Oposição acusa ex-secretário de Estado da Cultura de um "acto à margem da
lei" na autorização de saída de Portugal e venda no estrangeiro da importante
pintura renascentista
Virgem com o Menino e Santos
Argumentos legais num corpo-a-corpo contra argumentos
políticos: durante a batalha em que ontem se transformou a Comissão Parlamentar
de Educação, Ciência e Cultura, o ex-secretário de Estado da Cultura (SEC)
Francisco José Viegas reconheceu a existência de fundamentos ideológicos na
autorização que em 2012 deu ao conhecido empresário Miguel Pais do Amaral para
vender no estrangeiro a pintura protegida Virgem com o Menino e Santos,
acabando por ter sido acusado pela oposição de um "acto à margem da lei".
"Há aqui também uma questão ideológica óbvia e que eu não escondo", disse
Viegas. Referia-se à posição defendida por muitos membros
tanto do PSD
como do CDS que consideram que as leis e políticas de protecção do património
não podem sobrepor-se ao direito à propriedade privada previsto na Constituição
da República Portuguesa (CRP).
Juridicamente, segundo a procuradora-geral adjunta do Tribunal Central
Administrativo Raquel Vicente da Rosa, essa posição não tem enquadramento.
"Resulta do art. 62.º da CRP não ser o direito de propriedade um direito
absoluto [...], pelo que a possibilidade legal de o Estado se opor à exportação
de uma obra [...] constitui, não uma arbitrariedade, mas um simples
condicionamento", escreveu a jurista num parecer ligado ao caso e datado de 6 de
Setembro de 2011, dia em que terá chegado ao gabinete de Viegas, onde acabou por
ser ignorado (ver PÚBLICO de 22/7/2013). Deste facto, ontem, a oposição fez a
leitura política: "A lei diz que podia ter impedido a saída [da pintura do
país]. Governar contra o que a lei estabelece é abusivo", disse o deputado do PC
Miguel Tiago, acrescentando que o "acto à margem da lei" de Viegas "só não é
crime porque não foi o ex-secretário de Estado que levou a peça para fora do
país". Inês de Medeiros, do PS, pôs, mesmo assim, na mesa a punição prevista
para a exportação ilícita de uma obra de arte: "Cinco anos de cadeia ou 600 dias
de multa", esclareceu a deputada, que viu ficar sem resposta várias das suas
perguntas, entre elas aquela em que tentou saber por que não foi a decisão de
Viegas publicada em
Diário da República, como o previsto por lei.
Paradeiro desconhecido
Também sem várias resposta ficou a coordenadora do BE Catarina Martins, que
menorizou a importância da presença de Viegas na Assembleia quando o que
importa, na sua opinião, é ver esclarecidas questões como o paradeiro da "Virgem
portuguesa" de Crivelli, publicamente desconhecido depois de uma passagem por
Paris, onde o antiquário Jean-François Heim chegou a tê-la na montra da sua
galeria. Foi antes de o sucessor de Viegas no Governo ter anunciado, no dia 2
deste mês, a revogação da autorização de venda da peça. Depois disso, o
antiquário disse ao PÚBLICO que a peça já esteve com ele, "mas já não está".
Sobre isso, à Lusa, Pais do Amaral não prestou esclarecimentos e a SEC não tem
avançado também detalhes sobre as diligências em curso para resolver a questão.
"O que está a ser feito pela restituição do quadro e onde é que ele está? A
polícia já foi buscar a obra?", questionou Catarina Martins. Já fora do Governo,
Viegas não poderia responder. Mas a deputada quis informações também sobre os
fundamentos legais da sua decisão.
"Tomei a minha decisão dentro da legalidade", disse Viegas, citando uma
sequência de artigos da Lei 107/2001, conhecida como Lei de Bases do Património.
Entre outros, citou o ponto 1 do artigo 55.º, que diz que só são considerados
bens móveis integrantes do património cultural português aqueles que "constituam
obra de autor português ou sejam atribuídos a autor português, hajam sido
criados ou produzidos em território nacional, provenham do desmembramento de
bens imóveis aí situados, tenham sido encomendados ou distribuídos por entidades
nacionais ou hajam sido propriedade sua, representem ou testemunhem vivências ou
factos nacionais relevantes a que tenham sido agregados elementos naturais da
realidade cultural portuguesa, se encontrem em território português há mais de
50 anos ou que, por motivo diferente dos referidos, apresentem especial
interesse para o estudo e compreensão da civilização e cultura portuguesas".
Tal como foi pouco depois apontado por Inês de Medeiros, Viegas omitiu da sua
exposição o ponto 2 do mesmo artigo, onde se esclarece que se consideram ainda
bens do património nacional "aqueles que, não sendo de origem ou de autoria
portuguesa, se encontrem em território nacional e se conformem com o disposto no
n.º 1 do artigo 14.º" - ou seja, todos aqueles "que representem testemunho
material com valor de civilização ou de cultura".
É este o caso do Crivelli de Pais do Amaral, segundo o parecer consensual de
especialistas em pintura e património que em 2011 pediram a Viegas que
mantivesse a obra em Portugal.
Desde a revelação do caso pelo PÚBLICO (ver edição de 4/6/2013), vários
outros especialistas têm defendido publicamente a mesma opinião, incluindo a
historiadora e ex-directora do Instituto Português de Museus Raquel Henriques da
Silva, que fez saber que várias vezes, ao longo dos anos, o Estado tentou, sem
sucesso, comprar esta obra, precisamente devido ao facto de se tratar de uma
peça "única".
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