Uma
exposição em Paris para a história de arte comer Amadeo
ISABEL SALEMA (em
Paris) 18/04/2016 - 22:30
Na
quarta-feira abre no Grand Palais uma exposição que reúne mais de
200 obras do pintor modernista português e que quer apresentá-lo ao
público internacional. Para que este o descubra como ele merece ser
descoberto. O primeiro-ministro já lá esteve.
É impossível não
pensar no que Amadeo de Souza-Cardoso podia ter sido se não tivesse
morrido aos 30 anos. “É muito irritante, porque ele está sempre a
pensar em novas direcções e morre a desenvolver um trabalho
fulgurante”, diz Helena de Freitas, comissária da exposição
dedicada ao pintor modernista português (1887-1918), que na
quarta-feira abre no Grand Palais, um espaço emblemático de Paris.
“É muito irritante pensar no que podia ter sido, mas não vale
muito a pena.”
É inevitável que a
conversa surja à volta da obra inédita mais badalada desta
exposição, que quer devolver Amadeo à cidade de Paris e montar uma
estratégia de internacionalização do pintor português, tentando
inscrevê-lo na história de arte mundial. Estamos na última sala da
exposição em frente da colagem sobre cartão com 15 por 24
centímetros que a família mostrou a Helena de Freitas há não mais
de dois anos, depois de a encontrar na famosa casa de Manhufe, um dos
sítios míticos na biografia do artista e que ainda está nas mãos
dos descendentes de Amadeo de Souza-Cardoso.
Vemos três pernas
com meias de senhora sobrepostas, um "S" que identifica as
máquinas de costura Singer, a palavra “woman”, material retirado
da revista feminina americana McCall’s. É provavelmente um dos
seus últimos trabalhos, uma nova pesquisa sobre a relação entre
arte e publicidade.
A colagem é
mostrada entre as suas pinturas mais conhecidas, as da fase final,
que pertencem todas à Fundação Calouste Gulbenkian (à excepção
da da colecção Ilídio Pinho), que organiza com o Grand Palais esta
exposição, um dos grandes eventos pensados para comemorar os 50
anos da fundação em Paris.
“Retoma o tema do
feminino. Percebe-se a sua identidade. Muitas destas pinturas já têm
marcas publicitárias. Aqui vê-se a utilização das palavras como
símbolos gráficos, que já vinham de trás misturadas com os seus
próprios elementos de promoção pessoais.” Se Laurent Salomé, o
director artístico do Grand Palais, usa a palavra “pop” para
falar deste trabalho no catálogo, Helena de Freitas, que em 2006
organizou uma exposição na Gulbenkian que comparava Amadeo com as
vanguardas da sua época, diz que não se pode afirmar que o artista
português antecipe a pop art. “Podemos dizer que ele tem momentos
de antecipação” e voltamos às novas direcções que Amadeo está
sempre a testar. “É certo que ele quer ter uma identidade autoral
muito forte. Em Manhufe não podia ver as coisas que os outros
andavam a fazer, como aconteceu em Paris.”
“Esta exposição
é um capítulo completamente novo na história de arte”, disse aos
jornalistas Laurent Salomé, o director do Grand Palais
Helena de Freitas
ainda pensou pôr esta colagem inédita – há mais duas semelhantes
que estão em mau estado de conservação, que não foram recuperadas
a tempo – ao lado de um trabalho do artista alemão Kurt
Schwitters, mas não conseguiu o empréstimo necessário. E cita uma
frase de Amadeo para falar desta busca identitária – “eu nem a
mim próprio me imito” – ,para falar de um artista muito livre
que não queria ser cubista, nem futurista, mas que, paradoxalmente,
também dizia ser tudo isso. Helena de Freitas diz que é preciso não
nos esquecermos de que estamos a falar de um artista jovem, “que
estava a atingir a maturidade quando morreu”.
Uma descoberta
A exposição que a
Gulbenkian mostra em Paris é muito diferente da que Lisboa viu em
2006 e ultrapassou os cem mil visitantes. Esta é para falar de
Amadeo a quem não o conhece ainda. Não há só uma mensagem, mas
muitas: “Que é uma personagem muito complexa. A mensagem é a
pluralidade, o sentido experimental.”
A exposição
começa, aliás, com a famosa frase “Tenho mais fases do que a
lua”, ao lado de um diaporama com várias fotografias do artista em
várias poses. Se o título é apenas o nome do pintor, o subtítulo
podia ser “um dos segredos mais bem guardados do modernismo”, e é
por aí que tem passado o marketing da exposição. Um dos segredos,
relativiza a comissária, e não “o segredo”.
DIDIER PLOWY /
RMN-GRAND PALAIS
Em conversa com os
jornalistas no final de uma visita guiada à exposição, Laurent
Salomé, o director do Grand Palais, sublinhava a sensação de
descoberta: “Esta exposição é um capítulo completamente novo na
história de arte”, disse, salientando o “papel essencial” de
Amadeo nas vanguardas artísticas antes da Primeira Guerra Mundial,
papel “que está completamente esquecido”. E ainda acrescentou:
“É um momento raro e uma oportunidade importante” poder mostrar
as suas obras.
Como se trata
exactamente de mostrar alguém que é desconhecido, a exposição “é
muito focada no trabalho de Amadeo”, diz a comissária, estando
apenas representados outros artistas internacionais com quem teve
relações pessoais, como Brancusi, o casal Delaunay e Modigliani.
Entre as mais de 200 obras de Amadeo, há uma dezena de outros
artistas. “Na exposição sente-se o espírito de Amadeo com toda a
sua complexidade. Ele é capaz de desenvolver experiências
diferentes em simultâneo na sua obra.”
Depois da
introdução, o visitante descobre logo três das oito pinturas que
foram ao Armory Show (1913), em Nova Iorque. Paysage, Le Saut du
Lapin e Château Fort, e que pertencem ao Art Institute of Chicago.
Se se olhar para o lado esquerdo, está também Avant la Corrida, que
além dessa exposição esteve antes em Paris, no X Salão de Outono,
em 1921, exactamente no Grand Palais (hoje integra a colecção de
arte moderna da Gulbenkian). As quatro pinturas não estavam juntas
desde 1987, uma vez que Le Saut du Lapin não foi à grande exposição
de Lisboa em 2006.
“É refrescante
ver alguém que é completamente desconhecido. Mas a família da
história de arte vai eventualmente comê-lo e eventualmente nessa
altura será um sucesso.”
Thierry de Fages,
que tem o blogue cultural Blog de Phaco, está de visita à exposição
nesta manhã dedicada à imprensa, antes da inauguração marcada
para as 18h30, onde esteve o primeiro-ministro português. É a
primeira vez que vê Amadeo, que considera “muito interessante”.
Cita semelhanças com Picasso, Delaunay, Modigliani e Braque, e diz
que “ele é completamente internacional”. “É raro um artista
desconhecido ser exposto no Grand Palais, mas Portugal está
actualmente na moda.”
Leonor Oliveira, que
trabalhou com Helena de Freitas na exposição, diz que é um ponto
de partida para uma circulação internacional da obra de Amadeo.
Porque, afirma Helena de Freitas, “a história de arte [mundial]
está escrita e o nome de Amadeo não está lá”.
Mas como é que se
internacionaliza um artista cuja obra está quase toda em Portugal,
principalmente na Fundação Calouste Gulbenkian, e que tem apenas
cinco obras em museus estrangeiros? Além do Art Institute of
Chicago, há uma obra no Centre Pompidou e outra no Muskegon Museum
of Art, também nos Estados Unidos, se falarmos das colecções
institucionais. “Essa é uma pergunta delicadíssima. Acho que a
viúva, por ter escolhido um museu português, acabou por condicionar
a visibilidade do artista”, porque são as instituições
internacionais mais conhecidas que acabam por construir e legitimar o
discurso da história de arte. “Mas para um artista ser conhecido
tem de ser visto. Ele foi, de facto, esquecido e está aqui para ser
descoberto. E apesar de os franceses estarem sempre a perguntar quem
fez primeiro, isso não me preocupa nada, porque a obra é muito boa
e o artista é muito sólido”, diz a comissária.
A história de arte,
afirma outro jornalista e crítico de visita à exposição que não
quis ser identificado, “é muito impositiva”. “Devemos deixá-lo
livre. Ele tirou coisas do cubismo, mas tem uma maneira especial de
fazer. Ele ficou muito impressionado pelo futurismo, mas as suas
coisas são mais orgânicas. Ele não é um seguidor.”
O facto de ser um
desconhecido “talvez seja triste para Amadeo, mas essas são as
regras da história de arte”, acrescenta: “É pena que tenha de
se validar sempre com o cubismo e o futurismo, porque assim estão a
dizer-nos para fechar os olhos quando fazemos a nossa aproximação
artística a Amadeo. É refrescante ver alguém que é completamente
desconhecido. Mas a família da história de arte vai eventualmente
comê-lo e eventualmente nessa altura será um sucesso.”
O filme de
Christophe Fonseca Amadeo de Souza-Cardoso: O Último Segredo da Arte
Moderna, que passa na quarta-feira na RTP e a 8 de Maio na televisão
francesa, pega exactamente na história do pintor que está a ser
descoberto para agarrar o público. Há vários especialistas
internacionais que entram na narrativa, que o realizador considera
“arrebatadora”.
100 mil visitantes
No Grand Palais, uma
das últimas exposições, dedicada à pintora da rainha Maria
Antonieta, Vigée Le Brun, teve 237 mil visitantes, sendo a primeira
retrospectiva dedicada à artista francesa (está agora no
Metropolitan, em Nova Iorque). Já uma sobre Picasso teve 393 mil.
Para Amadeo, e segundo Sandrine Mahaut, do gabinete de imprensa, são
esperados cerca de cem mil visitantes.
O primeiro-ministro,
António Costa, que reservou as declarações para o final da
inauguração, disse aos jornalistas que se tratava de “uma
exposição fantástica”. “É uma grande oportunidade para
mostrar mais um grande artista português em França. Neste momento,
dá-se o facto de termos aqui várias grandes exposições: uma
grande exposição de arquitectura, uma grande exposição de Helena
Almeida e agora esta de Amadeo. Demonstram bem, em várias gerações
e em épocas diferentes, a criatividade do país.” Isso, continuou
António Costa, “é muito importante para valorizar a imagem de
Portugal em França”.
O presidente da
Gulbenkian, que saiu da inauguração da exposição pouco tempo
depois do primeiro-ministro, disse que o investimento para trazer
Amadeo a Paris, incluído na operação dos 50 anos, será revelado
na devida altura, depois de se fazer contas à bilheteira. Artur
Santos Silva, muito “feliz” com o resultado, reconheceu ser
responsabilidade da fundação “divulgar a obra deste pintor
extraordinário”, uma vez que detém uma parte muito relevante do
acervo do artista. Quanto ao futuro da internacionalização de
Amadeo, Santos Silva não adiantou mais nenhuma iniciativa, mas
lembrou que estiveram dois anos para conseguir trazê-lo a Paris: “E
felizmente encontrámos este espaço do Grand Palais.”
O PÚBLICO viajou a
convite da Fundação Gulbenkian
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