Um
PEC que não afronta Bruxelas e amarra o Bloco
PEDRO SOUSA CARVALHO
21/04/2016 - PÚBLICO
O
Programa de Estabilidade representa um reencontro (mais um) do
Governo de Costa com a realidade
Uma comunicação
que ficou para a história. Estávamos a 3 de Maio de 2011, e o PEC
IV já tinha sido chumbado no Parlamento. José Sócrates estava
demissionário e faz uma comunicação ao país para anunciar as
medidas do memorando de entendimento que tinham acabado de ser
negociadas com a troika. Como já decorria o período de
pré-campanha, Sócrates fez toda uma comunicação sui generis em
que, ao invés de anunciar as medidas negociadas com a troika,
anunciou as medidas que não foram negociadas. Ao lado de Teixeira
dos Santos, Sócrates garantia: não haverá cortes nos salários da
função pública, nem no salário mínimo, nem despedimentos na
função pública ou por justa causa. A privatização da Caixa não
vai avançar, o SNS não deixará de ser público e a idade da
reforma não vai subir. No final do discurso ficámos sem saber,
afinal, o que tinha o memorando.
Passaram-se cinco
anos, o PEC perdeu o C, e o PS perdeu novamente as eleições. Mas
António Costa conseguiu alcandorar-se nos partidos da esquerda
radical para formar governo. Quando Mário Centeno apareceu hoje na
conferência de imprensa a anunciar as medidas do Programa de
Estabilidade e do Plano Nacional de Reformas (PNR), muitos com
memória tiveram uma sensação de déjà vu quando o ministro das
Finanças arranca o discurso dizendo: “Não há cortes salariais;
não há aumento dos impostos directos sobre os rendimentos do
trabalho e das empresas; não há aumentos do IVA e não há cortes
de pensões.” E mais à frente, não fôssemos nós pensar que o
documento haveria de ter mais alguma outra coisa escondida, Centeno
fez questão de esclarecer: “O conjunto de medidas não inclui
qualquer revisão da Lei de Bases da Segurança Social, nem inclui
qualquer alteração ao sistema de subsídios de desemprego.”
Mas afinal, e depois
de toda esta maçadora narrativa socrática, o que tem este
documento? Quer o Programa de Estabilidade quer o PNR representam um
reencontro (mais um) do Governo de António Costa com a realidade.
São documentos bem estruturados, assentes na realidade, sem
previsões fantasiosas e sem estimativas económicas disparatadas.
Basta olhar para as previsões de crescimento do PIB para 2017, que
passaram de uns imaginativos e espalhafatosos 3,1% para um valor bem
mais contido de 1,8%. Ninguém está à espera de que António Costa
consiga atingir as metas de crescimento e do défice a que se propõe,
até porque até hoje nenhum Governo infelizmente o conseguiu. Mas os
novos números que aparecem no Programa de Estabilidade conferem um
grau de credibilidade ao documento que permitirá chegar a Bruxelas e
não ser enxovalhado como aconteceu com o esboço do Orçamento para
2016. Se será suficiente para evitar que o Governo tenha de
apresentar um plano B, aí é outra conversa. Depois de o relatório
da Comissão Europeia desta semana ter criticado fortemente os planos
do Governo de aumentar o salário mínimo para 600 euros até ao
final da legislatura, o PNR só assume a subida actual para os 530
euros, precisamente para seguir esta linha de não afrontar Bruxelas.
Mas António Costa e
Mário Centeno vão mais além. Além de baixarem as previsões para
o crescimento da economia, revêem também em forte baixa as
previsões para o défice nominal que em 2017 passa de um objectivo
de 2,6% para uns ambiciosos e corajosos 1,4%. Como é que se consegue
a quadratura do círculo de ter menos crescimento e mesmo assim
baixar o défice em 1,4 mil milhões de euros? Uma parte é explicada
pelos 450 milhões que foram emprestados ao BPP, e que agora vão ser
devolvidos. Outra virá do congelamento das despesas do Estado. E
outra ainda virá das poupanças com a redução dos funcionários
públicos que, afinal, vai continuar até ao final da legislatura.
Isto chega para alcançar a meta do défice? Provavelmente não. E é
nesta parte que entra o plano B.
No entanto, ao
baixar consideravelmente o valor do défice para o próximo ano e ao
estabelecer metas que são ambiciosas para a descida do défice
estrutural, o Governo, inteligentemente, também não deixa nenhum
espaço para que Jerónimo de Sousa e Catarina Martins venham no
futuro fazer exigências em relação ao alívio da austeridade.
Mesmo que o documento não seja votado no Parlamento através de um
projecto de resolução, o Bloco e o PCP, ao não se oporem agora às
metas fixadas, como parecem não se opor, terão pouca ou nenhuma
moral para mais tarde exigirem medidas que sejam contraditórias com
os objectivos que agora apadrinham.
Também não é por
acaso que o PSD já veio dizer que abdica de levar o Programa de
Estabilidade à votação no Parlamento. Além de não querer que a
votação se transforme numa moção de confiança ao Governo, o que
consolidaria ainda mais a aliança à esquerda, os sociais-democratas
sabem que assim também estão a deixar ao Bloco e ao PCP uma porta
de saída aberta, caso as coisas comecem a correr mal ao Governo. Uma
coisa é dar um apoio tácito a um documento e outra bem diferente é
ter de o votar favoravelmente.
Resumindo, Costa
apresenta um documento equilibrado, sem grandes devaneios ideológicos
e ainda com algumas contas para ajustar com Bruxelas. Ultrapassada
esta fase, Costa tem todas as condições para uma governação
tranquila e sem grandes sobressaltos. Tal como nos discursos de
Sócrates e de Centeno, a geringonça já mostrou o que não tem e
agora chegou a altura de mostrar o que tem.
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