OPINIÃO
Grandeza
e miséria do PT
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 24/04/2016 – PÚBLICO
Pode a destituição
(impeachment) de Dilma Roussef ser uma bênção para o Partido dos
Trabalhadores (PT)? Há quem o admita. A sessão do Congresso
brasileiro foi um circo indigno. A
Presidente foi
condenada pelas “pedaladas” orçamentais numa assembleia em que
60% dos membros são acusados ou suspeitos de corrupção e outros
delitos. Pouco importa que 77% dos brasileiros defendam a “cassação”
de Eduardo Cunha, presidente do Congresso que montou a operação. A
destituição do vice-presidente, Michel Tamer, é pedida por 58%.
Eles têm um objectivo: o PT, no poder há 13 anos, deve ser afastado
a qualquer preço. Cavalgam a onda de impopularidade de Dilma.
Desta vez, “não é
uma acção orquestrada da grande burguesia pois temos indícios de
que não há uma preferência dos estratos sociais mais ricos pelo
impeachment”, declarou no início do processo o cientista político
Lincoln Secco, autor de uma História do PT (Ateliê, 2011) e ele
próprio membro do partido.
Os brasileiros
condenam Cunha e Temer mas não defendem a Presidente. O PP perdeu a
rua. A destituição de Dilma e Temer era pedida há mais de um ano
por mais de 60% dos inquiridos nas sondagens. Os pobres, as mulheres
e os jovens eram quem mais intensamente a exigia (acima das classes
médias e altas). O eleitorado petista estava cada vez mais
descontente e a popularidade do partido a derreter-se. Tudo correu
mal a Dilma. Não soube perceber a mudança da economia mundial. E o
pecado mortal foi ter prometido na segunda campanha uma política
económica para logo a seguir defraudar o eleitorado, sem lhe dar uma
explicação.
A oportunidade?
Os efeitos políticos
poderão surpreender. Lula ganharia um tema de vitimização e
coesão. Argumenta o politólogo Rodrigo Nunes: “O impeachment
acaba por ser o resultado mais confortável para o PT. Tira Dilma da
cena e praticamente coloca Lula em campanha.” Conclui: “O estrago
seria muito maior sem o impeachment, pois correria o risco de ficar
infinitamente mais impopular, permanecendo no poder no meio de um
cenário de crise económica.” Aplicar-se-ia uma antiga palavra de
ordem da oposição: “Nessa altura do campeonato, eles que fiquem
com o Titanic.” Doravante a pressão popular estaria sobre o
“governo” Temer.
No entanto, as
coisas não são tão simples. Houve um (ainda inexplicável) erro
político. A proposta de nomear Lula ministro-chefe da Casa Civil (16
de Março) foi interpretada como uma busca de imunidade para o
ex-Presidente: foi um ponto de viragem que tornou irreversível o
consenso da oposição em destituir Dilma. Lula é a personagem
central da política brasileira. Muito depende da sua força ou da
sua fraqueza.
Lulismo e petismo
O sociólogo José
de Souza Martins, que assistiu ao nascimento do PT no ABC paulista,
frisa a sua origem católica e luterana. Era um sindicalismo católico
e radical e, ao mesmo tempo, uma alternativa ao comunismo, de que
Lula se tornou a imagem. “Em silêncio e fora da pauta da luta de
classes, o Brasil mudou. Não é o proletariado que se ergue
politicamente, é o subúrbio, o lugar de chegada dos que transitam
entre o Brasil atrasado e o Brasil moderno, o urbano subconstituído,
inacabado e inacabável, o meio-termo, a transição.”
Depois agregou as
mais variadas correntes ideológicas da esquerda. “O PT cresceu
nestes anos todos questionando a legitimidade de todos e de tudo. Foi
apresentado como o único partido da integridade, da decência e da
competência (...)”, explica no livro Do PT das lutas populares ao
PT do poder (Contexto, São Paulo, 2016). Antes da chegada ao poder
havia a expectativa de que “seria o povo no poder”. Era uma
utopia muito forte. “Para ser um tal partido do povo, porém, o PT
jamais deveria ter aspirado ao poder.” A experiência do poder foi
traumática para os radicais. Lula publicou em 2000 o “Manifesto ao
Povo Brasileiro”, em que dava garantias ao capital, defendendo uma
política de reformas e conciliação. Venceu em 2002.
O 1º de Janeiro de
2003 tem um duplo significado. Assinala Martins: a passagem da faixa
presidencial a Lula foi “a concretização do acto político mais
importante nos 500 anos da História da emancipação do povo
brasileiro”. Mas significa também o ocaso do profeta e a
emergência do homem de estado. “Lula e o partido achavam que
governar era um acto de vontade política e que o Presidente mandava
no poder. Aos poucos descobriu que o poder manda no Presidente” e
que a sua margem de conduta (...) depende de uma arte completamente
diversa dos pressupostos do maniqueísmo e da retórica da porta de
fábrica.” Lula será acusado dentro do partido de praticar uma
política de conciliação permanente. Foi sempre um líder bifronte.
Homem de estado no palácio, tribuno na rua e nos congressos.
Lula deixou um
importante legado social que arrancou à miséria e à ignorância
milhões de brasileiros. “É o único partido na história
republicana brasileira que estabeleceu um elo entre os humilhados e
os ofendidos da terra, cronicamente desprezados pela direita e pela
esquerda, e pelo poder”, sublinha Martins.
Mas tornou-se também
num problema para o partido. O eleitorado rapidamente se tornou
lulista. É o PT que vive de Lula e não este do partido. Ao mesmo
tempo, mudou a composição social do PT, assinala o historiador
André Singer (membro do partido e autor de Os Sentidos do Lulismo -
Reforma gradual e pacto conservador, Companhia das Letras, 2012). Nos
anos 1990, o PT tinha a sua grande base eleitoral entre os eleitores
com mais alto nível de educação e nos estados mais urbanizados e
industrializados do Sul e Sudeste. Depois de estar no governo e dos
primeiros programas sociais (Bolsa Família, salário mínimo e
outros), o lulismo implantou-se nas regiões pobres do Norte e
Nordeste (ver Manuel Carvalho). O PT declina nas grandes cidades,
perde a maioria das classes médias e regressa à condição de
partido das periferias urbanas.
Anota Singer: “A
desconexão entre as bases do lulismo e a do petismo em 2006 pode
significar que entrou em cena uma força nova, constituída por Lula
à frente de uma fracção de classe antes caudatária das forças da
ordem.” Lula fez do PT o “partido dos pobres (...), lugar vago na
política brasileira desde 1989, quando o PMDB perdeu essa condição.”
Ética e corrupção
O escândalo do
Mensalão (compra do voto de deputados) foi um sismo que pôs em
causa a “superioridade ética” do PT. Veio depois o Petrolão (a
corrupção na Petrobras), despoletada pela investigação judicial
Lava Jato em 2014, que não atinge só o PT mas quase todos os
partidos. A corrupção é endémica no Brasil mas foi devastadora
para o PT. Este ainda não a encarou frontalmente, mantendo uma
relativa ambiguidade.
Lincoln Secco
testemunha: “Eu mesmo ouvi de dirigentes do PT em 2005 que não era
errado roubar pelo partido e sim para proveito pessoal.” E, no
Petrolão, passou-se ao enriquecimento pessoal ilícito, tal como nos
velhos partidos. Explica Martins que alguns dirigentes do PT
elaboraram o espantoso conceito de “corrupção altruísta”,
argumentado que a propina [corrupção] para levar ao poder não é
corrupção, “porque, em última instância, trata-se de ‘corrupção
cívica’ para favorecer pobres (...).”
É a questão o PT
ainda não resolveu e que o fará entrar em choque com o novo grande
actor político do futuro, a juventude da classe média ascendente,
em boa parte fruto da governação de Lula.
Sem comentários:
Enviar um comentário