Alojamento
local vs. arrendamento habitacional: perguntamos aos bairros.
POR O CORVO • 29
NOVEMBRO, 2016
O número de casas
de aluguer habitacional decresceu 75%, nos últimos três anos, em
Lisboa. O sector do turismo volta a pedir com urgência um segundo
aeroporto. O Governo tenta atalhar o problema com uma subida de
impostos aos alojamentos turísticos. E onde uns vêm possibilidades,
outros vêm uma perda importante na sua qualidade de vida. O Corvo
foi perguntar aos moradores, associações e empresas dos bairros
mais afectados (Alfama, Mouraria e Anjos) o que pensam sobre a
metamorfose turística que vive Lisboa.
Nesta terça-feira
(29 de novembro), terá lugar, na Reitoria da Universidade Nova de
Lisboa, a apresentação do estudo “Alojamento Local em Portugal –
Qual o fenómeno”. Desenvolvido pela Nova School of Business and
Economics e pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa,
a apresentação contará com a participação da Secretária de
Estado de Turismo, Ana Mendes Godinho, de Vítor Neves e Carlos
Santos, professores em ambas as faculdades respectivamente, e será
apresentada por Raúl Martins, presidente da Associação de
Hotelaria de Portugal.
Antes de se
conhecerem as conclusões do estudo – uma tentativa de fazer uma
análise académica da conflituosa convivência entre o alojamento
local e o arrendamento habitacional -, O Corvo quis saber qual a
opinião de diferentes agentes e figuras do tecido social da cidade
que desde há anos trabalham nos bairros, e por isso conhecem melhor
o problema. No centro do debate político estão os moradores, as
associações e as empresas das zonas mais afectadas pelas mudanças
vertiginosas que a zona central da capital tem vindo a sofrer.
“Há vários anos
que a perda das actividades económicas, o encerramento de serviços
públicos, a perda de transportes públicos e do comércio
tradicional fazem com que Alfama esteja a mudar, mas não para
melhor. Porque também está a perder população e não há política
de habitação para trazer gente nova ao bairro”, considera Maria
de Lurdes, uma das dirigentes da Associação do Património e
População de Alfama.
De facto, se, em
2011, Lisboa teve o seu primeiro aumento da população desde 1960
(período em que, dos 801.155 habitantes na década de 60, passou
para 489.562 em 2008, isto é, uma diminunição de cerca de 40% da
população), os números voltam a baixar pouco tempo depois. De
547.631 habitantes em 2011, desceu-se para 516.815 em 2014, segundo
dados do Anuário Estatístico do Instituto Nacional de Estatística.
Segundo a Associação
dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal
(APEMIP), o número de casas para aluguer de longa duração caiu em
30% nos últimos cinco anos, afectando sobretudo duas cidades: Porto
e, claro, Lisboa, que viram a sua oferta de aluguer de casas
habitacionais reduzida em 85 e 75%, respectivamente.
Para Maria de
Lurdes, o problema é evidente. “O alojamento local em demasia faz
mal a Alfama ou a qualquer bairro de Lisboa (…). Não se pode
recuperar um bairro só com o pensamento para o turismo”, afirma.
A mediadora
imobiliária Matriz Alfacinha, empresa com mais de 30 anos de
experiência na capital, oferece-nos um perfil narrativo da
problemática. Segundo a sua gerente, Ana Raimundo, a agência “desde
há muito que previa tempos difíceis para o arrendamento
habitacional”. “A procura foi, desde sempre, superior à oferta.
Existiram sempre pessoas que procuravam o arrendamento à aquisição,
e, por sua vez, os proprietários, ou porque a legislação não era
favorável ou porque o património se encontrava degradado, acabavam
por preferir manter os imóveis fechados. Com a facilidade em
recorrer-se ao crédito”, afirma Ana Raimundo, “as pessoas
acabavam por comprar casa na periferia, nos chamados dormitórios”.
Na verdade, são
muitos os que, tal como Maria de Lurdes e Ana Raimundo, assinalam
como evento decisivo para o mercado a mudança ocorrida na atitude
legislativa, que conseguiu inverter a tendência, após anos e anos
de decréscimo da população em Lisboa. Ainda que, naturalmente, a
conjectura internacional, sobretudo desde o ponto de vista económico,
tenha acompanhado o fluxo interno, empurrando Lisboa para a sua
actual situação.
“Eis que chega a
crise”, continua Maria de Lurdes, “e os bancos deixam de
emprestar dinheiro (…) e o arrendamento quase supera a tendência
da aquisição. A Lei do Arrendamento ficou mais favorável aos
proprietários”, ao passo que “as políticas penalizam todos
aqueles que mantêm as casas fechadas (…), eis o investimento
estrangeiro, os chineses (Vistos Gold), os franceses (benefícios
fiscais), os brasileiros…Destinos turísticos mais económicos,
tais como a Grécia e a Turquia, deixam de ser tão apelativos e
Lisboa fica na moda”.
A turistificação
acaba por abraçar, de forma recíproca, muitos outros espaços
profissionais e sociais que, há apenas alguns meses, permaneciam
bastante afastados da realidade do turismo. Os que não querem, não
podem ou não necessitam de embarcar nesta moda de possibilidades
caídas em cascata desde o sector turístico vêem, na realidade,
poucas vantagens na nova situação. “A população envelhecida
destes bairros”, continua Raimundo, “é convidada a sair a troco
de uma “bela proposta”. Alguns “resistem, mas depressa se
arrependem. O bairro já não é o mesmo, as pessoas são diferentes
todos os dias, falam uma língua que eles não entendem, há
barulhos, muito lixo”.
Em relação à
subida tributária sobre o alojamento local, aprovada recentemente
pelo Governo, e taxada entre 15 e os 35%, deixando o arrendamento
habitacional nos 28% – ambos aplicados sobre o total anual das
rendas obtidas -, Ana Raimundo pergunta “se esta medida será a
mais correcta”. “Muitos poderão optar pela evasão fiscal,
outros poderão vir a desistir do negócio. Os investidores poderão
procurar outros rumos, mas a oferta dos grandes grupos manter-se-á,
desde que continuem a haver turistas”, diz.
Outro dos bairros
cuja transformação – a que já se deu e a que está para vir –
está a dar muito que falar é o multicultural bairro da Mouraria. A
Associação Renovar a Mouraria (ARM) tem, contudo, uma visão
positiva sobre o que está a acontecer no bairro, e também na
cidade. Inês Andrade, cofundadora e responsável do departamento de
cultura e comunicação da ARM, assegura ao Corvo que, inicialmente,
o “processo de reabilitação integrado vivido pelo bairro da
Mouraria, que contemplou diferentes níveis de reabilitação e
intervenção social e cultural, permitiu a melhoria das condições
de vida dos moradores e trabalhadores, tendo sido criadas dinâmicas
que estimularam a criação de emprego e de novos negócios”.
Apesar de Inês
Andrade reconhecer que, “neste momento, vivemos o perigo da
especulação imobiliária, com o despejo de muitas famílias e um
brutal aumento das rendas”, visto pela ARM com “grande
preocupação”, também diz ter fé no “bom senso e no sentido de
responsabilidade por parte das entidades responsáveis, para que
sejam tomadas medidas urgentes”. Neste sentido, Andrade afirma que
“é necessário que sejam definidas quotas para os diferentes tipos
de alojamento”. “Seria também importante que existissem
benefícios para os proprietários que optassem pelo alojamento
permanente, para estimular esta opção”, opina.
De facto, apenas um
ano após a fundação da ARM, em 2008, a Câmara Municipal de Lisboa
promovia o Programa de Acção da Mouraria, que em três anos
implicaria um investimento de 7,5 milhões de euros para “operações
de valorização dos aspectos positivos do território,
designadamente, os seus patrimónios material e imaterial, a sua
diversidade económica, social e cultural”.
No entanto, há
poucos meses, o presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria
Maior, Miguel Coelho (PS), afirmava que “aquilo que está a
acontecer no Bairro Alto e no Cais do Sodré também começa a
acontecer em Alfama e na Mouraria”, e concluía que a sua freguesia
“está a perder população a um ritmo acelerado”.
Na mesma linha de
pensamento de Inês Andrade, expressa-se José Carvalho, presidente
da direcção da Associação Recreativa Taberna das Almas, que
desenvolve actividades culturais e artísticas e de valorização
urbana, a partir da sua sede no coração de Anjos. Segundo ele,
“toda esta zona, que era bastante degradada e envelhecida, tem
beneficiado desse mesmo boom e está hoje com a cara lavada, embora
com algumas olheiras”.
“Há sempre quem
se queixe”, continua Carvalho, “mas o que está em causa são
comodidades que, se uma cidade ou país aposta nesta indústria
turística, tem de se preparar para novidades. Friso o bom senso para
crescer sustentadamente e (Lisboa) não se tornar uma Veneza, em que
os turistas se vêm ver uns aos outros e comer hamburgueres”.
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