Degradação
da política e do Estado
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 05/11/2016 – 09:40
António
Domingues e a sua equipa podem ser os melhores gestores da banca do
mundo, mas a atitude arrogante que estão a tomar é inaceitável.
O conflito entre a
maioria dos partidos parlamentares e da opinião pública e António
Domingues e os novos administradores da Caixa Geral de Depósitos e
as demissões causadas nos governos (neste e no anterior) pelos
falsos títulos académicos são eventos com causas próximas. O seu
ponto em comum é a contínua degradação da política e do pessoal
político, em complemento e em simbiose com a degradação do Estado
nas suas componentes políticas, profissionais e técnicas. É o
resultado de processos de demagogia, alimentados por uma opinião
pública e uma comunicação social populistas, e por uma
deterioração acentuada dos grandes partidos, em particular do PSD e
PS, com mecanismos oligopólicos, e a crescente importância de
carreiras pseudoprofissionalizadas, que se fazem dentro dos partidos
por critérios que pouco têm que ver com a seriedade, o mérito, a
capacidade política, profissional e técnica, tendo mais que ver com
fidelidades e intrigas de grupo e com o acesso ao poder do Estado por
via do poder partidário.
Enquanto uns vão
com náusea, com uma mão no nariz mas aceitando ou pedindo
privilégios e salários elevados, servir relutantemente a sua
democracia e o seu país sempre enojados com essa coisa vil da
política, visto que eles são técnicos ou académicos ou seja lá o
que for, tudo menos ser o que são quando aceitam certos lugares;
outros sabem que, uma vez “entrados”, se forem obedientes e
prestarem os serviços requeridos sem pestanejarem e fizerem muitas
vezes o sale boulot, “nunca de lá saem”. Vão dos gabinetes
governamentais para as autarquias, para os lugares de nomeação
governamental, para deputados, e por aí adiante. Esta é uma
especialidade das “jotas” dos grandes partidos.
A isto se soma o
desinvestimento do Estado nas qualificações profissionais e
técnicas na alta função pública, com salários cada vez menos
competitivos, falsos outsourcings, o recurso sistemático a uma
espécie de segunda linha, que na verdade tem sido a primeira, de
serviços qualificados, seja de tecnocratas, de escritórios de
advogados ou de empresas de consultoria financeira. Os pareceres e os
estudos milionários tornaram-se norma no mesmo Estado, que não é
capaz de criar uma administração assente no mérito que permita ao
Estado ter recursos humanos para todos estes requisitos técnicos,
sendo o recurso a serviços externos a excepção.
O Estado deveria ter
na sua administração capacidade técnica e profissional de primeira
água, juristas, mecânicos, jardineiros, gestores, administradores
hospitalares, técnicos fiscais, polícias, carpinteiros,
especialistas em finanças e em mercados, deveria pagar salários
compatíveis e promover carreiras de mérito com critérios de
exigência. Esse é o ideal burocrático que substituiu na Europa as
hierarquias de nascimento ou o inventário das “almas mortas” do
livro de Gogol, mas que em Portugal ainda não arrancou de uma
cultura de cunhas e patrocinato. Daí, “em baixo”, os boys e, “em
cima”, os tecnocratas relutantes, muitas vezes desprovidos do
mínimo senso político e noção de serviço público, condição
para assumirem funções num Estado democrático.
O caso da nova
administração da CGD é exemplar de todos estes equívocos. Toda a
gente já percebeu que o acordo feito entre o ministro das Finanças
e os quadros bancários que entendeu recrutar para a Caixa passava
pela manutenção ou mesmo melhoria dos altos salários que já
recebiam, e pela isenção da categoria de gestores públicos, numa
lei feita à medida, incluindo a desobrigação de apresentação de
declarações de património. Foi tudo mal feito, porque o ministro
muito provavelmente prometeu isenções que não são legais e os
candidatos a administradores pediram um estatuto de privilégio
inaceitável em quem vai trabalhar para o Estado e, por muito que não
queiram sujar as suas impolutas mãos com essa coisa menor da
política, em cargos que têm uma forte componente política.
O seu objectivo não
pode ser apenas tornar a CGD “competitiva” com a banca privada,
como hoje se repete por todo o lado para justificar os seus salários.
Não. É suposto que a CGD tenha também funções em relação à
economia portuguesa que não se esgotam nessa “competitividade” e
podem até prejudicá-la de algum modo. A CGD é pública por uma
decisão política, como política era a intenção do PSD de a
privatizar, e só tem sentido como banco do Estado se tiver funções
distintas da banca em geral, incluindo alguma regulação indirecta
do sector. Isso não significa, como é óbvio, que seja mal gerida
ou que se continuem os desmandos cometidos por comissários
políticos, cujo papel no agravamento dos problemas da Caixa não
pode ser esquecido. Que esta administração rompa com essa época só
pode ser saudado, mas isso não lhe dá carta-branca para se
comportar como está a comportar-se.
Todas as razões
para este acordo são más. António Domingues e a sua equipa podem
ser os melhores gestores da banca do mundo, mas a atitude arrogante
que estão a tomar é inaceitável. Eles vão trabalhar para um banco
público, recapitalizado com dinheiros públicos, receber salários
pagos pelos contribuintes, respondem perante uma tutela que é a do
Estado. Caem-lhes os parentes na lama se neste contexto tiverem
obrigações de transparência e tiverem de ver os seus barcos e
casas numa declaração? É incómodo ter estes dados atirados à rua
e às “redes sociais” para gáudio de um público sedento de
“espiolhar” os ricos e que só acha bem que os jogadores de
futebol ganhem fortunas?
Tudo isso é
verdade. Pode inclusive colocar em relação a alguns dos novos
membros estrangeiros da administração questões de segurança? É
verdade, e devem ser acautelados por um formulário que contém dados
que devem ser conhecidos da entidade fiscalizadora — o Tribunal
Constitucional —, mas que não deviam ser, nem é necessário que o
sejam, públicos, porque claramente se violam regras de privacidade
que o Estado deveria acautelar. Se o tribunal deve conhecer endereços
de casas e matrículas dos carros, não há nenhuma necessidade de
isso ser público. Este é um problema que já se colocava para todas
as outras declarações, mas com o medo da demagogia ninguém o
levantou antes.
É verdade que todo
este processo de controlo dos rendimentos e património dos cargos
políticos e públicos está inquinado pela demagogia. É
voyeurístico onde não deve, violador da privacidade
desnecessariamente, desigual, deixa de fora muita gente que não
deveria deixar, e é ineficaz onde o deveria ser, mas a obrigação
de controlo patrimonial tem sentido para cargos em que o exercício
de um poder qualquer envolve dinheiros e bens públicos. O problema é
que esta administração, que certamente está de acordo com
legislação punitiva para esses inferiores dos “políticos”,
acha que os meios em que se move não devem ter escrutínio público.
Ora, eles devem
saber melhor do que ninguém, porque estão lá no meio, que os
abusos, e mesmo os crimes feitos no âmbito da elite de confiança
que manda neste país, não são muito distintos dos “negócios”
feitos em baixo nas campanhas eleitorais e nos esquemas dos boys. São
é mais caros. Passam-se por detrás das paredes sumptuosas dos
grandes escritórios de advogados, em almoços recatados nos
restaurantes discretos usados pela elite económica e financeira, nos
hotéis de luxo do Algarve e nas residências da Quinta da Marinha ou
na Comporta, entre gente que sabe escolher os vinhos e a ordem dos
talheres, que convive com outros poderosos de todas as listas dos que
“mandam” em Portugal, mas tudo o que se passa “em baixo”
passa-se em cima: manipulação da informação feita pelas grandes
empresas nacionalizadas para receberem rendas indevidas, violações
das regras da concorrência, fugas à regulação, “criatividade
fiscal” nos offshores, fraude fiscal, corrupção, tráfico de
influências, amiguismo, e desprezo pelo bem público e muito amor
aos bens privados.
Por tudo isto,
coloquem na rua os boys que falsificam as declarações e não os
mudem apenas de emprego para outro lugar de confiança política, e
peçam aos senhores administradores da CGD que cumpram a lei. Se há
mudanças a fazer de modo a que certos dados das declarações possam
ser confidenciais, embora conhecidos do tribunal, procedam em
consequência na Assembleia da República, não para estes homens em
particular mas para todos. Se isto acontecesse, poderia sair-se desta
confusão ainda com vantagem e melhoria para o país, mas a continuar
assim, vai acabar tudo mal.
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