A
Europa dificilmente sobreviveria (sobreviverá) a Donald Trump
TERESA DE SOUSA
05/11/2016 – 07:50
Trump
promete pôr tudo em causa. Pode ser mais destrutivo do que as
guerras de George W. Bush. Se ganhar, "seria o Natal no
Kremlin", resume Hillary Clinton.
1. Se Trump ganhar.
Se Trump ganhasse. Se Trump ganhar. Se. A Europa vive há meses
paralisada perante a mais extraordinária das eleições
presidenciais desde que foi criada a comunidade transatlântica na
sequência da II Guerra. Os governos não mencionam o assunto,
justificando o seu silêncio com a velha prática de não interferir
nas escolhas dos outros. Mas também não sabem o que dizer. Sabem
apenas que esse cenário “impensável” pode alterar radicalmente
as regras do jogo da aliança transatlântica e as perspectivas da
própria economia global.
“Os mercados
preparam-se para um voto que faz o 'Brexit' parecer uma
insignificância”, escreve Gillian Tett no Financial Times. A
britânica Economist, que decidiu tomar posição a favor de Hillary,
lembra o que seria Trump na Casa Branca. “A sua experiência,
temperamento e carácter tornam-no horrendamente inapto para ser o
chefe de Estado de uma nação da qual o mundo democrático espera
liderança, o comandante-em-chefe das Forças Armadas mais poderosas
do mundo, e o indivíduo que controla a dissuasão nuclear
americana”. Seguem-se muitas outras razões mas, diz a revista,
estas chegam. Podemos acrescentar a sua oposição ao combate contra
as alterações climáticas ou a proliferação nuclear. É qualquer
coisa de novo.
“As eleições
deste ano provocaram uma reviravolta da política externa americana,
mais dramática do que qualquer outra de que nos lembremos”,
escrevem Molly O’Tool e Dan de Luce na Foreign Policy. Preferir
Obama a McCain, como aconteceu em 2008, situava-se dentro do vasto
terreno de cooperação entre os dois lados do Atlântico. O mesmo
entre Bush e John Kerry (2004), apesar do desastre das guerras do
anterior Presidente e das divisões que o “momento unipolar da
América” provocou entre os aliados europeus.
2. A Aliança
Atlântica já passou por muitas crises, já levou a cabo inúmeras
missões militares desde o fim da Guerra Fria, que venceu sem
disparar um tiro. Foi tentando, com razoável sucesso, adaptar-se às
mudanças internacionais que aconteceram nos últimos 25 anos. Já
foi dada como moribunda, mas depois renasceu das cinzas. Embora não
goste de o admitir, a Europa continua a preferir viver sob protecção
americana. “A NATO é e continua a ser o principal instrumento de
segurança e defesa da Europa”, resume Mogherini na sua proposta de
nova estratégia de segurança europeia. Qualquer reforço da sua
capacidade militar autónoma (como a ideia de criar um
Quartel-General em Bruxelas) não dispensa o poder militar americano
para lhe garantir a retaguarda.
E não há,
verdadeiramente, interesses fundamentais que não possam ser
partilhados. O Presidente Obama redescobriu a importância dos
aliados europeus com a crise na Síria e com a ofensiva russa na
Ucrânia. A sua preocupação estratégica com a China tem
fundamentos sólidos, mas não chegou a pôr em causa a importância
da Europa para a manutenção de uma ordem internacional favorável
às democracias. O mundo tornou-se mais hostil aos Estados Unidos. A
Aliança sobreviveu sempre.
3. Os governos
europeus aprenderam com o "Brexit" que os cálculos lhe
podem sair completamente errados. Não perceberam os sinais. Estão
pessimistas. Em contrapartida, Hillary Clinton é uma velha
conhecida. Os europeus precisam dela para lidar com a Rússia e
evitar as divisões europeias face a Putin. Mas também precisam
dela, embora não o admitam, para tentar evitar uma “descida aos
infernos”, que se arrisca e destruir um legado de 60 anos de
integração e de democracia.
Os Estados Unidos
foram uma poderosa força motora da integração europeia, porque não
queriam ter de voltar uma terceira vez ao velho continente para
salvá-lo de si próprio. Hoje, continuam a desempenhar esse papel
unificador. Com tantos problemas internacionais para resolver,
Clinton, se ganhar, não quer ficar com mais um. Dirá a Angela
Merkel e a Theresa May para se entenderem rapidamente sobre uma
solução qualquer que não signifique o risco de desagregação ou
uma ainda maior fraqueza política e militar da Europa. Resumiu a sua
visão da NATO numa frase: a aliança é “um dos melhores
investimentos que a América jamais fez”. Se Trump ganhasse, disse
ainda, “seria o Natal no Kremlin”.
Trump pode ser mais
destrutivo do que as guerras de Bush. O anterior Presidente dividiu
profundamente a Europa, provocando aquela que foi a maior crise da
relação transatlântica. Abriu feridas que pareciam incuráveis.
Pouco tempo depois, a Europa reconciliou-se com os Estados Unidos, a
NATO sobreviveu à fractura e desempenhou um papel relevante em Cabul
e em Bagdad.
4. Resta o “factor
Putin”. A Aliança Atlântica chegou a criar uma parceria com o
Kremlin (1997), incluindo um Conselho NATO-Rússia criado ainda no
tempo de Ieltsin. Mas a ideia (que Putin chegou a admitir) de
construir uma arquitectura de segurança europeia que prescindisse da
NATO (e dos Estados Unidos) e englobasse todos os países, incluindo
a Rússia, nunca teve qualquer ressonância na Europa Ocidental.
Em Maio de 2010,
numa cimeira em Lisboa, a Aliança Atlântica convidou o Presidente
(intercalar) Dmitri Medvedev para sanar o mal-entendido sobre a
questão da defesa antimíssil que os americanos queriam instalar na
Europa “por causa do Irão” e criar um ambiente propício a uma
coabitação pacífica. Obama e os seus aliados proclamaram o fim da
Guerra Fria. A então secretária de Estado americana, Hiullary
Clinton, já tinha anunciado o “reset” nas relações com
Moscovo.
Foi sol de muito
pouca dura. Putin regressou em 2012 para anunciar uma política
revisionista da ordem internacional, proclamando que tencionava
recuperar a zona de influência da antiga União Soviética. Os
aliados não tinham prestado a devida atenção aos efeitos da
invasão da Geórgia em 2008, embora tivessem prometido uma pausa no
alargamento da NATO, na última cimeira de Bush em Bucareste. Foi
preciso a crise ucraniana para tocar todos os alarmes. Berlim alinhou
com Washington na necessidade de levar a sério uma nova “ameaça”
à segurança europeia. As divisões quanto ao grau de reacção
ocidental foram silenciadas.
5. A NATO volta a
ser olhada pelos europeus como uma aliança essencial para garantir a
sua segurança. Nas duas últimas cimeiras (País de Gales e
Varsóvia), a Aliança voltou a tomar medidas para conter a ameaça
na sua fronteira Leste, reforçando a capacidade dissuasora. Admite
ter de rever de novo o seu conceito estratégico. Vê-se obrigada a
tomar decisões que, sem serem exageradas, tentam responder a cada
escalada de Moscovo, sem se deixar cair na retórica da Guerra Fria
que Putin ressuscitou. Não é fácil.
São múltiplas as
sensibilidades dentro da própria Aliança. O equilíbrio da resposta
tem de ser milimetricamente avaliado. O Conselho da NATO acaba de
aprovar um conjunto de medidas destinadas a tranquilizar os países
que estão sob a ameaça mais directa de Putin, especialmente os
Bálticos, funcionando como dissuasor de qualquer aventura. Ter
tropas da NATO e dos Estados Unidos nos Bálticos, na Polónia ou na
Roménia fará certamente Putin pensar duas vezes. “As novas
medidas defensivas serão um passo importante para reduzir as
oportunidades da Rússia para provocar instabilidade”, escreve Keir
Giles, da Chatham House. O número de soldados não é o mais
importante. A presença de tropas alemães ou britânicas e,
sobretudo, americanas nesses países “torna muito mais complicado
para a Rússia decidir uma qualquer operação militar contra eles,
sem envolver imediatamente o resto da NATO”. Os factos consumados
de Putin serão menos tentadores. A Aliança não quer voltar a ser
apanhada de surpresa, como aconteceu na Crimeia.
É neste quadro que
as eleições americanas chocam de frente com a nova realidade
europeia. Trump promete pôr tudo em causa. O que quer isto dizer?
Que as tropas americanas saem da Europa? Que a corrida ao armamento
nuclear regressa sob a forma de proliferação? Ninguém tem a
certeza de nada. Na eventualidade de vencer, o “melhor” dos
cenários seria uma América virada para dentro de si própria,
indiferente à sorte do mundo ou ao comércio internacional. Até ao
primeiro ataque terrorista. Até à derradeira provocação de Putin.
Até à completa fragmentação da União Europeia. Até…
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