Lojistas
do Cais do Sodré assediados para cederem espaços ao negócio da
noite
POR O CORVO • 19
ABRIL, 2016
Em pouco tempo,
aquela que era uma das zonas mais mal-afamadas de Lisboa converteu-se
num bairro da moda. Há ali cada vez mais bares. Muito por culpa do
fenómeno “rua cor-de-rosa”, surgido no final de 2011. Mas também
da revolução turística dos últimos anos. A procura por espaços
para instalar negócios nocturnos disparou. Por isso, os tradicionais
comerciantes da área estão a ser aliciados para venderem ou
arrendarem os seus estabelecimentos. Alguns dos quais viram surgir
hostels nos pisos superiores. Mas há quem ache que isto é apenas um
fenómeno passageiro.
Texto: Pedro Arede
Os fregueses são
cada vez menos nos pequenos estabelecimentos comerciais que vão
resistindo no Cais do Sodré. As lojas abertas durante o dia
escasseiam e, de tempos a tempos, é comum ver uma pequena mercearia
ou boutique dar lugar a um bar ou loja de conveniência. Os lojistas
estão preocupados com o marasmo sentido durante o dia e, pelo que
foi possível apurar pelo Corvo, as propostas de compra ou de
cedência de quotas dos seus espaços são recorrentes e cada vez
mais difíceis de resistir. Contudo, há também quem acredite que,
como tantas outras, esta é apenas uma fase.
“Isto agora é só
night”, diz ao Corvo Abel Medeiros, vendedor numa antiga loja de
sementes na Rua dos Remolares, ao qual já foi feita uma proposta de
aquisição do espaço. “Já quase não há lojas aqui na zona,
porque o negócio está praticamente todo virado para a noite, mas
eu, para já, tenho-me aguentado e, se depender de mim, mantenho-me
cá. Há poucas lojas de sementes em Lisboa, sabe?”, acrescenta.
Andando um pouco
mais até Rua de São Paulo, o cenário não muda muito de figura.
Além de restaurantes e lojas de conveniência – onde, segundo
alguns lojistas, chega a ser cobrada uma renda mensal de 3700 euros
-, a maioria dos espaços comerciais está encerrada, à espera que
caia a noite para abrir portas no seu horário de expediente.
António Rocha tem
59 anos e 40 de Cais do Sodré. É vendedor no pronto-a-vestir
“Euromoda”, bem perto da rua cor-de-rosa, e também ele vê com
desalento e preocupação o estado actual do comércio da zona. Os
clientes são raros e a escassa quantidade de lojas nas redondezas
traz pouca gente à rua durante o dia.
António Rocha, que
orgulhosamente está de portas abertas para vender “roupa de
qualidade fabricada em Portugal”, diz estar farto da situação
actual e espera somente conseguir aguentar o suficiente até chegar à
idade da reforma.
“Deixa-me triste
isto assim. Tenho saudades de ver passar aqui na rua os carrinhos com
alcofas das vendedoras do Mercado da Ribeira. Era uma azáfama que
trazia muita vida aqui ao comércio. Agora não há nada disso, está
bom para os bares e para os mais novos”, conta ao Corvo.
Questionado sobre se
o estabelecimento alguma vez fora alvo de propostas de compra ou
arrendamento, António Rocha reconhece que, ultimamente, tem sido
abordado com bastante frequência. “Ainda ontem apareceu aqui um
investidor italiano que queria arrendar isto para fazer um bar”,
conta ao Corvo.
Mas, aparentemente,
ninguém se quer comprometer. Segundo o lojista, os interessados
querem apenas “investir enquanto o negócio da noite estiver a dar”
e, até hoje, ainda não recebeu qualquer proposta de compra do
espaço. Por isso mesmo, diz o próprio, acredita que esta pode
apenas ser uma fase passageira.
O negócio
imobiliário vai em alta na zona do Cais do Sodré.
Exemplo disso é o
tipo de propostas que começam a ser habituais na zona e que, além
do arrendamento, incluem ainda o pagamento de uma percentagem mensal
e a manutenção do posto de trabalho. “Ninguém quer realmente
comprar! Aqui, aos meus vizinhos da frente propuseram-lhes
transformar a sua loja de artigos para animais num bar. Pagavam tudo,
faziam as obras e eles continuavam a trabalhar mas, neste caso, num
bar”, conta ao Corvo António Rocha.
Por seu turno, João
Paulo, proprietário da loja de instrumentos “O Trovador”, no
início da Rua do Alecrim, mostrou-se céptico acerca dos
investimentos que se têm verificado na zona, quando o tópico da
conversa foi parar ao encerramento das discotecas Jamaica, Tokyo e
Europa. “Julgo que esta especulação toda resulta de histórias
mal contadas. Há muitos interesses”, conta ao Corvo. Sobre o seu
estabelecimento, João Paulo afirma “não estar à venda”, mas
acredita que, se estivesse, seria vendido com bastante facilidade.
A umas centenas de
metros de distância do Cais do Sodré, na Rua do Arsenal, as
movimentações imobiliárias, neste caso fruto do fluxo turístico e
não tanto do negócio da noite, também estão a mudar a
configuração do comércio da zona.
Nesta rua, que fica
a caminho da baixa de Lisboa, os cafés e os estabelecimentos de
venda de bacalhau convivem hoje com lojas de conveniência, lojas de
souvenirs e hostels.
Fernando Dias, de 52
anos, proprietário do “Rei do Bacalhau”, trabalha hoje
paredes-meias com o hotel “Lisbon Arsenal Suites” e está ciente
que a sua propriedade tem atualmente um enorme valor. No entanto,
apesar de já ter sido abordado para a venda do espaço, afirma
querer continuar a vender bacalhau de “alta qualidade”.
Fernando Dias
prefere continuar a vender bacalhau a ceder ao avanço dos bares.
“Fomos oito a
vender bacalhau aqui na rua e agora somos só dois”, conta ao
Corvo. “Já houve propostas para comprar o espaço mas não está à
venda. Para me desfazer disto teria de ser uma oferta muito boa, em
que já nem sequer precisasse de trabalhar mais”, acrescentou.
O proprietário, que
remodelou recentemente o estabelecimento, “porque era preciso e não
para fazer a vontade aos turistas”, conta ainda que muita desta
movimentação resulta única e exclusivamente da especulação e
que, por isso, é preciso abordar estes tempos com cautela. “Acho
que as pessoas andam outra vez a viver a ilusão de há 20 anos,
quando ter um prédio em Lisboa era ganhar o Totoloto. Mais tarde,
era vendido por tuta e meia”.
Rui Bártolo, 55
anos, vendedor de bacalhau no “Pérola do Arsenal”, diz também
que o estabelecimento onde trabalha vai resistindo às investidas de
compra do espaço, que “deve valer hoje um balúrdio”.
“Queriam
transformar isto num hostel, mas o senhorio não aceitou. Aqui,
queremos manter a traça tradicional do espaço, como já era há
muitos anos e, para já, temos conseguido aguentar. O que nos tem
ajudado muito são os turistas que vêm nos paquetes e acabam por
passar todos por aqui”, revela ao Corvo.
Moldados ou não ao
turismo e à especulação, o que é certo é que são muitas as
incertezas dos comerciantes do Cais do Sodré e arredores quanto ao
seu futuro, sobretudo numa altura em que as propostas são cada vez
mais tentadoras e, simultaneamente, menos assertivas. A pressão
existe e o Cais mudou. Mas será o interesse na noite apenas uma
fase?
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