Outra
vez sozinhos, frente ao mar
MANUEL CARVALHO
16/11/2016 – 07:06
Por
uns breves dias deixámos de prestar atenção à mercearia onde se
compra e vende a pobre política nacional e fomos obrigados a olhar
para fora e a descobrir como o mundo que conhecemos ameaça ruir.
E como nesse
movimento cada vez mais nítido e inexorável o país aparece frágil
e desarmado para poder resistir a um cenário em que a União
Europeia se dissolve e o mundo livre se corrompe na demagogia e no
populismo. Num artigo notável escrito para o PÚBLICO, Jorge Sampaio
avisava que “atravessamos um momento especialmente crítico para o
nosso futuro colectivo” e nesse momento até a trapalhada da Caixa
Geral de Depósitos parece um episódio fútil e o magnífico
desempenho da economia portuguesa no terceiro trimestre uma notícia
desgarrada e sem direito a festa. Porque a realidade destes dias, e
seguramente a dos próximos meses (anos), é a de saber o que pode
fazer um país pequeno, periférico e endividado na tormenta que se
desenha. Como escreveu o ministro Augusto Santos Silva num outro
texto notável, “não se trata de ser pessimista, mas de ser
realista, admitindo, no sombrio tempo actual, todas as
possibilidades”.
Durante séculos
vivemos como país voltados para o Ultramar, e o fim desse ciclo
longo não foi traumático (pelo contrário, como notou Eduardo
Lourenço no seu Labirinto da Saudade, virámos a página com uma
espantosa naturalidade) porque inventámos um novo destino europeu.
Talvez tenhamos vivido neste quadro alguns dos melhores anos da nossa
História, pelo menos os que foram de 1986 até 1990, em que houve
estabilidade, modernidade, crescimento e quase pleno emprego. Mas
esse ciclo começou a abalar com o "Brexit". Porque se há
um novo Portugal europeu, jamais deixou de existir um Portugal
Atlântico, no qual a velha aliança e as ligações históricas aos
britânicos não perderam sentido. O "Brexit" foi a
amputação do membro europeu no qual sempre nos amparámos, apesar
dos abusos de Beresford nas Guerras Peninsulares, apesar do Ultimato
de 1891, apesar da menoridade com que Londres tantas vezes nos
tratou. Sem a sua feição atlântica, a Europa está condenada a
tornar-se ainda mais Mitteleuropa, ainda mais alemã. Ou seja, mais
distante e inalcançável.
Poderíamos viver
bem na Europa sem os ingleses, fazendo com a Espanha, os países do
Sul e com a França uma espécie de frente capaz de reequilibrar a
União em direcção ao seu flanco mais frágil. Mas também esta
Europa nos parece cada vez mais vazia, sem sentido e sem projecto. A
crise das dívidas soberanas criou um directório no qual os mais
fortes impõem as regras e os mais fracos obedecem. O "Brexit",
os refugiados, a anomia económica, as dívidas, a crise bancária e,
principalmente, o regresso do nacionalismo xenófobo e populista
aumentaram a tensão sobre um projecto cada vez mais trémulo. Não
há como o negar: depois de admitir a sua mortalidade, a Europa
colocou-se na condição de ser mortal.
Optimistas como
somos, era possível olhar para o mapa e encontrar outros lugares
para firmar âncoras e estabelecer laços. O espaço da lusofonia,
por exemplo. Ou, ainda melhor, os Estados Unidos. Mas nem aí parece
haver lugar para grandes expectativas. Angola não muda de regime nem
lança as bases de uma economia aberta. Moçambique, apesar do gás e
das minas, derrapa no peso do seu próprio atraso. E nos Estados
Unidos parece ter acabado de vez o espírito wilsoniano da abertura
ao mundo e de compromisso com a expansão da democracia e do
capitalismo liberal. Donald Trump rompeu o elo que, com todos os
defeitos e problemas, dava unidade e coerência ao Ocidente que
conhecemos. A tentação da extrema-direita republicana fará o mundo
viajar até ao tempo das incertezas, convulsões e crises.
Portugal arrisca-se
assim a ficar só no mundo, afogado nas suas debilidades e
hesitações. Vai sendo tempo de pensar no que aí pode vir. Como
escreveu Jorge Sampaio, “a alteração dos equilíbrios
geopolíticos exigirá reflexão aprofundada do nosso lado,
realinhamentos e reposicionamentos diplomáticos de política externa
que convém prepararmos atempadamente”. Sem podermos contar com o
altruísmo da geração que fundou a Europa contemporânea, a hora é
de contarmos ainda mais connosco. Com os nossos serviços públicos,
com os nossos recursos, com as nossas empresas e com as nossas
instituições democráticas.
Olhando para o
passado, podemos notar que é na política que se encontram os
melhores trunfos para se resistir à turbulência. Na vaga da
extrema-direita que varreu a Europa dos anos 30, as democracias que
resistiram foram as que melhor souberam abraçar compromissos entre
as suas principais forças políticas – caso especial da Inglaterra
ou dos países nórdicos. Portugal tem a felicidade de ter uma
extrema-direita irrisória e confinada a um bando de arruaceiros,
embora haja por aí muito bafio saudosista escondido nos armários.
Depois, se há um prodígio que se possa atribuir a este Governo do
PS é o de ter trazido o Bloco e o PCP para a esfera dos acordos
políticos. Claro que, no discurso, ambos combaterão a “submissão
ao euro”, a ligação à NATO, o poder do sistema financeiro ou o
liberalismo económico. Claro que ainda há quem, como Francisco
Louçã, acredite que “à União só resta agora o ‘reforço de
uma aliança alemã’, com o desvanecimento de Hollande e Renzi e
com o 'Brexit', e é por isso que está condenada”. Mas, no
essencial, hoje o Bloco e o PCP são partidos muito mais confiáveis
do que alguma vez foram nas últimas décadas.
Ainda assim, falta
ainda uma aproximação entre os dois principais partidos do regime.
Quando Augusto Santos Silva nota que uma das raízes do alastramento
das ameaças na Europa e da “trumpização” da América está na
“incapacidade de valorizar as alternativas ao centro”, não
significa que esteja a tentar seduzir o PSD para uma coligação.
Quer apenas dizer que os partidos que partilham entre si a mesma
herança europeia, o mesmo legado de valores do Estado democrático e
da protecção social, não se podem digladiar por causa de vírgulas
quando em causa está todo um texto que ambos partilham.
O que vem aí, já
há poucas margens para duvidar, é pior do que está e muito pior do
que esteve. Pode ser que Matteo Renzi ganhe o referendo italiano,
pode ser que Marine Le Pen seja copiosamente derrotada nas
presidenciais francesas. Mas o vírus do nacionalismo xenófobo e
demagógico está à solta e nada indica que haja antídoto para o
travar a curto prazo. O que hoje se escreve nas redes sociais com
toda a naturalidade seria impensável há apenas dois ou três anos,
e essa “banalização do mal” é já por si um sintoma de que o
vírus se entranhou no corpo social e que anda por aí à espreita da
primeira oportunidade para causar uma epidemia. Um sistema partidário
unido no essencial para lhe fazer frente é a esperança que nos
resta. Teremos líderes partidários à altura dessa esperança?
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