sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Requiem



Requiem
18 DE NOVEMBRO DE 2016
Fernanda Câncio

Hoje é o último dia em que o DN está no DN. É um dia de luto: nunca mais aqui, neste lugar desenhado nos anos 30 do século XX para albergar um jornal, viverá um jornal. Ficará a fachada, o letreiro que à noite se ilumina, o mural de Almada Negreiros e, espero, a porta giratória para a Avenida da Liberdade. Salvar-se-á isso, o que se vê de fora. Faltará a alma.

Entrei aqui pela primeira vez nos anos 1990, quando iniciei a colaboração com o jornal. Espantei-me e condoí-me por muito do interior ter sido destruído, numa "modernização" desastrada e saloia tão típica de uma certa época (e até hoje, hélas). Mas encantei-me na nostalgia romântica deste palácio do jornalismo, o único que conheci, o único em Portugal e um dos únicos no mundo com esta beleza. E foi com o orgulho excitado de entrar numa linhagem centenária que, em 2004, passei da Notícias Magazine para esta redação.

O DN é o primeiro diário da minha vida; será provavelmente o último. As coisas não estão fáceis para os jornais nem para os jornalistas, e não vão ficar mais fáceis. Desculpem não ser otimista, e não deixar de ler neste abandono, neste exílio, o golpe simbólico que ele é. Sim, bem sei que não há dinheiro e o edifício vale muito. Mas quando em 2007/2008 uma anterior administração quis vendê-lo deparou-se com a épica fúria de um levantamento geral. Não foi precisa uma década para que a indignação e a resistência se calassem, que nenhum protesto se ouvisse, da câmara, do ministério da Cultura, do governo, daquilo a que se chama a intelectualidade - e de nós, jornalistas. Bastaram tão poucos anos, tão pouco, para fazer de todos "realistas", obcecados por contas rápidas de calculadora. Para nos derrotarmos antes de lutar.

Foi nesses mesmos anos, porém, que a tendência geral de exílio dos jornais para as periferias sofreu uma inversão. Uma pesquisa no Google permite perceber que vários estão a voltar ao centro - à cidade. Por várias razões. Na era digital e das redações pequenas, é necessário menos espaço. E os custos, quer financeiros (em deslocações e tempo perdido) quer práticos e simbólicos de ter um jornal exilado foram-se evidenciando. Longe dos locais de decisão, exigindo que os jornalistas, malgrado cada vez mais proletarizados, usem carro próprio (distanciando-se da rua), que se encerrem numa cápsula, que não possam sequer, para uma sanduíche ou um café, respirar o ar da cidade, sentir-se parte dela. Que jornalismo se faz assim, longe das pessoas? Que jornalistas se fazem assim? A resposta está no regresso.

Mas Portugal, é sabido, vai atrás sempre atrasado. Quando Lisboa redescobre o valor do seu centro - e por isso mesmo, porque de repente tudo o que é no centro vale mais - e os jornais do mundo voltam ao lugar onde foram felizes (mesmo que seja para morrer, e talvez por isso mesmo), o DN sai.


Disse, no início, que connosco sai a alma. Mas não sei. Talvez a deixemos aqui. Ou em lado nenhum.

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