OPERAÇÃO
MARQUÊS
Como Sócrates
usou a máquina do Estado e se fez embaixador do Grupo Lena
Após perder
as eleições de Junho de 2011 e já como cidadão, o ex-PM recorreu à máquina
diplomática para marcar reuniões com governantes estrangeiros, ocultando os
seus propósitos, acusa o Ministério Público. Utilizou duas missões como
observador internacional para agir e prometeu palavras favoráveis nos seus
comentários televisivos se tudo corresse bem. Ainda primeiro-ministro, designou
colaboradores para acompanhar as pretensões do grupo de Leiria.
NUNO RIBEIRO 3 de Dezembro de 2017, 6:30
José
Sócrates usou o corpo diplomático português e estrangeiro, invocando a
qualidade de ex-primeiro-ministro, para estabelecer contactos e marcar reuniões
com responsáveis políticos da Venezuela, Argélia e Angola, países onde o Grupo
Lena, de Joaquim Barroca, tinha interesses ou queria promover a
internacionalização da sua actividade. O Ministério Público diz que esta acção
começou com Sócrates no Palácio de São Bento, quando liderava os XVII e XVIII
governos constitucionais.
“O arguido
José Sócrates Pinto de Sousa aceitou utilizar o seu cargo como
primeiro-ministro em benefício do Grupo Lena, a troco do recebimento de
vantagens patrimoniais a que bem sabia não ter direito [...], tendo-se
socorrido de colaboradores que lhe eram próximos e da sua confiança, a fim de,
segundo as suas indicações, prestarem o específico apoio ao Grupo Lena”, afirma
a acusação. As investigações realizadas no âmbito da Operação Marquês situam
esta incumbência a partir de final de 2006 e levam os magistrados a referir
dois nomes — Guilherme Dray, chefe de gabinete, e Vitor Escária, assessor
económico —, destacando as suas intervenções em especial junto do Governo da
Venezuela, “que o arguido [Sócrates] sabia corresponderem aos interesses
económicos do Grupo Lena”.
Defesa de
Sócrates nega relações com Grupo Lena: “resumem-se a nada e coisa nenhuma”
O
Ministério Público explicita, também, o modus operandi. “O arguido Carlos
Santos Silva aceitou passar a intervir como intermediário do arguido José
Sócrates, tendo os dois arguidos, ao longo do ano de 2006, procurado encontrar
formas de o arguido José Sócrates, directamente através de instruções a membros
do governo que dirigia, apoiar os negócios a desenvolver pelo Grupo Lena, de
modo a que não fosse revelada a intervenção do arguido José Sócrates e que as
contrapartidas financeiras a receber não pudessem ser associadas à sua pessoa”,
lê-se no despacho de acusação.
Foi por
sugestão do chefe de gabinete Guilherme Dray a Carlos Santos Silva, segundo o
Ministério Público, que o Grupo Lena custeou a viagem de ida e volta
Paris-Lisboa e a estadia na capital portuguesa, entre 14 e 16 de Setembro de
2008, do então vice-ministro venezuelano para a Planificação e Desenvolvimento
do Sistema Nacional de Habitação e Habitat, Hector Torres Casado, que se
encontrava de visita à Europa.
Em Lisboa,
Hector Torres manteve também encontros com o governo português com o objectivo
de que o negócio de construção de 50 mil casas na Venezuela estivesse acordado
quando da visita do Presidente Hugo Chávez a Portugal, que se iniciaria dez
dias depois, a 26 de Setembro.
Contudo, a
acusação precisa que um impasse nestas negociações levou Nicolás Maduro, na
altura ministro dos Negócios Estrangeiros, a pedir a intervenção de Sócrates,
por ocasião da sua visita a Portugal, em 19 de Março de 2010. Tinham já passado
dois anos.
O gabinete
do primeiro-ministro, através do assessor económico Vitor Escária, acompanhou a
presença do chefe da diplomacia de Caracas, do seu chefe de gabinete Temir
Porras e do vice-ministro para a Habitação e Habitat, Ulianov Niño Delgado. No
final, foi acordada uma adenda ao contrato que viria a ser assinada durante uma
visita de dois dias — 29 e 30 de Maio de 2010 — do primeiro-ministro português
à Venezuela, durante a qual foram divulgados 19 acordos entre os dois países,
envolvendo 16 empresas e um montante de 1,65 mil milhões de euros.
Segundo o
Ministério Público, para concretizar o início do contrato da empreitada, Vitor
Escária contactou o chefe de gabinete de Maduro, Temir Porras, mas a situação
arrastou-se. José Sócrates terá insistido na questão durante uma breve estadia
do Presidente Chávez em Portugal, em 14 de Outubro de 2010, dez dias antes de
iniciar a sua última visita ao nosso país. Já durante a visita presidencial,
foi assinado o contrato de empreitada do Grupo Lena, no valor de 988 milhões de
dólares, numa digressão que ficou também marcada pelos anúncios da compra de
1,5 milhões de computadores Magalhães e da encomenda aos estaleiros de Viana do
Castelo de dois navios de transporte de asfalto. A Venezuela era um eldorado
para as exportações portuguesas e internacionalização da economia nacional.
De acordo
com o despacho de acusação, “em face da definição do montante de antecipação de
preço e da garantia que seriam pagos”, correspondente ao contrato de
empreitada, “os arguidos Joaquim Barroca e Carlos Santos Silva trataram de
concretizar o pagamento de mais uma factura emitida no âmbito da pretensa
prestação de serviços da sociedade XLM [do universo empresarial de Santos
Silva] à LEC, SA, sucursal da Venezuela da Lena Engenharia Construções, SA,
tendo esta pago [a Santos Silva], na data de 29 de Março de 2011, a quantia de
250 mil euros, sem IVA, sabendo que tal montante seria gasto no interesse do
arguido José Sócrates”. Nesta data, Sócrates era já um primeiro-ministro
demissionário. Seis dias antes, o Plano de Estabilidade e Crescimento
2011-2014, o PEC IV, fora chumbado e o país vivia em crise política.
Noutro
ponto da acusação, os magistrados referem que Joaquim Barroca, administrador do
Grupo Lena, pagou ao primeiro-ministro Sócrates, através de contas controladas
por Carlos Santos Silva, 2,875 milhões de euros, entre Fevereiro e Junho de
2007 e Setembro de 2008, via duas sociedades — Giffard Finance e Pinehill
Finance — utilizadas para a circulação do dinheiro. E, entre Novembro de 2009 e
Abril de 2014 — período que abrange Sócrates como primeiro-ministro e já
ausente do poder —, mais de 2,9 milhões de euros, “a coberto de pretensos
contratos de prestação de serviços com a XLM – Sociedade de Estudos e
Projectos, Lda., do arguido Carlos Santos Silva”. Somadas estas parcelas,
chega-se ao valor de 5,8 milhões de euros.
Segundo o
Ministério Público, as contrapartidas a favor de José Sócrates seriam “sempre
pagas pelo Grupo Lena para a esfera formal do arguido Carlos Santos Silva”, que
sempre “poderia justificar esse recebimento com as relações comerciais que
mantinha com o referido grupo”. Ainda assim, precisa a acusação, “o arguido
Carlos Santos Silva dispôs-se a fazer confundir com o seu património pessoal os
fundos que viesse a receber no âmbito desse acordo com o arguido José
Sócrates”. E continua: “Mantendo o conhecimento do valor total que na realidade
pertencia ao arguido José Sócrates e dispondo-se a afectar ao mesmo os
montantes que este lhe viesse a solicitar.”
Sócrates
elogiaria o regime chavista no seu espaço de comentário semanal na RTP1 se uma
reunião com o Presidente Nicólas Maduro se realizasse. O objectivo, sustenta o
Ministério Público, seria desbloquear atrasos nos pagamentos dos venezuelanos
ao Grupo Lena
Percentagem
de 1% a 3%
A acusação
refere que depois de perder as legislativas de 5 de Junho de 2011, José
Sócrates não deixou de acompanhar, já como ex-primeiro-ministro, a presença do
Grupo Lena na Venezuela. O bom relacionamento que tinha mantido com o
Presidente Hugo Chávez, a cujas cerimónias fúnebres assistiu a 8 de Março de
2013 a título pessoal, prolongou-se ao ser convidado pela Comissão Nacional
Eleitoral venezuelana para acompanhar como observador internacional as eleições
de 14 de Abril de 2013, das quais resultou a legitimidade sucessória do
Presidente Nicolás Maduro.
Em Novembro
de 2013, Carlos Santos Silva tentava desbloquear os pagamentos em atraso ao
Grupo Lena relativos ao projecto de construção das 50 mil casas e terá pedido o
apoio de Sócrates. Aproveitando deslocações à Europa de Temir Porras — o antigo
chefe de gabinete de Maduro quando este era MNE veio a ser mais tarde
secretário-executivo do Fundo de Desenvolvimento Nacional da Venezuela —, o
ex-primeiro-ministro manteve três encontros com este responsável. Em
Paris, a 22 de Novembro de 2013, dias depois, em 4 de Dezembro, em Lisboa, e,
já em 2014, a 12 de Setembro, em Madrid.
Anteriormente, em 2 de Junho, José Sócrates também tivera em
Lisboa um almoço com o vice-presidente da Venezuela e o embaixador daquele
país. O Ministério Público
refere que para além das dívidas ao Grupo Lena, Sócrates queria abordar
assuntos do grupo suíço Octapharma, do qual passou a ser consultor para a
América Latina a partir de 29 de Janeiro de 2013.
Mas os
pagamentos dos venezuelanos ao Grupo Lena continuavam em falta, apesar dos
contactos de Vitor Escária junto de Temir Porras. Escária fora assessor
económico de Sócrates em São Bento, e viria a desempenhar o mesmo cargo no actual
Governo de António Costa, demitindo-se de funções em Julho passado ao ser
constituído arguido no caso das viagens ao Euro 2016 a convite da Galp. Carlos
Santos Silva terá sugerido a Porras o pagamento de uma percentagem entre 1% a
3% dos 100 milhões de dólares em dívida “a título de contrato de agência”, mas
os atrasos de pagamento prosseguiam.
A acusação
assinala que os venezuelanos solicitaram a José Sócrates que gravasse uma
declaração “com afirmações pré-definidas” de apoio internacional ao Governo de
Caracas. O ex-governante não se mostrou disponível para isso, mas sim para
proferir declarações favoráveis ao regime chavista no seu espaço de comentário
semanal na RTP1, que a estação pública anunciava como “um olhar único, a
análise exclusiva e a opinião de José Sócrates”. Contudo, só o faria se
houvesse um sinal positivo para uma reunião, insistentemente pedida, com o
Presidente Nicolás Maduro, que não se chegou a realizar. Dos 100 milhões de
dólares em falta, foram pagos pouco mais de 33,6 milhões.
Loas a
Argel na TV
Em 2013, Carlos Santos Silva e o Grupo Lena tentavam na
Argélia um negócio de construção de 20 mil casas pré-fabricadas que abrangia a
montagem de unidades produtivas, num projecto em tudo semelhante ao da
Venezuela. Em jogo estava ainda, de acordo com o Ministério Público, a
construção de hotéis, de uma torre de escritórios e de habitação na cidade de
Oran. Então, a empresa
portuguesa já estava envolvida na construção de hospitais em Tamanrasset, um
povoamento no sul daquele país, e em Blida, a oeste de Argel. A primeira obra
está concluída e a segunda, neste Outono de 2017, encontra-se na fase final.
Ambas foram adjudicadas pelo Ministério da Defesa. O grupo português tinha
também como objectivo participar em outras obras, nomeadamente a construção de
hospitais na tutela das autoridades argelinas da Saúde, nas regiões de Argel e
Tizi-Ozou, o centro berbere da Argélia.
Em Setembro
de 2013, segundo a acusação, aproveitando os contactos mantidos com altos
funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros enquanto
primeiro-ministro, Sócrates requereu a Francisco Lopes, subdirector-geral dos
Assuntos Europeus no Palácio das Necessidades, diligências junto da embaixada
da Argélia para ser convidado a visitar aquele país e a encontrar-se com o
Presidente Abdelaziz Bouteflika. Francisco Lopes, hoje embaixador de Portugal
na ONU, fora seu assessor diplomático em São Bento. Sócrates ocultou-lhe a
finalidade desta visita a Argel e mais tarde solicita-lhe ainda a marcação de
uma outra reunião com o ministro da Saúde argelino.
A
investigação da Operação Marquês considera que José Sócrates pretendia
aproveitar a deslocação à Argélia nesse ano de 2013 para promover os interesses
comerciais do Grupo Lena e da Octapharma, o grupo suíço de que era consultor. A
embaixadora argelina, Fathia Selmane, referiu a Francisco Lopes que o
Presidente Bouteflika estava doente, sugerindo uma reunião com o
primeiro-ministro Abdfelmalek Sellal, considerado como o futuro sucessor do
Presidente. Após o encontro que decorreu a 7 de Outubro, de acordo com o
despacho de acusação que cita uma escuta, Sócrates afirmou a Carlos Santos
Silva que “correu muito bem em conversa, ele disse que vocês iam ser chamados”.
Como não
houve sequência, na oferta de dois exemplares do livro A confiança no mundo –
sobre a tortura em democracia, um deles com dedicatória para o Presidente
Abdelaziz Boutefflika, Sócrates voltou a abordar a proposta das casas
pré-fabricadas do Grupo Lena com a chefe da delegação diplomática da Argélia em
Lisboa. O Ministério Público refere que estas diligências do
ex-primeiro-ministro de Portugal levaram a um jantar, em 2 de Dezembro de 2013,
do ministro argelino da Habitação, Abdelmadjid Tebboune, com Joaquim Barroca,
do Grupo Lena, e Carlos Santos Silva. E, mais tarde, em 6 de Fevereiro de 2014,
a uma reunião com o ministro Tebboune.
Com a queda
do preço do petróleo, Angola começou a ter problemas financeiros, o que colocou
dificuldades às empresas portuguesas a operar naquele país. As sociedades do
Grupo Lena não eram excepção
Mau grado a
sucessão de encontros, não havia desenvolvimentos. Pelo que, na versão da
acusação, “aproveitando a circunstância de ter sido convidado para observador
internacional da preparação das eleições de 17 de Abril na Argélia”, Sócrates
requereu à embaixadora Fathia Selmane uma reunião com o ministro da Habitação,
na qual solicitou ao governante que recebesse o Grupo Lena. Em telefonema ao
embaixador português em Argel, António Gamito, José Sócrates omitiu estas
diligências: informou apenas que fora convidado pela diplomata argelina em
Lisboa, em nome do ministro dos Negócios Estrangeiros, para se encontrar com o
titular da pasta da Habitação, Abdelmadjid Tebboune. Este ministro argelino
recebeu os empresários portugueses em 23 de Abril de 2014.
O
Ministério Público destaca que o antigo chefe do Governo de Portugal prometeu
proferir publicamente no seu programa de comentário semanal na RTP1 uma
declaração de apreço sobre a forma como fora organizado e tinha decorrido o
processo eleitoral da Argélia, que acompanhara como observador internacional.
Fê-lo com uma semana de atraso em relação ao previsto, devido à transmissão
televisiva de um jogo do Benfica.
Em Julho,
perante a necessidade do Grupo Lena voltar a ser recebido pelo ministro da
Habitação, Abdelmadjid Tebboune, a acusação refere que Carlos Santos Silva
solicitou a intervenção de Sócrates junto do embaixador português na Argélia. O
diplomata António Gamito, atendendo a que o pedido vinha do ex-chefe do Governo
de Portugal que fora convidado como observador internacional às eleições,
conseguiu o encontro para 31 de Julho. Em Outubro de 2014, Carlos Santos Silva
terá reconhecido a Sócrates que “todos os passos estão a correr bem” no negócio
na Argélia.
Atenções ao
longo dos anos
Com a queda
do preço do petróleo, Angola começou a ter problemas financeiros, o que colocou
dificuldades às empresas portuguesas a operar naquele país. As sociedades do
Grupo Lena não eram excepção. Segundo o Ministério Público, em Agosto de 2014,
Carlos Santos Silva requereu a José Sócrates que conseguisse uma reunião com o
vice-presidente angolano, Manuel Vicente, para abordar a questão.
Sócrates
falou com Guilherme Dray, que fora seu chefe de gabinete em São Bento e seu
adjunto no Ministério do Ambiente. Dray sugeriu-lhe que falasse com Carlos
Costa Pina. Este antigo secretário do Estado do Tesouro e das Finanças nos VXII
e XVIII governos constitucionais, ambos liderados por José Sócrates, advogado
na área de exploração e produção de petróleo, é, desde 2012, membro do conselho
de administração e da comissão executiva da Galp. Razão pela qual tinha
possibilidade de contacto facilitada com o gabinete de Manuel Vicente, que fora
presidente do Conselho de Administração da Sonangol, a petrolífera angolana.
Por
mediação de Costa Pina, o ex-primeiro-ministro mantém uma conversa telefónica,
em 3 de Setembro, com Manuel Vicente. Ao “vice” angolano, Sócrates manifesta
interesse em ser por ele recebido ou que Vicente receba pessoas amigas que, de
acordo com a acusação, definiu como a quem “deve ao longo dos anos umas
atenções.” O dirigente angolano sugeriu um encontro em Nova Iorque à margem da
Assembleia Geral das Nações Unidas, que decorreria daí a uns dias.
José
Sócrates indaga junto de Francisco Lopes, subdirector-geral dos Assuntos
Europeus, sobre as datas daquela reunião da ONU, e quem era o embaixador
português na organização. Ao embaixador Mendonça e Moura, que conhecia dos
tempos de chefe da delegação diplomática na União Europeia, em Bruxelas, o
ex-chefe de Governo pediu que diligenciasse junto da representação de Angola
nas Nações Unidas a marcação de um seu encontro com Manuel Vicente, não
revelando ao diplomata o que pretendia tratar com o “número dois” de Luanda.
O encontro de Sócrates, acompanhado por Carlos Santos Silva
e Joaquim Barroca, com o vice-presidente angolano teve lugar em 25 de Setembro
na Missão de Angola em Nova Iorque. Na versão da acusação, o ex-primeiro-ministro apresentou os seus
acompanhantes ao interlocutor angolano. O encontro foi frutífero para o grupo
empresarial português, que resolveu as questões pendentes quanto às sociedades
por ele participadas em Angola.
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