O
fim da globalização neoliberal?
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 16/11/2016 – 16:24
A
era da globalização neoliberal pode estar a chegar ao fim, mas de
uma forma e com protagonistas que poucos imaginariam ser possíveis.
1. A ascensão de
Margaret Thatcher ao poder no Reino Unido (1979) e de Ronald Reagan
nos EUA (1981) inaugurou uma era de larga prevalência das ideias
Hayek e Friedman aplicadas à economia e ao comércio internacional.
Estas impregnaram o sistema de comercial internacional da Organização
Mundial do Comércio (OMC), a actuação do Fundo Monetário
Internacional (FMI), bem como as formas de governo da maioria dos
Estados, que a gosto, ou contragosto, se tiveram de adaptar a elas.
São o substrato ideológico da actual globalização, onde, em nome
de um crescente bem-estar — definido fundamentalmente segundo
critérios económicos —, o económico prevalece sobre o político
e os mercados condicionam a escolha eleitoral democrática. Na lógica
neoliberal, o bom governo orienta a sua acção fundamentalmente para
os mercados, para os investidores e para a competitividade da
economia. Segundo afirmam as teses neoliberais, daí resultará o
aumento generalizado do bem-estar da população. Essa será mesmo a
única boa governação possível. Fora disso “não há
alternativa” como sugere o slogan There Is No Alternative (TINA),
dos tempos de Margaret Thatcher.
2. Friedrich Hayek e
Milton Friedman são as referências intelectuais incontornáveis do
neoliberalismo. Nas faculdades de Economia e na Gestão, mesmo quando
os alunos e professores não os lêem directamente, as suas ideias —
divulgadas por uma miríade de interpostos autores —,
transformaram-nos em pensamento dominante. Nos anos 1980 começaram
por ser uma reacção compreensível aos excessos da economia
pública, da planificação, da falta de estímulo para a iniciativa
privada e investimento empresarial, da estagnação e declínio. A
retirada do Estado da economia e da sociedade, a desregulação, as
privatizações, a iniciativa privada, o poder dos mercados, o
empreendedorismo, a inovação, eram as novas ideias força. A partir
dos anos 1990 as ideias neoliberais tornaram-se hegemónicas e
começaram a sentir-se os seus excessos: invadiram a generalidade das
esferas da vida humana. Sob o seu impulso, a
competição/competitividade tornou-se o fim principal do Estado, da
economia nacional, da sociedade e do indivíduo. A tal ponto que a
geração do milénio nunca conheceu uma economia e sociedade
impregnada de outros valores e só por exercício de imaginação, ou
pela leitura dos manuais de história, consegue ver como poderia ser.
3. Com a crise
financeira de 2007/2008 pensou-se, no início, que o neoliberalismo
seria afastado a favor de um papel mais interventivo dos governos na
economia. Seria o regresso às ideias de John Maynard Keynes,
largamente dominantes até aos anos 1970. Na realidade, aconteceu o
contrário. Uma das grandes ironias da história recente foi a hábil
transformação de uma crise originada por um capitalismo financeiro
desregulado, numa crise de excesso de Estado na economia e sociedade.
Mesmo tendo em conta que os Estados têm a sua quota de
responsabilidade na crise, foram a falência do Lehman Brothers, os
excessos do sistema financeiro de Wall Street e as suas ramificações
globais, os principais responsáveis. Houve um falhanço estrondoso
dos mercados em se auto-regularem, em serem éticos nas suas práticas
e fornecerem bem-estar generalizado à população. Mas foram os
Estados e as populações que pagaram a principal factura dos
excessos de capitalismo neoliberal na economia nacional e global.
Pouco tempo depois, os grandes bancos de investimento e os mercados
financeiros voltavam ao business as usual. Nos EUA, a aparentemente
rápida recuperação da economia e do emprego escondem realidades
muito duras. Muitos dos novos empregos são precários e/ou em
condições salariais piores que as anteriores à crise. Outros
deixam os trabalhadores no limiar de uma vida digna. Tudo isto
conjugado com o efeito de ruptura das novas tecnologias, as quais,
pelo seu glamour, levam a ignorar os efeitos negativos no emprego que
podem gerar em milhões de vidas normais.
4. Nos Estados do
chamado rust belt (“cinturão de ferrugem”) — o Midwest dos
EUA, próximo dos grandes lagos e do Canadá, onde se localizam a
Pensilvânia, o Ohio, o Michigan, etc. —, o neoliberalismo e a
globalização têm poucos adeptos. Estava aí a principal base de
apoio de Bernie Sanders, o maior rival de Hillary Clinton no Partido
Democrata. Donald Trump conseguiu captá-los, Hillary Clinton não.
Estas regiões em declínio industrial, outrora parte do núcleo
central da economia americana e zonas ricas e prósperas, estão há
várias décadas em decadência. A maior parte da sua população
desceu na escala económica e social e/ou caiu na pobreza. O caso da
cidade de Detroit, no Michigan — o cerne histórico da indústria
automóvel nos EUA —, é provavelmente o mais óbvio. A população
da cidade regrediu de 1,8 milhões de habitantes em 1950, para cerca
de 700.000 na actualidade. A produção automóvel encerrou
totalmente ou foi deslocalizada. Vastas áreas da cidade estão num
estado de degradação urbana que faz lembrar um cenário de guerra.
A criminalidade é das mais elevadas dos EUA. Na costa Oeste na
Califórnia, especialmente nas indústrias high tech de Silicon
Valley, e na costa Leste, em Nova Iorque, em particular em Wall
Street, a globalização gerou imensa riqueza. Aí localizam-se os
seus maiores adeptos e ganhadores. No rust belt gerou pobreza,
exclusão social e a descida aos infernos.
5. Paradoxalmente,
nas eleições dos EUA, em termos de programa económico, o candidato
mais próximo das teses internacionalistas neoliberais não foi
Donald Trump mas Hillary Clinton. No plano de Trump com 7 pontos para
reconstruir a economia da América, podia ler-se o seguinte: (i)
retirar-se da Trans-Pacific Partnership (TPP), ainda não ratificada;
(ii) nomear um negociador duro e inteligente para lutar em nome dos
trabalhadores americanos; (iii) instruir o Secretário do Comércio
para identificar violações de acordos de comércio que um país
estrangeiro possa estar a usar para prejudicar os nossos
trabalhadores […]; (iv) dizer aos nossos parceiros da NAFTA que
tencionamos renegociar imediatamente os termos desse acordo para
obter condições mais favoráveis para os nossos trabalhadores. Se
não concordarem com a renegociação, serão informados que os EUA
tencionam retirar-se do acordo […]. (v) Instruir o Secretário do
Tesouro para qualificar a China como manipulador cambial; (vi)
Instruir o Representante para o Comércio dos EUA [a agência federal
responsável pelo comércio] para instaurar casos contra a China,
quer na OMC, quer internamente. (vii) Usar todos os poderes legais
presidenciais para resolver as disputas com a China, se esta não
parar com as suas actividades ilegais, incluindo o roubo de segredos
comerciais americanos […]”. Se Trump puser mesmo em prática
estas promessas, as ideias de Hayek e Friedman aplicadas ao comércio
livre, que entroncam no pensamento económico clássico de Adam Smith
e David Ricardo, podem acabar por ir parar ao caixote do lixo. Será
uma ruptura com a tradição neoliberal do Partido Republicano,
enraizada desde Reagan nos anos 1980. Em seu lugar surgirá alguma
forma de proteccionismo ou de nacionalismo económico. Pelo impacto
dos EUA na economia mundial, poderá ser o princípio do fim da
globalização neoliberal. E com um populismo de direita a
abandoná-la, não a esquerda social-democrata / trabalhista /
socialista.
6. São bem
conhecidas as críticas de activistas dos direitos humanos, dos
direitos dos trabalhadores, do ambiente (Human Rights Watch,
International Labor Rights Forum, Greenpeace, etc.) à globalização
baseada nos princípios neoliberais dos mercados abertos e do livre
comércio internacional. Muitas das suas críticas são dirigidas à
deslocalização das empresas e aos abusos das empresas
multinacionais, que exploram, a seu favor as vantagens de custos
laborais mais baixos e da quase ausência de protecção ao trabalho,
em muitos dos países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo deixam, nos
países mais desenvolvidos, um rasto de desemprego e de pressão para
redução de salários. Na óptica de muitos trabalhadores
norte-americanos, tradicionalmente próximos do Partido Democrata, as
medidas do programa económico de Donald Trump têm uma ressonância
similar à dessas críticas. Ao contrário desses movimentos que
nunca conseguiram influenciar o Partido Democrata, nem os seus
governos, ao ponto de romper, ou sequer de renegociar acordos de
livre-comércio. Trump mostrou-se determinado fazê-lo durante a
campanha. (Vamos ver se o fará mesmo no poder). Quanto a Hillary
Clinton, pareceu mais preocupada com as políticas de identidade de
afro-americanos, latinos, muçulmanos, mulheres, gays, etc. do que
com os direitos dos trabalhadores e as questões da economia. O seu
programa pouco respondia às procurações da classe média e
média-baixa menos qualificada, aquilo a que classicamente se chamava
a classe trabalhadora, ou proletariado na linguagem marxista. O
resultado, tal como temos visto também na Europa, é que este
eleitorado sociologicamente de esquerda passou a votar na direita
populista e nacionalista.
7. A suprema ironia
da metamorfose política em curso é ser um milionário capitalista
quem pretende romper com acordos de livre-comércio, invocando o
interesse dos trabalhadores. Fá-lo, claro, porque o seu próprio
interesse empresarial converge, nesse aspecto, com o de milhões de
trabalhadores do seu país — os seus negócios de imobiliário,
hotéis, casinos, etc., estão centrados no mercado interno dos EUA,
não nos mercados internacionais. (O mesmo ocorre com a New Balance
que tem parte da produção ainda no Massachusetts e no Maine e
apoiou Trump por este não tencionar ratificar a TPP; quanto à rival
Nike, apoiou Obama na negociação da TTP dado o seu modelo de
produção já estar totalmente deslocalizado para a Ásia, lucrando,
ainda mais, com o acordo.) Em qualquer caso, a ruptura com o
internacionalismo neoliberal vem da direita populista e nacionalista
— com um programa de oposição aos acordos de livre-comércio —,
e não da esquerda social-democrata / trabalhista / socialista, como
seria ideologicamente mais expectável. Esta enfraqueceu-se a si
própria como movimento de massas e deixou de atrair a classe
trabalhadora. O vazio foi preenchido pelo populismo. Dois erros são
fatais. O mais óbvio foi a adesão, ainda que parcial e mitigada, às
teses do neoliberalismo. O menos óbvio, mas não menos fatal, foi
ter passado a tribalizar-se em facções de ambientalistas,
feministas, defensores dos direitos das minorias, etc. Ao promover a
diversidade cultural atomizou a sociedade e foi, ela própria, vítima
dessa lógica fragmentadora. Em seu lugar emergiu a direita populista
como força de massas. Prospera na insegurança cultural e
apropriou-se de causas como o descontentamento contra a globalização.
Com Trump na presidência dos EUA está, pela primeira vez, em
posição de a reverter. A era da globalização neoliberal pode
estar a chegar ao fim, mas de uma forma e com protagonistas que
poucos imaginariam ser possíveis.
Investigador
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