OPINIÃO
A
moral dos offshores
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 12/04/2016 - PÚBLICO
Estão as elites
políticas e empresariais das sociedades democráticas mais próximas
dos interesses da sua própria população, ou estão mais próximas
dos interesses de outras elites, incluindo as de sociedades
autocráticas?
1. Nietzsche
desprezava as actividades económicas e empresariais. Via-as como
manifestação da mediocridade liberal-burguesa e da degenerescência
democrática, ambas indignas da elite superior dos übermensch ou
sobre-humanos. Ironicamente, o pensamento de Nietzsche sobre a moral
poderia ser muito útil aos actuais senhores do mundo. Também a
Mossack Fonseca — a empresa de serviços jurídicos e gestão de
fortunas com sede no Panamá, fundada por Jürgen Cossack e Ramón
Fonseca —, poderia justificar as suas actividades e a conduta dos
seus clientes face à pressão e condenação da opinião pública
democrática. No século XXI os übermensch não são as bestas
louras, nem os guerreiros bárbaros do passado, retratados por
Nietzsche. Não são, também, o homem novo do fascismo ou do
nazismo, inspirados na sua retórica grandiosa e violenta. Hoje são
os triunfadores da “vontade de poder” num mundo globalizado —
donos de grandes empresas multinacionais, políticos democráticos e
autocráticos, estrelas do desporto, da música ou do cinema.
Sentem-se, a si próprios, “para além do bem e do mal”, com
regras próprias — morais e jurídicas —, sem um problema de
consciência pois o mundo é deles.
2. Nietzsche explica
a origem e diferenças entre a moral de senhores e a moral de
escravos numa linguagem crua. A primeira, é intrinsecamente nobre,
apanágio de uma elite. A segunda, a da populaça em geral, deriva do
ressentimento dos fracos e dos falhados face à elite dominadora. “O
tipo aristocrático de homem sente-se a si próprio como determinador
dos valores, não necessita que o aprovem, opina que ‘o que
prejudica a mim, é prejudicial em si’, sabe que é só ele quem
confere honra às coisas, quem é criador de valores. Honra tudo o
que conhece em si: semelhante moral é autoglorificação […]
Diferente é o segundo tipo de moral, a moral de escravos.
Admitindo-se que os violentados, os oprimidos, os sofredores, os
servis, os inseguros e cansados de consigo mesmos moralizem: o que
haveria de comum nas suas apreciações morais? […] O olhar do
escravo é desfavorável às virtudes do poderoso, tem uma subtil
desconfiança contra tudo o que aquele honra como ‘bom’. […]
Inversamente, salientam-se e inundam-se de luz as qualidades que
servem para aliviar a vida dos que sofrem: aqui prestam-se honras à
compaixão, à mão obsequiosa e auxiliadora [...] Por toda a parte
onde prepondera a moral de escravo, a linguagem tem tendência a
aproximar as palavras ‘bom’ e ‘estúpido’. (Ver Friedrich
Nietzsche, Para Além de Bem e Mal, trad. port., Guimarães Editores,
8ª ed., 2004, p.186 e ss).
3. Um estudo
elaborado por James S. Henry para a Tax Justice Network, publicado em
2012 (Ver The Price of Offshore Revisited), denunciava a forma como
elite global estava a usar as zonas cinzentas da legislação fiscal,
nacional e internacional. O estudo calculava que entre 21 a 32
triliões de dólares estivessem colocados em offshores. É imoral?
Ofende a ideia de justiça? Para Nietzsche, provavelmente não seria.
Eis o seu possível argumentário. “Correndo o risco de desgostar
ouvidos inocentes eu afirmo: o egoísmo pertence à natureza da alma
aristocrática, ou seja, àquela fé inabalável segundo a qual a um
ser como ‘nós somos’, os outros seres têm por natureza de
sujeitar-se e sacrificar-se. A alma aristocrática aceita esse facto
do seu egoísmo sem qualquer ponto de interrogação e mesmo sem a
sensação de dureza, coacção, arbitrariedade, antes pelo contrário
como algo que possa estar fundamento na lei primordial das coisas: —
se procurasse um nome para tal diria que ‘é a própria justiça’”
(Nietzsche, idem, p. 198).
4. Grão-Ducado do
Luxemburgo, Principado do Mónaco, Principado do Liechtenstein,
Gibraltar, lhas de Jersey e Guernsey. Locais da nobreza do passado e
dos senhores do mundo do presente. Os offshores são contra a
democracia? Mas como — questionarão cinicamente —, se estão sob
a jurisdição de Estados democráticos e até atraem investimento
estrangeiro para o país? Não são os representantes do povo que
legislam? Não querem criar emprego e riqueza para a população? Tal
como é evidenciado em The Price of Offshore Revisited, há toda uma
indústria à volta dos offshores, largamente lucrativa, envolvendo
os grandes bancos internacionais, inúmeras empresas de serviços de
consultadoria legal e uma miríade de actividades de gestão. “Embora
existam milhões de empresas e milhares de bancos pouco capitalizadas
nesses paraísos fiscais, poucas pessoas ricas querem depender deles
para gerir e proteger sua riqueza” (p. 19). Em última análise os
seus detentores precisam de ter acesso aos benefícios dos mercados
desenvolvidos, tais como mercados regulamentados de valores
mobiliários, bancos garantidos por grandes populações de
contribuintes e companhias de seguros, legislação e serviços
legais sofisticados, etc. Onde se encontram estes? Não é no Panamá,
nas Bermudas, nas Ilhas Caimão ou em Antígua, mas nos EUA, Reino
Unido, Suíça, Holanda ou Alemanha, entre outros.
5. Quando pensamos
em tudo isto uma dúvida perturbadora vem à mente. Estão as elites
políticas e empresariais das sociedades democráticas mais próximas
dos interesses da sua própria população, ou estão mais próximas
dos interesses de outras elites, incluindo as de sociedades
autocráticas? A existência de uma duplicidade de códigos morais e
jurídicos não é um acaso. Sugere pontos de contacto e partilhas de
interesses entre ambas. A diferença fundamental é que nas
democracias isso isso não é aceite na moralidade política pública
— daí a atrapalhação do Primeiro-Ministro da Islândia e também
do britânico, face às recentes revelações sobre os offshores. Não
podem fazer, por exemplo, como Vladimir Putin na Rússia ou Ilham
Aliyev no Azerbeijão. Mas, em democracias, a discrepância da
moralidade pública face à prática política e empresarial pode ser
grande. Nenhum político democrático assume, abertamente, ser
seguidor dos princípios amorais de Maquiavel. Podem nem o ter lido.
Mas não faltam exemplos de que a prática política ande
perigosamente próxima. Os senhores do mundo podem também nunca ter
lido, ou ouvido, sequer, falar de Nietzsche. Mas sentem-se e actuam
como sobre-humanos saídos dos seus livros. Com regras morais e
jurídicas à medida do seu "bem" e "mal". O
resto é ressentimento das massas.
Post scriptum.
Alguns leitores mais entusiastas de Nietzsche — e há muitos no
mundo académico e fora dele — ficarão incrédulos. Este não é o
verdadeiro pensamento do seu filósofo. Mas saber qual é o
verdadeiro pensamento de Nietzsche é uma questão sem resposta —
ou melhor, com múltiplas respostas subjectivas e contraditórias:
“Contra o positivismo que se detém antes dos fenómenos dizendo
que ‘há apenas factos’, eu diria: não, são precisamente os
factos que não existem, apenas há interpretações… A vulgata
usual desta citação é “não há factos, apenas interpretações”.
(Ver The Portable Nietzsche, editado e traduzido por Walter Kaufmann,
Penguin, 1988, reimpressão, p. 458).
Investigador
Sem comentários:
Enviar um comentário