“Terramotourism”.
Lisboa está “no olho do furacão” de um “sismo turístico”
23/11/2016,
OBSERVADOR
http://observador.pt/2016/11/23/terramotourism-lisboa-esta-no-olho-do-furacao-de-um-sismo-turistico/
Um
grupo de ativistas urbanos lançou um documentário sobre as
transformações que o turismo trouxe a Lisboa. Em entrevista,
assumem que querem provocar debate e mudanças na atitude dos
cidadãos.
Estamos na Outra
Banda, a olhar para a silhueta de Lisboa. Vê-se a estátua de D.
José no meio da Praça do Comércio, que daqui parece pequena. Ao
lado o Torreão Nascente, a rematar o grande edifício amarelo do
Ministério das Finanças. Pouco mais acima, as torres da Sé; no
topo da colina, as muralhas do castelo; além o Mosteiro de São
Vicente de Fora e o casario de Alfama espalhado até ao rio.
De repente, o
inesperado. Um vulto branco surge do lado direito a cruzar o Tejo.
Primeiro a proa, depois o resto: pelo menos nove andares de pequenos
varandins, salas de comandos, torres de comunicações, chaminés. O
mosteiro desaparece da paisagem, a Sé também, rapidamente já não
se vê cidade. A mensagem evidente é reforçada, pouco depois,
quando aparece o título. Terramotourism é um documentário
abertamente crítico das mudanças por que Lisboa está a passar
devido à explosão do turismo. Não é um filme contra turistas,
esclarecem os autores, mas que quer que os lisboetas “recuperem a
capacidade de intervenção sobre a sua própria cidade”.
Sem narração e sem
entrevistas, Terramotourism é um conjunto de imagens
propositadamente amadoras sobre muito do que se vê na capital por
estes dias. Os elétricos cheios, dezenas de tuk tuks, grupos
organizados de turistas, prédios em obras, segways, autocarros de
dois andares, estaleiros de obra, navios de cruzeiro, filas para
comprar bilhetes nas estações de metro e comboios. Tudo acompanhado
por música experimental e entrelaçado com gravuras e comentários
sobre o terramoto de 1755, excertos de filmes e depoimentos de
lisboetas.
“Lisboa hoje treme
novamente, abalada por um sismo turístico que transforma a cidade a
velocidade de cruzeiro. O seu impacto desloca o morador do centro da
cidade. Que novos absolutismos encontrarão aqui o seu álibi?”,
questionam os membros do coletivo Left Hand Rotation, autores do
documentário, que foi lançado na internet na semana passada.
“Gentrificação”
é uma das palavras-chave. Consiste na “valorização imobiliária
de uma zona urbana, geralmente acompanhada da deslocação dos
residentes com menor poder económico para outro local e da entrada
de residentes com maior poder económico”, segundo o dicionário
Priberam da Língua Portuguesa. “Em 2012 fizemos o nosso workshop
sobre gentrificação em Lisboa e muitas pessoas ainda diziam que
isso não podia acontecer cá”, explica um dos membros do Left Hand
Rotation em entrevista ao Observador. Os ativistas deste grupo,
criado em Espanha e com projetos em várias cidades europeias,
latino-americanas e africanas, optam por manter-se no anonimato —
alegam que querem dar destaque ao coletivo e não a uma pessoa
concreta.
Quando começaram a
filmar, em novembro de 2012, falava-se destes problemas?
Muito menos do que
agora. Agora todas as semanas há encontros, debates e palestras
sobre gentrificação e o que está a acontecer com o turismo. Este
não é um documentário contra os turistas, todos somos turistas. O
problema é a gestão da cidade pensada só para o visitante.
O documentário
assume um ponto de vista muito crítico. Quando começaram, já
sabiam o que iam filmar?
É crítico porque
há muitas situações críticas na cidade agora mesmo, neste
momento. Há muitas pessoas deslocadas do centro.
A realidade que
encontraram era ainda pior do que esperavam?
Sim, agora sim. Em
Lisboa aconteceu tudo muito rápido, nos últimos 5 anos. Sempre foi
uma cidade visitada, mas a crise está a legitimar que a cidade seja
vendida. Nas feiras imobiliárias europeias, também deram
facilidades a reformados franceses para comprar casa em Lisboa, etc.
O turismo é um motor económico muito importante, mas também é uma
faca de dois gumes, como está a acontecer em Lisboa.
Conhecemos outros
casos, como Barcelona. O modelo Barcelona é um fracasso. O segundo
problema que mais preocupa os barceloneses é justamente o turismo.
Em Barcelona há manifestações contra o turismo. Isto não é a
solução, porque o turista não é culpado, mas indica como estão
as coisas lá. Há pouco tempo apareceu nos jornais o presidente dos
hoteleiros de Lisboa a dizer que “Lisboa é a nova Barcelona”,
mas se conhecermos em profundidade o que acontece em Barcelona,
veremos que pode ser um problema.
O documentário foi
filmado entre 2012 e 2016. O que mudou nestes anos?
Como digo, Lisboa
sempre foi visitada. Mas agora há um excesso de hotéis na Baixa.
Sempre vimos o problema dos prédios abandonados (cerca de cinco
mil), mas agora são reabilitados para fazer mais e mais hotéis. A
Baixa está a ficar como uma decoração para o visitante que só vem
uns dias à cidade. E, ainda por cima, os comércios antigos estão a
fechar, Afama tem 56 % das casas convertidas em apartamentos
turísticos e houve uma subida muito grande nas rendas nos últimos
quatro anos.
Acham que a atitude
dos lisboetas mudou nestes anos? Estão mais agressivos, mais
deprimidos, mais atentos?
É muito complicado.
O turismo traz empregos, embora na maioria sejam precários. O
turismo e a gentrificação têm isto: primeiro podem ser percebidos
como algo bom, como uma renovação, mais segurança, tudo mais
limpo, mas no fim não é assim. No último debate sobre turismo em
Alfama, que se pode ver no documentário, a atitude dos vizinhos foi
muito agressiva. Alguns foram desalojados e no debate houve muitos
protestos, claro. As pessoas com quem falamos estão irritadas.
O que é que o
cidadão comum pode fazer?
O cidadão comum
pode fazer tudo, tudo depende dele. E a primeira coisa é decidir o
modelo de cidade em que quer viver: inclusivo ou exclusivo. Recuperar
a capacidade de intervenção sobre a sua própria cidade é um
processo lento.
Quais são os passos
desse processo? Debates, palestras,…?
Não há uma
fórmula, acho. Cada grupo e cada cidade vai ter de encontrar os seus
próprios mecanismos… O debate é um bem necessário, mas não pode
ficar só nessa fase.
Lisboa está a saber
responder?
É difícil avaliar
isso, porque estamos agora no olho do furacão. Mas uma coisa é
certa: Lisboa está a sofrer uma privatização alarmante do
património municipal e isso vai ser difícil de recuperar.
Obviamente que debates como o “Quem vai poder morar em Lisboa” ou
os debates no bairro de Alfama ajudam muito a levar informação
crítica às pessoas.
Qual é o próximo
passo? Estava a dizer há pouco que as manifestações não são
solução.
Dizia isso por que
há muita gente em Barcelona que está contra o turista e o turista
não é culpado. A questão é que o Governo não quer ver muitos
destes problemas, está a ver o turismo só como parte da solução à
crise. Em Barcelona estão a regularizar o Airbnb, mas é um
paradoxo, porque muita gente tem mais rendimentos quando aluga a sua
casa a estrangeiros. O problema é quando grandes compradores compram
prédios inteiros e ruas inteiras para especular.
Estão contentes com
o resultado final do documentário?
Estamos sobretudo
com vontade de escutar a opinião das pessoas, mas o documentário
cumpre com o que tínhamos pensado, sim. O mais importante é as
pessoas perceberem que não é um filme contra o turista. Gostamos do
debate que estamos a provocar nas redes sociais.
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