Pequena
história de como esta semana o mais antigo alfarrabista fechou
portas
ALEXANDRA LUCAS
COELHO 10/04/2016 – PÚBLICO
1. Enquanto os
offshores do Panamá batiam o recorde de buscas no Google, os bancos
suíços torciam para ninguém reparar que a Suíça existe, e João
Soares ainda não tinha cometido harakiri, um alfarrabista aberto em
Lisboa desde 1876 fechou portas. Aconteceu na segunda-feira, 4 de
Abril. Soube porque me mudei para o bairro há um ano, e aquelas
estantes tinham afinidades com o que me ocupava. De modo que fui
passando, até esta semana comprar os últimos livros lá. Era o mais
antigo alfarrabista do país.
2. Não sei o nome
do bairro. Nem Santa Catarina, nem São Bento, algo entre os dois. Em
geral, digo Poço dos Negros, mais rua, menos rua. Quando primeiro
conheci a zona, há décadas, comia-se na Pastelaria Nita, no
Cantinho da Paz, no Zapata, além de se dançar no Incógnito, para
dar exemplos do que se mantém, entre o que foi e veio. Neste meu
breve tempo de moradora, a cada mês deve ter inaugurado algo, além
das obras, dos andaimes, das casas para airbnb e para vender,
appartements-boutique, five stars properties, fotografadas do 28
sempre atulhado, por enquanto ainda alheio à cabidela de
sexta-feira.
3. Foi na rua Poço
dos Negros que uma família originária de Abrantes inaugurou a
Livraria Avellar Machado há 140 anos. Nome, espólio, morada nunca
mudaram, só a família. A Avellar comprou e vendeu livros, revistas,
gravuras, posters, e na primeira metade da sua história chegou a
publicar, sobretudo edições escolares, de Frei Luís de Sousa a
tabuadas de matemática. Aqui começou, como empregado, Augusto Sá
da Costa, antes de sair, já gerente, para fundar a sua
livraria-editora no Poço Novo. Era assim que se chamava o largo
pouco à frente, confluência da Poço dos Negros e da Poiais de São
Bento com a Calçada do Combro. Hoje chama-se largo António de Sousa
de Macedo, nome de um político literato do século XVII. Morou onde
agora está um daqueles projectos de apartamentos, lindamente
recuperado pelo arquitecto Manuel Aires Mateus. Ao mudar para o
bairro, entrei numa relação com essa obra, visto ela dominar as
ideias, em termos sónicos. E foi talvez impelida por uma britadeira
que certo dia me refugiei na Avellar Machado. A derradeira anfitriã
estava sentada à direita de quem entra. Saí de lá levando quinze
livros. Fácil contá-los, por serem uma colecção.
4. Outros houve. Mas
o auge foi num recente fim de tarde, ainda Inverno. Lendo em casa,
fiquei a saber de um pequeno catálogo, esquecido, remoto. Escrevi o
título no Google, na esperança de um excerto, e apareceu-me
referido no espólio da Avellar Machado. Confirmei por telefone,
incrédula, Elisa Figueiredo foi verificar. Sim, senhora, tinha o
catálogo, e como novo. Atravessei dois quarteirões de Inverno, já
escurecia. Lá estava ele, relevo de tipografa no papel, nunca antes
folheado. Elisa disse que com o desconto eram 11 euros. A única
existência que me aparecia na Net, ali à porta de casa.
5. Foi quando soube
do que ia acontecer à livraria. Elisa estava rodeada de caixas,
contou-me que iam mudar. A renda não era muito alta, menos de 300
euros, e terminando só daqui a mais de um ano. A questão é que o
senhorio tinha planos futuros, de acordo com os turistas, entretanto
não lhe convinham obras, a Avellar chegara a pensar fazê-las, mas
agora seriam tais que não era comportável, o espaço estava muito
degradado, os livros a estragarem-se, a venda online caíra com a
crise, e os turistas não compravam velharias em português, “quando
muito um poster, sendo barato”. A história da casa chegara a um
beco.
6. Orlando
Figueiredo, pai de Elisa, começou por ser um jovem paquete da
Bertrand do Chiado, nos anos 1940. Vivia na Amadora, vinha de
comboio, autodidacta compulsivo. Já gerente, ficou desempregado na
convulsão do PREC. Quem lhe deu a mão foi um ex-colega, António
Marques André, que fora trabalhar para o Brasil. André propôs a
Orlando uma parceria: voltando a Portugal, os dois tomariam conta da
Avellar Machado, onde o gerente ficara idoso. Assim foi, ordenaram os
milhares de livros empilhados, organizaram estantes por secções,
forraram as paredes com esferovite para isolar a humidade. E quando
tudo entrou em velocidade cruzeiro, André saiu para fundar a Lácio,
no Campo Grande, onde ficou até morrer, em 2014. “O meu pai acha
que ele só esteve aqui para o ajudar”, disse Elisa, quando agora a
visitei.
7. Estantes inteiras
já tinham entretanto ido para Massamá, onde a família mora. Elisa
mostra-me as placas de esferovite, velhas de 40 anos, com a parede a
desfazer-se por trás. Basta encostar a mão, caem pedaços, areia.
Quando ela tirou as estantes, saíram “centopeias, até ratinhos”.
A banda desenhada que ali estava, “de coleccionismo”, foi para o
lixo, tal a infiltração. Uns mil euros de prejuízo, calcula Elisa,
enquanto eu tomo notas ao lado de uma revista Civilização de Maio
de 1926. No armazém há azulejos oitocentistas, pilhas de revistas
francesas dos anos 1930, do Ultramar português. O canto mais
propenso a furtos é onde continuam a Física, a Química, a
Astronomia. Elisa afasta os volumes e mostra a areia em cada
prateleira. A parede está sempre a cair, não adianta muito aspirar.
Um clássico da Avellar era os clientes dizerem que lhes entrava
areia para os olhos.
8. Quanto mais perto
do livreiro, menos propenso a furto. As primeiras edições, por
exemplo, de Mário Cesariny, Luiz Pacheco, estavam atrás do balcão.
Elisa lembra-se de “umas folhas A4 com desenhos e textos”, que os
dois andavam a congeminar. Pacheco vinha muito “vender livros para
ter o que comer”. E fresco como era ainda chamou ao livreiro
“troca-tintas” numa cartinha. Ecuménico, Orlando Figueiredo
tanto conviveu com Luiz Pacheco como com Pacheco Pereira, e o arco
ideológico de clientes vem desde esquerdistas exilados na Argélia a
historiadores como Rui Ramos. O ex-ministro Rui Machete também
vinha, aliás continua perto, porque mora num casarão pouco adiante.
Foi o quarteirão mais policiado da Poço dos Negros durante o
governo da Troika.
9. Agora, um terço
do espólio da Avellar vai para doação, e, o restante, “uns 15
mil livros” para os anexos de Massamá, onde a família continuará
a vender online. Além de morar perto dos pais, Elisa é, das duas
filhas e sete netos, a única que segue o pai na livraria. Ele com
82, ela com 56, de bom grado voltariam à porta aberta com alguma
solução camarária, um espaço onde várias lojas “históricas”
se juntassem, rendas fora de mercado.
10. A casa de
Massamá já estava cheia de livros na infância de Elisa. Quando
algum colega da escola queria ler Júlio Verne, emprestavam. Um dia,
ela e a irmã descobriram um pacote em cima do guarda-vestidos dos
pais, e acharam que era presente: uma enciclopédia da vida sexual.
Elisa tinha dez anos, foi uma “tarde delirante”. De resto, o pai
sempre leu, conhecia o espólio de cor. Quando a filha veio para a
Avellar Machado, ele pô-la no armazém a limpar capas. Milhares de
livros depois, estava pronta.
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