Assunção
Cristas e o radicalismo do amor
Claro
está que proclamar o “radicalismo do amor” é enunciar um
princípio, e não propor um modelo de organização social, mas,
ainda assim, é um princípio demasiado lá de casa.
24 de Novembro de
2016, 7:06
Qualquer católico
conhece de cor e salteado a expressão “radicalismo do amor”, mas
não me lembro de alguma vez algum político a ter utilizado no
espaço público. Não será por acaso. Só que Assunção Cristas,
com a autoconfiança que todos lhe reconhecem, esteve-se nas tintas
para isso e assinou no PÚBLICO um artigo intitulado Ao radicalismo
dos populismos responder com o radicalismo do amor. Segundo Assunção,
devemos combater o avanço do discurso populista com o “discurso
radical do amor”, que “não apenas tolera ou respeita cada um na
nossa sociedade, ama-o na sua integralidade e plenitude, mesmo se não
compreende, e procura encontrar a concórdia”.
Este pedaço de
texto poderia ser retirado de uma homilia, e há nele muita coisa com
a qual simpatizo: a crítica a Trump e aos populismos, a afirmação
pública de fé, a recuperação da matriz democrata-cristã do CDS.
E, no entanto, é preciso ter imenso cuidado com a importação do
discurso religioso para o espaço público, sobretudo quando essa
importação é feita de forma tão cândida. É bom que a Igreja não
esteja fora do mundo; mas é ainda melhor que um cristão não
confunda o mundo com a Igreja. O “radicalismo do amor” pode até
ser um projecto espiritual altamente meritório a nível individual,
mas ele não é um projecto político que a líder de um partido
possa apresentar a toda a sociedade. Isso nada tem a ver com
incoerência ou falta de coragem em proclamar as convicções
religiosas de cada um – tem a ver com a distinção, demasiado
preciosa para ser desvalorizada, entre o plano político e o plano
religioso. Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
Assunção Cristas
poderá argumentar que a doutrina social da Igreja, sem dúvida a
maior razão de orgulho do Vaticano ao longo dos últimos 125 anos,
acaba por de alguma forma meter Deus nos assuntos de César. A
encíclica Rerum Novarum (1890), ao propor um caminho intermédio
entre o socialismo totalitário e o capitalismo selvagem, exigindo
tanto a defesa dos mais pobres com a protecção da propriedade
particular, continua a ser um documento de extraordinária
actualidade, e foi em cima dessa doutrina que o melhor da
social-democracia europeia construiu uma época única de
prosperidade para os seus cidadãos, após a Segunda Guerra Mundial.
Mas o Compêndio da Doutrina Social da Igreja é muito claro: a
missão da Igreja não é de ordem política, económica e social,
mas sim religiosa, o que significa que nem ela, nem a sua doutrina
social, “entra em questões técnicas”, “nem propõe sistemas
ou modelos de organização social”.
Claro está que
proclamar o “radicalismo do amor” é enunciar um princípio, e
não propor um modelo de organização social, mas, ainda assim, é
um princípio demasiado lá de casa – uma meta ambicionada mas
inatingível neste mundo, razão pela qual “amar radicalmente o
próximo” não vai com certeza ser o primeiro ponto do futuro
programa eleitoral do CDS. Como disse atrás, eu simpatizo com a
recuperação da matriz democrata-cristã do CDS, porque entendo que
isso traz variedade ao nosso sistema político, e porque a velha
profecia de Malraux me parece cada vez mais actual: é preciso
“reintegrar os deuses”, porque “o século XXI será espiritual
ou não será”. Mas convém que Assunção não se entusiasme
excessivamente, acabando por confundir política e pregação. A
política, sendo a arte do compromisso, dá-se mal com quaisquer
radicalismos. Mesmo que sejam os do amor.
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