multar a doer quem poluir. Apliquem multas a sério e vão ver se as
empresas não se mexem. É o Estado que deixa poluir. Vem aí a fiscalização e diz
que está tudo dentro dos parâmetros, e nós a ver a poluição a correr no rio.”
O “Ti
Jaime” já não constrói picaretes
O Monte do
Arneiro, já no concelho de Nisa, fica a pouco mais de 12 quilómetros de Vila
Velha de Ródão. Na segunda-feira da semana passada, apenas dois barcos
prestáveis estavam amarrados à saída para o rio Tejo que serve a aldeia. O
pequeno lugarejo foi outrora conhecido pela sua intensa actividade piscatória e
pelas sopas de peixe do rio que os locais faziam e que levavam gente de toda
região à aldeia.
Jaime San
Pedro, 86 anos, aprendeu com o pai a construir picaretes, um dos barcos típicos
do Tejo. Começou já tarde, após a reforma, a “carpintar” os barcos com a
memória que guardava do trabalho do pai. Fez algumas dezenas deles, e os do
Arneiro “eram especiais”, pois eram construídos com uma cabine que permitia aos
pescadores dormir nos barcos durante a noite enquanto esperavam que as redes se
enchessem de peixe.
O “Ti
Jaime”, como é conhecido na zona, já não constrói picaretes. Nem ele nem
ninguém. Chamam-lhe, por isso, o “último mestre”.
Já não há
carpas, nem barbos, nem nada, e qualquer dia acaba o peixe. O que se apanha já
ninguém come. Se sabem que é daqui, ninguém quer
Jaime San
Pedro,carpinteiro
O antigo
carpinteiro lembra os seus tempos de miúdo no Arneiro, “quando havia sempre
peixe fresco” e se “ia buscar água ao rio para beber e cozinhar”.
“A gente
governava-se do Tejo. Agora mudou tudo, as pessoas vivem de costas para o rio.
Já não há carpas, nem barbos, nem nada, e qualquer dia acaba o peixe. O que se
apanha já ninguém come. Se sabem que é daqui, ninguém quer”, assegura. A culpa,
afirma, “é da poluição que matou tudo”.
Peixes “com
a cabeça fora de água à procura de oxigénio”
A conversa
decorre à entrada da aldeia, no largo junto à associação recreativa local.
Alguns minutos depois, junta-se à conversa Francisco San Pedro. O “mestre”
apresenta-o como um dos mais experientes pescadores da região. No
Arneiro, há pouco mais de uma dezena de anos eram mais de cem, hoje já não são
mais de vinte e andam todos ao lagostim.
Francisco,
52 anos, dana-se assim que sabe que os jornalistas andam por ali para falar
sobre o rio. “Está tudo morto, já não há peixe, e o lagostim, que é muito
resistente, também já está a morrer. O rio está morto desde que fizeram a
fábrica de celulose. Toda a gente sabe, só não sabe quem não quer saber”,
afirma, gesticulando sem parar. O pescador diz que este Verão a água “mal
correu”. “[Os espanhóis], como havia seca, estiveram sempre à retranca, não
largaram água.” Nesse período, lembra, o rio ficou “com pouca água e com cor
amarela e castanha como há muito não se via”.
Francisco
pesca no rio “desde criança”. Diz ter descoberto “a mortandade de peixes” do
dia 2 de Novembro perto do Arneiro e de ter alertado os ambientalistas. “Era
impressionante, milhares de peixes mortos, alguns a morrer de cabeça fora de
água à procura de oxigénio.” Depois de várias análises, o relatório
técnico-científico do Laboratório de Patologia de Animais Aquáticos apontou as
microalgas como responsáveis pelas duas mais recentes mortandades de peixes, em
Outubro e Novembro, nomeadamente por retirarem oxigénio à água.
Esta
conclusão leva o pescador do Arneiro a fazer duas perguntas: “Então só há algas
de Vila Velha de Ródão para baixo? Para cima, onde não morrem peixes, não há?”
Francisco
diz ter a certeza de que o que tira o oxigénio ao rio “é a pouca água que corre
e as lixívias que despejam no Tejo”. “Há uns dias veio para aí o ministro [do
Ambiente] e disse que não viu poluição nenhuma. Pois não, na noite anterior
correu água com fartura. Ele devia ter vindo era um dia antes, quando o rio
estava todo castanho”, acrescenta.
Para este
pescador, os que poluem o Tejo são “uma cambada de assassinos, num país que não
tem autoridades competentes”. “O rio já está morto”, sentencia.
Da Ortiga
ao primeiro grande bloqueio de água no Tejo português, são pouco mais de 25
quilómetros. A Barragem do Fratel, no concelho de Nisa, distrito de Portalegre,
é a primeira das duas grandes hidroeléctricas da EDP no rio. A funcionar desde
1974, a albufeira junto ao paredão de 45 metros de altura estava composta de
água na segunda-feira da semana passada (mais de 40% da sua capacidade).
A grande
quantidade de água armazenada na albufeira contrasta com o mirrado rio de água
depois do paredão, com o leito magro a revelar ilhas de terra.
Da Barragem
do Fratel à de Belver, já no distrito de Santarém, concelho de Mação, são pouco
mais de 27 quilómetros. A segunda e última hidroeléctrica do rio é mais antiga
(1951) e mais pequena do que a sua irmã do Norte.
Há porém
uma importante diferença entre as duas: Fratel está isolada no meio de uma
serra; Belver fica junto à pequena aldeia da Ortiga, por ali passa e pára o
comboio e, acima de tudo, a construção da barragem abriu um braço de rio antes
do paredão, criando uma grande praia fluvial num vale de grande beleza agora
manchado pelos incêndios de Agosto, que também por ali andaram em força.
Na vila e
na praia da Ortiga há vários restaurantes, um parque de campismo, diversas
casas de férias, equipamentos náuticos e de lazer, para miúdos e graúdos.
Atrás
balcão do Café d’Ortiga, quase em cima da água da praia, está Rui Martins, 50
anos. Trocou a confusão de Lisboa por este local bucólico há dez anos, tendo alugado
o café à Câmara de Mação.
Rui está
preocupado. “Primeiro foram os incêndios, depois a seca, a falta de água e a
poluição. As pessoas deixaram de vir para aqui, têm medo de tomar banho.”
O pequeno
empresário mostra análises recentes feitas à água por uma firma especializada
que indicam estar boa para banhos. Só que, acrescenta, “as pessoas vêem as
notícias na televisão sobre a poluição do rio, os peixes mortos a 30
quilómetros, mas mostrados como se fossem daqui, e fogem”.
“As
análises dizem que se pode tomar banho, mas eu vejo a poluição na água — claro
que há poluição —, os peixes desapareceram e eu já não sei quem tem razão, se
as análises, se o que nós vemos aqui.”
Rui Martins
diz não ter dúvidas de que a seca e a poluição no rio “vão afectar toda a
actividade económica da região”. “Eu já estou a perder dinheiro. Queria
investir uns milhares de euros em insufláveis para colocar no rio e não sei que
fazer. Não sei se a tendência é para melhor ou pior.”, conclui.
Comer o
peixe do rio? “Nem oferecido”
Samuel
Moleiro, nascido há 52 anos na Ortiga, assiste à conversa na esplanada do café.
Confirma as palavras de Rui Martins, acrescentando memórias de “há 20, 30
anos”, quando “se bebia a água do rio”, “havia peixe com fartura” e “as pessoas
não tinham medo de tomar banho”.
“Isto agora
está uma desgraça. Quase não há peixe, e o que há está poluído. Quem é que quer
vir para aqui? As pessoas vêm para o parque de campismo, mas depois vão para
outras praias”, afirma o jardineiro da Câmara de Mação e proprietário de um
pequeno comércio na aldeia de Ortiga.
Samuel
Moleiro tem uma certeza: “Nos próximos 20 anos não como peixe do rio. Nem
oferecido eu o como.”
“Mataram
tudo. Isto é uma tragédia”
Pouco
depois chega à esplanada Carlos Maia, 49 anos, um dos poucos pescadores que
ainda ali vão ao rio, especialmente à procura da lampreia. Entra na conversa
sem pedir autorização e a “pés juntos”. De rajada grita uma dúzia de
impropérios que deixam todos em silêncio. Conclui com uma frase: “Aos tipos que
poluem o Tejo era amarrar-lhes um baraço ao pescoço com uma pedra grande atada
e jogá-los ao rio.”
Carlos
lembra que “há uns anos pescava 700 a 800 lampreias por temporada”. “Agora, nem
vê-las! A água não corre e o rio está envenenado. Mataram o peixe todo, as
bogas, as carpas, os barbos. Mataram tudo. Isto é uma tragédia. Ainda por cima,
construíram o dique insuflável em Abrantes que não deixa o peixe arribar”,
conta o pescador.
Já no
centro da aldeia da Ortiga, o proprietário do restaurante O Bigodes, José
António, 56 anos, em tempos célebre por servir peixe do rio, centra agora a
ementa no porco preto. “O pessoal tem medo de comer o peixe daqui. Mesmo que eu
garanta que o peixe vem de outro lado, a malta não come.”
“Mar de Abrantes”: “Espuma com um metro de
altura”
O dique
insuflável de Abrantes que o pescador diz que não deixa o peixe arribar rio
acima fica a cerca de 25 quilómetros por estrada da Ortiga. Esta barragem foi
construída em 2004 e custou cerca de dez milhões de euros. Foi criada com o objectivo
de criar um espelho-d’água que desse aos cidadãos uma praia fluvial e um local
para a prática de desportos náuticos motorizados e não motorizados.
Chamaram-lhe na altura “Mar de Abrantes”, garantindo ser “o maior
espelho-d’água urbano de Portugal”.
Só que o
dique tem vários problemas. “Quando o rio corre pouco, a poluição junta-se aqui
onde a água é travada. Às vezes, o rio fica negro e juntam-se enormes
quantidades de espuma morta. Já cheguei aqui a filmar espuma com um metro de
altura”, conta Arlindo Marques, um ambientalista de 52 anos, nascido na Ortiga
e que denuncia nas redes sociais os crimes ambientais cometidos no Tejo (ver
texto nestas páginas).
“As pessoas
vêem aqui a poluição e, claro, ninguém toma banho. Há alguns desportos náuticos
e pouco mais”, garante.
Outro
problema, diz, “é que a escada passa-peixes foi mal construída e não deixa o
peixe subir o rio” e fazer a sua migração natural.
O terceiro
problema do dique, com cerca de 240 metros de comprimento, prende-se com as
fortes correntes que se formam quando a Barragem de Belver faz descargas. Facto
que levou o município a espalhar vários cartazes na zona a avisar banhistas e
canoístas para o perigo que correm se usarem as suas águas. “Isto basicamente
serve para juntar aqui os focos de poluição à vista de toda a gente”, diz
Arlindo Marques.
Borregos e
cabritos que fogem da água
Ao lugar do
Alvienga, a norte do dique, já no interior da lezíria ribatejana junto ao Tejo,
só se chega por um irregular caminho de terra. A cerca de 200 metros do
rio, Artur Lopes, 46 anos, cuida de mais de meia centena de borregos e cabritos
com poucos dias de vida. Tem-nos entre grades por ainda não estarem em
condições de se juntarem ao rebanho de 600 cabeças aos cuidados de vários
pastores. O Tejo sempre foi o
bebedouro destes animais. Já não o é. “Os bichos fogem da água do rio. Há uns
tempos a esta parte, há uns meses, deixaram de beber no rio. Nos dias em que
leva menos água, nem se aproximam”, conta.
A culpa,
diz, “é da poluição”. “É um veneno. Quando corre pouca água, formam-se aqui
grandes pedaços de espuma. As pedras e os pés dos canaviais mais perto do rio
ficam pretos. Aquilo deita um cheiro muito forte, os bichinhos chegam lá e
fogem, recusam-se a beber aquela água”, acentua.
Uma
situação que o obrigou a trazer para a lezíria depósitos de água para dar de
beber aos animais, o que lhe causa um acréscimo “de trabalho e de despesa”.
“Este rio já deu de beber às pessoas e agora nem os animais o querem. Já ali
tomei muitos banhos, agora calha-me lá ir lavar as mãos e pouco mais. Uma
miséria”, afirma.
Em Almourol
passou-se o rio a pé
À saída de
Abrantes, o rio sai já mais encorpado de água, segue em direcção a Constância e
logo a seguir recebe o rio Zêzere, que, embora também corra minguado por estes
dias, dá água nova ao Tejo. É por aqui que está instalada a Caima, a segunda
grande celulose junto ao Tejo.
Menos de
dez quilómetros abaixo, as margens aproximam-se e esmagam-no, até encontrar o
Castelo de Almourol, onde se divide em dois. Contam os locais que o rio correu
tão baixo no pico do Verão que se ia a pé das margens à ilha do castelo.
As águas
unem-se novamente pouco metros à frente. Quando chega à aldeia de Tancos, na
margem esquerda do rio, que olha de frente para a aldeia de Arrepiado, na outra
margem, o Tejo volta a ser um rio largo.
E assim
chega a Vila Nova da Barquinha, terra que tantas vezes castigou com as suas
cheias e cujos piores anos a população gravou em pequenas placas de cimento a
revelar a altura a que o rio subiu.
“A nossa
vida era o rio”
Ilídio
Filipe Carreira, 85 anos, fez a sua vida no mundo autárquico. Nos anos 1970 foi
secretário na Câmara da Barquinha e mais tarde ocupou o mesmo cargo na
autarquia de Vila Velha de Ródão. Já nos anos 1980, ganhou as eleições para a
Junta de Freguesia da Barquinha, onde cumpriu dois mandatos.
Aqui nasceu
e foi criado. Recorda animado e com visível paixão a meninice. “A nossa vida
era o rio, de manhã à noite. Era o dia todo dentro de água. Mergulhos, corridas
de natação Tejo acima. Muita chinelada levei da minha mãe por chegar tarde a
casa por andar no rio. Depois, comecei a chegar a horas, mas, mal ela se
deitava, escapava pela janela e ia outra vez para o rio noite dentro. Levei
muita porrada por causa do malvado Tejo”, conta. Nessa altura, lembra, a vida
de todos passava pelo rio. “Era do Tejo a água que bebíamos, e o peixe que
comíamos não faltava. Havia uma praia fluvial onde levávamos luz para iluminar
12 barracas e o dancing das festas. Era uma alegria.”
Lembra os
namoricos nas margens e as escapadelas às escondidas à noite ou de madrugada
“para ir ver as garotas tomarem banho, que, por pudor, só o faziam por essas
horas”.
“E depois
vieram as fábricas”
Em meados
do século XX, toda a vida económica da Barquinha passava igualmente pelo Tejo.
A vila era uma espécie de entreposto comercial “onde chegava o vapor que vinha
de Lisboa carregado de mercadoria”, para trocar pela que chegava das terras do
interior e a levar para abastecer a capital.
Enquanto
fala, Ilídio Carreira mostra fotos e recortes de jornais da primeira metade do
século XX. Lê um deles: “Pedra, cortiça, madeira, lenha, vinho, palha, tudo o
que se produzia no interior para abastecer a grande capital era por aqui que
passava, chegando do Alentejo, por caminhos de carros de bois, ou das Beiras e
do Pinhal, pelo Zêzere.”
Ilídio
interrompe a leitura para mostrar fotos dos carros de bois que “vinham
carregados do Alentejo”. E continua: “Sal, peixe salgado, produtos
transformados e outras mercadorias que faziam falta aqui. Depois veio o comboio
acelerando o progresso e mais tarde as camionetas e os barcos foram
encostando.”
“E depois”,
acrescenta Ilídio, “vieram as fábricas e a água ficou poluída.” “Uma tristeza,
uma tristeza, um rio cheio de espuma. (...) Água negra que parece o líquido dos
lagares de azeite”, diz, agora com uma voz mais sumida.
O antigo
autarca acrescenta que “deixou de haver vida à volta do rio”. “Nunca vi, nem
tenho conhecimento de que alguém com poder fizesse algo para acabar com esta
poluição”, acrescenta.
Não é o seu
caso. Foi no ano passado a uma manifestação em defesa do Tejo em Espanha e, em
Outubro deste ano, esteve num novo protesto em Lisboa também em defesa do rio.
“Enquanto tiver forças, contam comigo.”
“O rio já
não dá nada”
Continuamos
a rumar a sul em direcção a Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos. Uma
aldeia piscatória formada em meados dos anos 1930 por famílias que durante os
meses de Inverno se deslocavam de Vieira de Leiria para o rio Tejo, para as
campanhas de pesca, regressando no Verão à sua terra natal, para pescar no mar.
Aqui, o Tejo já é navegável e sente os efeitos das marés do Atlântico.
Escaroupim
é hoje mais um ponto turístico do que uma aldeia piscatória. Ainda por ali está
atracada uma dúzia de barcos, e as velhas casas de arrumos dos pescadores
também estão a uso. Igualmente de pé, para turista ver, estão algumas casas
típicas, as Avieiras, construídas em madeira sobre estacas, para protecção das
cheias, e pintadas de cores vivas.
“Agora são
mais os velhos que vão à pesca. Os mais novos ainda lá vão, de vez em quando,
mas foram todos trabalhar para as obras. O rio já não dá nada”, afirma Tiago
Simãozinho, 41 anos.
Um dos mais
velhos que ainda anda à pesca é Júlio Letra, 77 anos. Fá-lo desde miúdo. “O rio
está muito poluído, mata o peixe todo, já pouco se apanha. Na época passada,
apenas pesquei seis lampreias e já aqui apanhei muitas”, diz o velho pescador.
Lembra “o
Tejo limpo” da infância, em que as mulheres faziam covas à beira-rio onde
“deitavam a água para poisar”, para ser consumida. “Agora está tudo sujo, vem
para aqui muita espuma”, acrescenta. Ainda assim, garante que o peixe que ainda
ali se pesca “é bom de comer”.
A partir de
Escaroupim o rio começa a ganhar corpo para entrar, alguns quilómetros depois,
em Lisboa, onde já parece mar. Corre então deslumbrante, quase sempre sereno
até desaguar no Atlântico com todo o lixo que lhe despejaram.
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