A
falsa promessa do futuro: a Europa e a armadilha do progresso (II)
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 29/04/2016 - 13:59
Sob
a aparência de progresso, a velha Europa caminha para a irrelevância
histórica.
1. Numa frase
lapidar, Eduardo Lourenço escreveu que a “construir a Europa por
irresistível pressão das forças económicas e uma lógica que é
hoje planetária, como sonâmbulos, não é projecto que entusiasme
ninguém.” (Ver A Europa Desencantada, 3ª ed., Gradiva, 2011, p.
240). É bem verdade! E não é só a integração europeia que se
ressente da hegemonia do homo economicus, gerando o desencantamento
do cidadão face à Europa. A actual lógica capitalista, baseada
numa competição extremada, está a levar ao esgotamento qualquer
ideia genuína de progresso — o “movimentismo” é a sua última
versão, cada vez mais falseada e desumanizada. Alimenta uma
engrenagem de insustentabilidade ao induzir, por exemplo, uma
ecologia alterada e uma demografia que corrói o equilíbrio do
modelo social europeu / Estado social. Paradoxalmente, o que deveria
ser a sua antítese, a ideologia social-liberal / libertária de
esquerda, acentua essas últimas tendências, pelos estilos de vida
fragmentários que promove. A conjugação de ambas levanta problemas
complexos no longo prazo, embora possa gerar, especialmente ao nível
das elites, vantagens e oportunidades de prosperar à custa do todo
social. Não é surpreendente que a Europa, parafraseando Eduardo
Lourenço, esteja a ultrapassar o limiar de um tempo não europeu e a
tornar-se progressivamente irrelevante. Vejamos como isso ocorre.
2. A ideologia do
progresso, na versão capitalista liberal / (neo)liberal, de direita,
tem um influente pensador e ícone da inovação em Joseph A.
Schumpeter (ver Capitalism, Socialism and Democracy, Routledge,
2003). No livro, originalmente publicado durante os anos da II Guerra
Mundial, o autor interrogava-se: “pode o capitalismo sobreviver?”
(capítulo 2, p. 83). Em resposta a essa questão, Schumpeter avançou
com a conhecida ideia da “destruição criadora” (ou destruição
criativa), do capitalismo. É um “processo de mutação empresarial
— se é que posso usar este termo biológico — que, de forma
incessante, revoluciona a estrutura económica por dentro,
incessantemente destruindo a antiga e incessantemente criando uma
nova”. Para Schumpeter, o processo de destruição criadora é
mesmo “o facto essencial do capitalismo. É aquilo em que o
capitalismo consiste e com que todas as preocupações capitalistas
têm de viver”. Por outras palavras, Schumpeter — e, sobretudo,
os seus actuais seguidores liberais /(neo)liberais —, idolatram o
processo de inovação que ocorre numa economia competitiva de
mercado. Novos produtos, serviços ou tecnologias destroem empresas e
modelos de negócios estabelecidos. A inovação capitalista
empresarial seria, assim, uma poderosa força do crescimento
económico, da criação de valor e de bem-estar e até da redução
de monopólios. Um “admirável mundo novo” emerge a seguir. O
mercado faz a selecção natural dos mais competitivos e premeia os
inovadores. Os consumidores beneficiam de novos produtos e / ou
serviços. Perfeito. Mas esta forma de encarar a inovação é
simplista e contém vários riscos. Incute uma visão da competição
empresarial próxima do darwinismo social que idolatra os mais aptos.
A “destruição criadora” não tem só efeitos benéficos de
eliminar ineficiências e indústrias obsoletas: é destrutiva para
os vencidos. Para estes, origina falências, desemprego, pobreza. Nem
todas as inovações são socialmente úteis. Podem ser
desumanizadoras. Podem prejudicar os equilíbrios sociais e
ecológicos. As ideias de Schumpeter foram absorvidas pela vulgata
(neo)liberal captada pelo slogan de Margaret Thatcher nos anos 1980:
There is no alternative / “Não há alternativa”. Após a crise
de 2007 / 2008, os adeptos do experimentalismo da “destruição
criadora” viram aí uma oportunidade de transformar as relações
na economia e na sociedade. Esta não é a única forma desvirtuada
de progresso — “movimentismo” — em que os europeus acreditam.
3. A ideologia do
progresso, na versão social-liberal / libertária, de esquerda,
vê-se, a si própria, como genuinamente progressista. Tem
normalmente escapado à crítica do progresso. Não há razão
substantiva para isso. Sofre de similares problemas aos já apontados
às outras facetas da ideologia do progresso. A sua crença não
assenta nas possibilidades da ciência e tecnologia, nem do
crescimento da economia, mas nas possibilidades infinitas e
redentoras de um progresso social. Acredita na “destruição
criadora” da transformação social, na criação permanente de
novos valores superiores aos antigos. Cultiva a sua própria forma de
“movimentismo”. Nutre-se do pré-conceito acrítico de que o novo
supera automaticamente o antigo, de que isso é evolução, é
progresso. O europeu / ocidental já adquiriu uma saudável dose de
cepticismo e de espírito crítico sobre a ideologia do progresso no
campo científico-tecnológico (e também no económico). As
tragédias das duas guerras mundiais e os problemas ecológicos
levantados pela economia capitalista foram um necessário choque de
realidade — e um grito da consciência crítica e ética. Não
adquiriu ainda essa consciência face à ideologia progressista no
campo social e ao seu culto ‘movimentista‘— e experimentalista
— da transformação social permanente. É o seu “admirável
mundo novo”. Assenta na desconstrução dos valores estabelecidos
inspirada em Jacques Derrida e na resistência anti-poder de Michel
Foucault. Ironicamente, a analogia com as ideias liberais /
(neo)liberais de direita, de um progresso pela “destruição
criadora”, é grande. As teses ecoam as de Schumpeter. Estas vêm a
inovação / competitividade / empreendedorismo com um motor da
transformação. As externalidades sociais e ambientais não são um
problema seu. Os socais-liberais, ou libertários de esquerda, sofrem
de similar visão simplista. O pré-conceito progressista impede de
ver como a transformação social permanente, com a difusão de
estilos de vida hedonistas e egocêntricos, fragmentam e atomizam a
sociedade. A insustentabilidade demográfica, gerada pelo homo
economicus obcecado pela competição, é acentuada pela
instabilidade da transformação social permanente. O modelo social
europeu / Estado social é um dano colateral de ambas as ideologias.
4. Estas duas
versões da ideologia do progresso são a forma de “bem pensar”.
O pré-conceito inerente à evolução / progresso, de conotação
social muito positiva, leva muitos, num automatismo confrangedor, a
aderir a qualquer transformação apresentada como progresso, para
serem vistos como modernos — se é inovador então é bom. O
recurso a novilínguas orwellianas acentua a não reflexão. Uma
dissimula os efeitos mais nefastos da “destruição criadora” do
capitalismo numa linguagem sedutora e tecnocrática que neutraliza o
pensamento crítico. A outra envolve a transformação social em
elevados valores morais inibindo intelectualmente e socialmente os
críticos. Ambas usam a escola / universidade para os seus fins. Para
os (neo)liberais, esta é uma instituição para servir as empresas,
o mercado e a sua ideologia, bem como para suprir as necessidades
formativas. Pretendem uma mão-de-obra dócil, acrítica quanto às
estruturas e injustiças sociais. Para os liberais-sociais /
libertários, é um agente de transformação social ao serviço da
sua ideologia e visão do mundo. O objectivo é a desconstrução das
estruturas sociais e dos valores dominantes. Novos estilos de vida
são vistos como emancipadores face à old-fashioned estrutura
familiar e convenções sociais — meras construções sociais. Tal
como para os (neo)liberais, onde a economia capitalista é uma
“destruição criadora”, que faz implodir empresas e indústrias
old-fashioned, também para os sociais-liberais, ou libertários, a
transformação da sociedade faz implodir valores refractários a um
progresso emancipador. Ambas prometem o futuro. Paradoxalmente, pelos
efeitos secundários que não anteciparam, nem controlam, podem levar
os europeus a um futuro pior. Sob a aparência de progresso, a velha
Europa caminha para a irrelevância histórica.
Investigador
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