O
lado lunar de António Costa
Já
passou o tempo em que António Costa abria o peito às balas em cada
gesto que ousasse. Hoje, ninguém arrisca profecias trágicas depois
de tantas vezes se falhar nas anteriores
O
método de criar uma expectativa alarmista para depois recuar para
posições mais moderadas está a funcionar.
Manuel Carvalho /
24-4-2016 / PÚBLICO
O Programa de
Estabilidade e o Programa Nacional de Reformas foram esta semana
divulgados sem que se notasse qualquer sobressalto pelo irrealismo
dos números ou pelo medo da punição europeia. Se há uma arte que
se deve reconhecer a António Costa, é a de saber contar histórias.
O cenário macroeconómico pode ser delirante, a crença de que a
redução da despesa através do corte no número dos funcionários
públicos ou do aperto das despesas correntes pode ser um mero acto
de fé, mas nada disso parece incomodar os cidadãos. O pessimismo e
a cautela que se manifestaram na primeira versão do Orçamento do
Estado de 2016 fazem parte do passado. Costa conseguiu o supremo
mérito da arte política: fazer com que as pessoas acreditem nele
com o mesmo empenho com que as crianças acreditam nas fadas ou no
Pai Natal.
Lendo a imprensa
destes dias consegue-se encontrar uma boa explicação para essa
renúncia à crítica. Afinal, escreveu-se, as previsões
macroeconómicas do Programa de Estabilidade são muito menos
exageradas do que as que o próprio PS admitia há apenas alguns
meses. Está bem que todas ficam acima das expectativas das
organizações internacionais, mas entre o que seria expectável e o
que acabou por ser inscrito nos quadros do programa vai uma grande
diferença. Da mesma forma, quando se esperava que o acordo informal
com o Bloco e o PCP fosse empurrar o Governo para uma rota de colisão
frontal com Bruxelas, a trajectória de consolidação do défice
acabou por provar que, apesar de haver no ar um certo tom de
provocação, ninguém acredita que o primeiroministro queira uma
guerra com a Comissão Europeia.
O método de criar
uma expectativa alarmista para depois recuar para posições mais
moderadas está a funcionar. O Governo (e o Presidente) está a
conseguir definir um novo perímetro para a discussão dos problemas
nacionais. O Programa de Estabilidade é uma esponja capaz de
absorver a tensão. Nem a oposição o quer debater no parlamento. Os
seus números são pouco credíveis e não resistem à comparação
com os números do FMI ou da OCDE, mas isso pouco importa. Há para
aí uns lúcidos como Daniel Bessa a profetizar (numa entrevista ao
Expresso) uma inevitável subida do IVA, mas ninguém o quer ouvir. O
país está farto de fazer contas e quer é ver o Presidente-Rei
Marcelo anunciar a esperança no Alentejo e a fazer-se fotografar com
crianças.
Da mesma forma, não
há razões de alarme no Programa Nacional de Reformas que, apesar
ter agora uma versão bem mais reflectida e consistente do que o
pindérico powerpoint que o anunciou, é ainda assim uma aspirina
para um país com uma doença grave de falta de competitividade.
Principalmente quando o Governo se prepara para aplicar na sua
execução metade das verbas inscritas no actual ciclo de fundos
estruturais (os 24 mil milhões de euros do Programa 2020). Não se
sabe se haverá vontade de Bruxelas em canalizar tanto dinheiro para
a modernização das estruturas do Estado — há um acordo de
parceria assinado com a Comissão Europeia que estabeleceu desde o
início que os fundos teriam de ir para a sua frágil economia. Mas
isso pouco importa.
Já passou o tempo
em que António Costa abria o peito às balas em cada gesto que
ousasse. Hoje, ninguém arrisca profecias trágicas depois de tantas
vezes se falhar nas profecias anteriores. David Pontes dizia no JN
que este é o Governo da terceira via (entre as ortodoxias do Bloco e
do PCP e as do PSD e da Comissão Europeia) e essa via mais moderada
e centrista tornou o país mais conformado e crente. Vivemos tempos
de enlevo e estamos a gostar. Talvez, em breve, venha um relatório
de execução orçamental ou um raspanete de Bruxelas sacudir-nos da
letargia e obrigar-nos a fazer contas. Ou talvez não. Se a receita
oposta até agora falhou, por que havemos de acreditar que a sedução
de António Costa nos vai fazer pior?
2.
O auto-de-fé a que
o ministro das Finanças e um dos seus secretários de Estado
submeteram o governador do Banco de Portugal não foi apenas um
degradante sinal de falta de sentido de Estado. Foi também mais um
passo gratuito e insensato numa guerra que o Governo sabe que não
pode ganhar. Foi por isso que Centeno e as suas hostes fizeram uma
prudente retirada estratégica. O populismo que consiste em dizer que
Carlos Costa pedia ao Governo para garantir liquidez ao Banif
enquanto solicitava o contrário ao Banco Central Europeu pode ser
eficaz para a criação de um anátema na opinião pública, mas não
funciona quando a crítica é vista à luz das regras estritas do
eurossistema.
O interesse do país
recomenda que as partes esqueçam as inimizades e passem para o
exterior (principalmente para Bruxelas e Frankfurt) uma imagem de
responsabilidade que não se coaduna com trocas de acusações em
público. Porque se essas acusações desgastam em Portugal a imagem
do governador, isso não significa que haja condições para que ele
possa ser substituído por Mario Draghi. O melhor mesmo para o
Governo nestes dias de enorme turbulência no sistema financeiro é
ranger os dentes, manter a calma e deixar que seja a cavalaria do
Bloco e do PCP a atacar o governador. O folclores será mais garrido,
mas acabará por não ser tão perigoso.
3. Por vezes,
fica-se com a sensação de que o PCP é o único partido da esquerda
(incluindo aqui o PS) com alguma ligação à realidade. Depois da
patética ideia do Bloco de alterar a designação do cartão de
cidadão por considerar ilegítima a “linguagem sexista num
documento de identificação obrigatório para todos os cidadãos e
cidadãs nacionais” e depois ainda de o PS ter dado lustro a
tamanha estupidez, lá veio o velho PCP pedir calma e mandar o
delírio do Bloco para as malvas. “Não é uma questão de género,
mas de gramática”, explicou Jorge Machado, deputado do PCP em
jeito de explicação do voto contra que os comunistas aplicarão ao
“cartão da cidadania”.
O Bloco, bem se
sabe, deleita-se com estas ideias produzidas nos laboratórios das
universidades. É fácil e barato promover a vanguarda das
“igualdades”, até porque é lógico admitir que ninguém de bom
senso ficaria ofendido por ser portador de um cartão da cidadania ou
qualquer coisa do género. O problema para o Bloco é que iniciativas
deste jaez tendem a perpetuar a ideia de que os seus membros e
líderes vivem na estratosfera. Um pouco por todo o lado, a pergunta
que mais se fez para responder foi um inequívoco: “Mas, eles não
têm mais nada que fazer?” O PCP, mais ligado ao sentir do mundo,
percebeu por onde iria a discussão e matou-a à nascença. O
politicamente correcto levado ao extremo levou uma lição. Agora que
já não suscita indignação, venham daí as merecidas anedotas.
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