Que
políticos querem os italianos?
JORGE ALMEIDA
FERNANDES 19/11/2016 – 07:56
Não
se sabe se haverá “efeito Trump” no referendo. Mas, na Itália,
o “não” significa um regresso ao “pântano”
Há uma figura
clássica nas artes marciais que consiste em desviar o ataque do
adversário e utilizar contra ele a sua própria força, recusando o
embate frontal e projectando-o. É o que o primeiro-ministro
italiano, Matteo Renzi, tenta fazer, perante as sondagens que
vaticinam a vitória do “não” no referendo constitucional de 4
de Dezembro, adoptando a sua antiga postura de político
anti-establishment.
O triunfo de Donald
Trump nas presidenciais americanas ameaça introduzir uma dinâmica
nova na política europeia, que jogaria contra Renzi. Se não é
legítimo fazer transposições mecânicas da nova paisagem americana
para a Europa — e se é muito cedo para o verificar — a maioria
dos analistas, europeus e americanos, tende a crer nessa influência,
prevendo um forte estímulo dos populismos.
Que fez Renzi?
Perante as sondagens e a euforia com que os seus adversários
populistas celebraram a vitória de Trump — como o advento de um
“populismo mundial” — mudou o estilo e os temas da campanha.
Passou a sintonizar o seu discurso com o sentimento
“anti-establishment”, começou a falar grosso a Bruxelas, ameaçou
vetar o orçamento europeu, acabando na abstenção, exigiu que a UE
obrigasse a Hungria e outros países respeitarem a sua quota de
refugiados, a anunciou que Roma não cumpriria o limite do défice
imposto por Bruxelas. E, sobretudo, lembrou que o verdadeiro campeão
da luta contra “a casta” é ele mesmo e a revisão constitucional
um seu instrumento.
Note-se que Renzi
nada tem a ver com Grillo. Não assume uma posição eurocéptica,
pelo contrário. Faz, sim, uma crítica às práticas da UE e da
Comissão Europeia, na sequência de posições antigas. Mas
tornou-se óbvio que o tom e os actos são determinados pelo
referendo.
Os referendos são
assim
Beppe Grillo, líder
do Movimento 5 Estrelas (M5S), denunciou estas medidas como um
“bluff” do primeiro-ministro que “reduziu a Itália a uma
colónia da Europa”. Uma sondagem do Corriere della Sera mostrou
que estas posições de Renzi são aprovadas por quase dois terços
(62%) dos italianos, entre os quais a larga maioria dos eleitores do
M5S e da Força Itália, de Silvio Berlusconi. Mas, para mal de
Renzi, esta aprovação não se reflecte nas sondagens.
Os institutos de
opinião pensam que, pelo contrário, a margem do “não” tende a
subir — de quatro para sete ou até dez pontos. Falam no desencanto
dos eleitores perante a falta de resultados económicos. “Há uma
clara aceleração do ‘não’ e o factor Trump parece ter
inclinado a balança entre os que estavam indecisos”, diz à
Reuters Roberto Weber, da agência Ixe. Renzi responde-lhes que vão
ter uma grande surpresa como com Trump.
No dia seguinte das
eleições americanas, o primeiro-ministro estava perante um problema
agudo. As sondagens, que em Abril davam uma larga vantagem ao “sim”,
passaram a ser inquietantes depois de Agosto. Uma a uma — dizem as
sondagens — as várias reformas até merecem a aprovação da
maioria da opinião pública.
O problema é que
cerca de metade do eleitorado diz não ter opinião sobre a
substância da revisão constitucional, que conhecem mal ou até
desconhecem, mas sabem perfeitamente como vão votar: contra Renzi e
o seu governo. É um risco clássico dos referendos.
Por outro lado,
quando estava no auge da popularidade, o primeiro-ministro
personalizou a consulta, declarando que se as reformas fossem
chumbadas iria para casa. Exprimia uma vontade de reforçar a sua
legitimação e de forçar a mão aos italianos, visto que não havia
nenhuma alternativa à sua liderança. Mas deu aos populistas de
Grillo e da extrema-direita, a Liga Norte, de Matteo Salvini — e
também à extrema-esquerda do Partido Democrático — uma
oportunidade indirecta e única de o afastarem.
Berlusconi tem tido
um papel discreto. Foi ele quem negociou com Renzi as bases gerais da
revisão. Depois rompeu os acordos mas, ao contrário dos deputados
do seu partido, tem sido prudente. Vota “não”. Mas declarou esta
semana que não encontra um “herdeiro político” para o seu
partido. Porque hoje “há um único líder na Itália: Renzi.”
O “rottamatore”
O principal efeito
que Renzi procura é o regresso à sua antiga imagem. Em Agosto de
2010, utilizou pela primeira vez a palavra “rottamazione”
(prensar um carro mandado para sucata) para exigir o afastamento da
velha nomenklatura do Partido Democrático (PD), incapaz de
compreender o presente, de vencer eleições e fazer reformas. Queria
romper “o crónico imobilismo do sistema italiano” e “sair do
pântano”. Conquistou o PD em Dezembro de 2013 e, logo a seguir, em
Fevereiro de 2014, assumiu a presidência do governo — sem ganhar
eleições.
“Renzi é o homem
dos tempos velozes. Dos factos velozes. De resto, aos italianos
agrada esta atitude. Não é por acaso que Renzi é o mais apreciado
dos líderes”, escreveu na altura o politólogo Ilvo Diamanti. A
partir do momento em que assumiu a chefia do governo, procurou vestir
o fato de “homem de estado”. Impôs uma maratona de reformas,
devidamente atrasadas pelo complexo “sistema italiano”. A sua
imagem mudou. Hoje, é olhado por muitos italianos como parte do
establishment. Ele responde que é o único verdadeiro adversário da
“casta”, que só pode ser afastada pela suas reformas. Argumenta:
os que votam “não” estão objectivamente a defender os
privilégios e as taras da “casta”.
Perguntou também na
altura da sua “tomada do poder” o jornalista Mario Calabresi,
actual director do La Repubblica: “Ele tem razão em não querer
ficar atolado no pântano. Resta saber se governar não é uma
maratona e se será possível chegar à meta à mesma velocidade com
que se correm os 100 metros.” Não foi. Profetizou também na
altura Hugh Dixon, analista da Reuters: “Se Renzi conseguir
realizar tudo isto [as reformas], será um herói. Se não o
conseguir, tornar-se-á claro que mais ninguém será capaz de
reformar a Itália.”
Ficam duas
incógnitas. Será possível a Renzi, em duas semanas, realizar a
manobra de derrubar a oposição populista fugindo ao choque frontal
e usando o peso dos seus temas? E, para lá do fantasma do trumpismo:
que tipo de líder político desejam os italianos — e, já agora,
os europeus?
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