Manuel
Salgado viola deliberações da Câmara de Lisboa no Bairro Alto
“Meramente
referencial” e “orientação genérica” é como define as
deliberações que o impediam de autorizar a mudança de uso de um
palácio e a demolição de um prédio pré-pombalino
José António
Cerejo / 25-4-2016 / PÚBLICO
“Só na proposta
150/2009 se fala em ‘uso exclusivo como unidade hoteleira’, sem
que tal tivesse tradução nas peças da hasta pública”, diz
Salgado para justificar decisão
As deliberações
aprovadas pela Câmara de Lisboa não contam nos serviços tutelados
pelo vereador do Urbanismo, Manuel Salgado. Essa é pelo menos a
conclusão que se tira do facto de estes serviços terem autorizado
outros usos para um palácio vendido pelo município com a condição
de ele se destinar “exclusivamente ao uso de unidade hoteleira”.
DR
A conclusão de que
as deliberações camarárias são ali letra morta não resulta,
porém, de um lapso, ou da negligência de um qualquer técnico. É o
próprio gabinete do vereador — em resposta escrita enviada ao
PÚBLICO 21 dias depois de ser questionado — que explica que a
exclusividade do uso hoteleiro consagrada na deliberação aprovada,
em 2009, pelo executivo chefiado por António Costa não era para
levar a sério.
“Só na proposta
n.º 150/2009 se fala em ‘uso exclusivo como unidade hoteleira’,
sem que tal tivesse tradução nas peças da hasta pública”, lêse
na resposta. Detalhando a ideia, Salgado, ou quem ele encarregou de o
fazer, afirma: “Face aos termos e condições do estabelecido nas
peças escritas da hasta pública, designadamente no caderno de
encargos e nas condições especiais, o referido uso era ‘meramente
referencial’ e não imperativo, permitindo assim que pudesse ser
outro mediante autorização do município.”
O edifício em causa
é o Palácio Braancamp, um imóvel do século XIX situado no Bairro
Alto, perto do Príncipe Real, mas não visível da via pública. O
comprador, que pagou 2,4 milhões de euros em 2009, foi uma empresa
do grupo hoteleiro 3K.
Uma outra empresa
deste grupo adquiriu cinco anos depois, também em hasta pública, um
segundo edifício camarário contíguo ao palácio. Neste caso, a
actuação dos serviços de Urbanismo também tem uma
particularidade. O prédio, um edifício pré-pombalino localizado na
Travessa do Conde de Soure, foi vendido em Dezembro de 2014 com uma
condição clara: destinava-se a ser reabilitado e não podia ser
demolido. Seis meses depois, em Junho de 2015, Salgado autorizou a
sua demolição parcial — que, na verdade, foi total e ocorreu em
Janeiro deste ano —, com a justificação de que ele estava “em
estado de ruína iminente”.
A capital do charme
Quanto ao Palácio
Braancamp, a sua alienação fez parte do malogrado projecto “Lisboa
Capital do Charme”, através do qual António Costa tentou vender,
em 2009, seis palácios camarários. A ideia consistia em reconfortar
os cofres camarários, permitir a reabilitação dos imóveis e
reforçar a oferta hoteleira da capital no segmento dos chamados
“hotéis de charme”. Todavia, dos seis palácios em causa, apenas
o Braancamp foi vendido. Seis anos antes, no mandato de Santana
Lopes, já o Palácio da Rosa, na Mouraria, tinha sido vendido pela
câmara para ser transformado em hotel de charme, algo que nunca
sucedeu.
Nos termos da
deliberação 150/2009, o executivo autorizou a alienação do
Palácio Braancamp, por meio de hasta pública, sendo o edifício
“destinado, exclusivamente, ao uso de unidade hoteleira”.
Simultaneamente, aprovou as Condições Gerais e Especiais da hasta
pública a realizar, com o valor base de 1,8 milhões de euros.
Nesses documentos
nada se dizia quanto ao seu futuro uso, mas adiantava-se que “para
efeito de projecto de reabilitação do imóvel devem ser
consideradas as condicionantes urbanísticas gerais e especiais
aplicáveis, enunciadas em estudo (...) em anexo, o qual, sendo
meramente referencial, apenas teve como objectivo aferir da
viabilidade técnica da operação”. O documento esclarecia que “o
anteprojecto de obras de beneficiação/ reabilitação deve ser
apresentado até ao prazo máximo de 180 dias após a data de
celebração da escritura”, mas não fixava qualquer penalização
em caso de incumprimento.
Uma vez que a
escritura foi outorgada em Julho de 2009, aquele prazo findou em
Janeiro de 2010, sem que na câmara tenha entrado qualquer
anteprojecto. Um ano e meio depois foi finalmente apresentado um
pedido de informação prévia (PIP), com o objectivo de alterar e
ampliar o palácio e aí instalar a prevista unidade hoteleira. O
pedido foi deferido por Salgado em Junho de 2012, mas logo a seguir o
promotor mudou de opinião. Afinal já não queria fazer um hotel,
razão pela qual pediu à câmara para alterar o uso a dar ao imóvel,
por forma a abrir aí “uma creche com serviço de ATL”. Ainda em
2012, a câmara autorizou a mudança de uso, ficando o caminho aberto
para a criação de uma creche num palácio comprado por 2,4 milhões
de euros.
Desde então, nem
hotel, nem creche, nem obras. O local e os seus jardins foram
esporadicamente usados para a realização de festas e outros eventos
particulares e o prazo de validade do PIP terminou entretanto.
“Meramente
referencial”
Contactado pelo
PÚBLICO acerca da autorização de mudança de uso em desrespeito da
deliberação camarária, o gabinete de Salgado argumentou como já
se disse. Solicitado a esclarecer o assunto, tanto mais que nas
Condições Especiais da hasta pública o que se diz ser “meramente
referencial” não é o uso hoteleiro, mas sim o estudo efectuado
para “aferir da viabilidade técnica da operação”, o vereador
insistiu, três semanas depois: “A proposta 150/2009 aprovada em
reunião de câmara refere que a alienação é para a construção
de um hotel. Contudo, as peças escritas da hasta pública, as quais
foram aprovadas pela mesma proposta, admitiam a possibilidade de a
aquisição ser feita para outros usos.”
Para complicar o
caso, a intervenção com que o então vereador do Património,
Cardoso da Silva, defendeu na assembleia municipal a alienação do
edifício explica como é que o uso exclusivo para fins hoteleiros
entrou na proposta. “A pedido de um grupo municipal (...), foi
vertido na própria proposta o uso para hotelaria, porque isso antes
estava nas condições do Caderno de Encargos para a hasta pública,
mas não estava na proposta”, lê-se na acta da reunião em que a
venda foi aprovada. Sendo certo que nos anexos da proposta relativa a
esta hasta pública não existe qualquer Caderno de Encargos, mas
apenas as respectivas Condições Gerais e Especiais, e nestas — ao
contrário do que afirma Salgado — nada consta de concreto em
relação ao uso, terá de se concluir que a hotelaria ao entrar na
proposta saiu dos anexos.
Questionado sobre as
medidas tomadas pelo município perante o facto de os compradores não
terem apresentado qualquer anteprojecto passados seis anos sobre a
data limite, o vereador respondeu: “As condições da hasta pública
não prevêem qualquer sanção específica em caso de incumprimento
do prazo contratual, pelo que estamos a analisar a situação não
havendo ainda qualquer decisão.” Igual resposta, palavra por
palavra, foi dada quanto ao incumprimento do prazo que obrigava o
promotor a concluir em Janeiro deste ano, segundo a câmara, as obras
que nem sequer iniciou no prédio adquirido junto ao palácio
Braancamp, na Travessa do Conde de Soure. Só que, neste caso, o
equívoco ainda é maior. Isto, porque as normas do programa
Reabilita Primeiro Paga Depois (RPPD), aprovadas pela câmara em
2012, e ao abrigo das quais foi vendido este edifício, estabelecem
que “as condições da hasta pública deverão
fixar as
penalizações por incumprimento contratual, incluindo a reversão da
propriedade do imóvel”. Mais do que isso, o Caderno de Encargos
determina que o município “aplicará uma penalização
correspondente a 1% sobre o valor arrematado do imóvel por cada mês
completo de atraso relativamente ao prazo previsto para a conclusão
da obra de reabilitação, desde que decorrente de factos
exclusivamente imputáveis ao adquirente”.
Multa de 4000
euros/mês
Atendendo a que o
edifício foi arrematado por 415 mil euros, mais do dobro do preço
pelo qual foi à praça, a penalização devida entre Janeiro deste
ano e o termo das obras cujo projecto ainda não foi entregue seria
de 4150 euros por mês.
Quem acha que nada
há a pagar, além de Salgado, que diz não estarem previstas
penalizações, é José Teixeira, sócio da empresa compradora. “Nós
não podíamos fazer a obra sem demolir o que lá estava, e a câmara
só emitiu o alvará para o fazermos em Janeiro deste ano. Para nós,
o prazo começa a contar nessa altura e não na data da escritura”,
afirma o empresário, que nada quis dizer sobre o Palácio Brancamp,
de cuja empresa proprietária também é sócio.
A demolição do
prédio da Conde de Soure levanta, todavia, uma outra questão. É
que o RPPD, tal como foi aprovado pela câmara, tem por objectivo
“promover a reabilitação de património municipal devoluto e em
mau estado de conservação”. Por outro lado, a “ficha de
edificabilidade” do imóvel fornecida aos participantes na hasta
pública restringia a sua viabilidade urbanística à “reabilitação
com manutenção do edifício existente”. Quem concorreu à compra
do edifício, então degradado e com os vãos das janelas
emparedados, sabia que teria de o recuperar e não o poderia demolir.
(…)
PCP
e CDS-PP condenam
Postos ao corrente
deste assunto pelo PÚBLICO, os vereadores Carlos Moura, do PCP, e
João Gonçalves Pereira (na foto), do CDS-PP, manifestaram fortes
reservas face à actuação da autarquia. “Não é admissível que
as deliberações da câmara sejam desrespeitadas com o beneplácitos
dos serviços. Nenhum estudo se pode sobrepor a uma deliberação do
executivo”, afirmou o eleito do PCP. Já o vereador do CDS exigiu
“uma clarificação célere por parte do presidente da câmara”,
relativamente a “processos pouco claros, na medida em que
desvirtuam o sentido das propostas que foram objecto de deliberação
da câmara”. De acordo com Carlos Moura, trata-se de uma situação
“profundamente condenável” e o PCP “não deixará de tomar uma
posição”. O caso da demolição do prédio da Travessa do Conde
de Soure, sublinhou, “só vem reforçar todas as dúvidas que o PCP
sempre teve em relação ao programa Reabilita Primeiro Paga Depois,
confirmando que ele está ao serviço dos promotores e não da
cidade”. Frisando que, na sua opinião, o que é mais criticável é
o comportamento da câmara e não dos promotores, João Gonçalves
Pereira declarou: “É manifestamente estranho que na hasta pública
de Outubro de 2014, preparada pelos serviços municipais, o imóvel
tenha como objectivo a ‘reabilitação com manutenção do edifício
existente’ e que poucos meses depois seja autorizada uma demolição
com o fundamento de ‘risco de derrocada iminente’”. O autarca
estranhou também que a câmara “ande desenfreada a cobrar impostos
e taxas aos lisboetas e nestes casos não aplique aos promotores
imobiliários as sanções pecuniárias a que tem direito”.
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