OPINIÃO
Meu
nome é Machado, Lacerda Machado
MANUEL CARVALHO
17/04/2016 - PÚBLICO
Custa a perceber que
o melhor homem do mundo para defender o interesse do Estado seja um
gestor com este passado e este presente de associações à TAP e a
Stanley Ho.
Bem se sabe que os
agentes especiais têm de manter com as majestades a quem prestam
serviços promessas de segredo e provas de confiança. Não causa por
isso estranheza que António Costa tenha escolhido o seu “melhor
amigo”, Diogo Lacerda Machado, para desempenhar missões espinhosas
que exigem qualidades assim. Não causa também especial sobressalto
que a sua contratação como agente de São Bento se tenha
concretizado com uma simples troca de palavras, o bem mais precioso
entre amigos que se prezam. Não, se há algo que deixa António
Costa e Diogo Lacerda Machado mal na fotografia não é o “eh pá,
dá lá ajuda a resolver este sarilho que tu és bom a negociar”
mas o facto de o amigo do primeiro-ministro ser tudo menos uma pessoa
com o distanciamento necessário para desatar o imbróglio da TAP.
Porque ao desempenhar esse papel, Diogo Lacerda Machado vestiu a
farda do agente público sem ter despido de forma clara e cristalina
o uniforme que veste na defesa dos interesses privados que gravitam
em torno da transportadora.
Vamos por partes.
Diogo Lacerda Machado é há anos administrador em Portugal dos
interesses do empresário macaense Stanley Ho. Foi nessa condição
que participou no indizível (para ser brando) negócio da compra
pela TAP da unidade de manutenção de aviões da Varig no Brasil,
conhecida então como VEM. Convém sublinhar os detalhes do negócio:
num primeiro movimento, 85% do capital da VEM ficou nas mãos da
Geocapital, sociedade de Stanley Ho e do português Jorge Ferro
Ribeiro, cabendo à TAP os restantes 15% do capital. Mas eis senão
que, um ano depois, a Geocapital, ainda com Diogo Lacerda de Machado
na administração, vende os seus 85% à TAP com um lucro de 20%,
correspondentes a quase quatro milhões de euros. O negócio, que
está a ser investigado pela Procuradoria-Geral da República, fez-se
sem o sinal verde do Ministério das Finanças e a história que se
segue é conhecida: a VEM, rebaptizada M&E Brasil, tornou-se um
buraco sem fundo. Até hoje, terá devorado em prejuízos mais de 300
milhões de euros à transportadora.
Apontar o dedo a
Diogo Lacerda Machado neste negócio faria sentido, se vivêssemos
num mundo de almas cândidas, prontas a acreditar que os interesses
do Estado são sempre legítimos e os interesses privados sempre
conspícuos. Não vivemos, e o mínimo que se pode dizer é que o
administrador fez o que melhor sabia, podia e devia para defender o
dinheiro do seu accionista. E não fez pouco. A rapidez com que a
Geocapital se desfez do negócio teve para Stanley Ho uma dupla
vantagem: por um lado gerou uma mais valia de 20% em apenas num ano,
o que é uma aplicação, no mínimo, jeitosa; por outro eximiu os
seus accionistas de derreterem a cada ano que passou muitas dezenas
de milhões de euros em prejuízos. Se a TAP foi o patinho sentado da
história, condenado a acumular prejuízos da VEM, peçam contas ao
seu CEO, não a Lacerda.
Um negociador desta
estirpe é uma espécie de rei Midas que qualquer primeiro-ministro
que se preze gosta de ter ao seu alcance. Sendo amigo, melhor ainda.
O problema é que, ao que se sabe (e sabe-se o suficiente), Diogo
Lacerda Machado continua mostrar na sua esfera de acção
profissional zonas de atrito com o interesse público, em particular
com o da TAP. A começar, ele continua a ser administrador dos
interesses de Stanley Ho em Portugal o que, por princípio, não
seria impedimento para que interviesse como agente especial do
Governo nas negociações da TAP, se o seu capítulo de defensor de
legítimos interesses privados na transportadora aérea estivesse em
absoluto enterrado no passado da VEM. Ora, não é o caso. Como o
PÚBLICO revelou, “Stanley Ho tem ligações ao grupo chinês que
quer comprar a TAP”. Um pouco mais de prudência, ou de pudor,
teria, por isso, desaconselhado a intervenção de Diogo Lacerda
Machado no processo.
Vejamos porquê. Uma
das novidades que saíram das negociações que fizeram reverter a
maioria do capital da transportadora para a esfera do Estado é a
entrada indirecta dos chineses da Hainan Airlines na TAP. Quer dizer,
a Hainan ficou dona de uma fatia das acções da brasileira Azul e
como a Azul tem uma fatia de acções na TAP, logo os chineses são,
indirectamente, donos de uma parte da TAP. E o que é que isto tem a
ver com Diogo Lacerda Machado? É que, em Hong Kong, o seu “patrão”,
Stanley Ho, tem uma sociedade com a Hainan Airlines. Sem muito
esforço, é possível colocar em cima da mesa uma relação de
interesses, ainda que remotos, ainda que indiciários, ainda que
pouco fluidos, entre o negócio da TAP e o empresário macaense. Ou
seja, o Diogo Lacerda Machado que representava o Governo era o mesmo
Diogo Lacerda Machado administrador de uma sociedade de um empresário
macaense que partilha interesses económicos com uma empresa chinesa
envolvida nessa mesma negociação com o Estado.
Dizer que esta
relação é por si só justificativa de um ataque ao Governo por
presumível alimentação de negócios suspeitos de falta de
transparência pode ser um exagero. Mas já não é exagero nenhum
afirmar que, face à importância e sensibilidade do negócio da TAP,
Diogo Lacerda Machado não reunia condições para desempenhar o
papel que desempenhou. Custa a perceber que o melhor homem do mundo
para defender o interesse do Estado seja um gestor com este passado e
este presente de associações à TAP e a Stanley Ho. Como escreveu
no PÚBLICO Pedro Sousa Carvalho, “não haverá entre os 17
ministros, os 41 secretários de Estado, os não sei quantos
assessores e adjuntos ou entre os 650 mil funcionários públicos
alguém com competência para representar o Estado nessas
negociações?”.
Há outras
perguntas. António Costa sabia destas ligações à TAP e percebeu
que ao autorizar a entrada dos chineses estava a desfiar uma remota
ponta de ligação ao patrão do seu amigo? Porque não se fez um
escrutínio prévio a esta nomeação? Alguém acredita que se uma
escolha destas fosse feita pelo anterior Governo (ou o de Sócrates,
ou outro qualquer antes dele) teríamos o Bloco e o PCP mudos e
quedos como estão em relação ao passado e ao presente do agente
especial do primeiro-ministro?
E é então aqui que
encaixa a informalidade com que António Costa deixou correr o pano.
Não estando Diogo Lacerda Machado completamente à margem de
eventuais conflitos de interesses no negócio da TAP, ao menos que se
submetesse desde o início a um qualquer tipo de vínculo contratual
com a função pública. Ter negociado o processo da TAP na condição
de franco-atirador do Governo que, ao mesmo tempo, mantinha um pé
nos assuntos de Stanley Ho e um passado de bons negócios com a TAP,
é, enfim, uma história digna de uma república das bananas. Depois
da pressão generalizada (até do Bloco e do PCP), o Governo lá
tratou de enquadrar as suas funções num contrato . Era bom que nos
desse agora muitos e bons argumentos para ficarmos sem a mínima
réstia de dúvidas de que Diogo Lacerda Machado agiu do princípio
ao fim com o exclusivo empenho em defender o interesse nacional, e
não em busca de um novo e putativo negócio da China.
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