domingo, 28 de julho de 2013

Quem deixou morrer a Livraria Sá da Costa?

( ...) "terão a Secretaria de Estado da Cultura e a Câmara de Lisboa analisado devidamente as formas de se evitar este amargo desfecho? Apesar dos severos constrangimentos orçamentais, há sempre formas de mobilizar vontades e encontrar saídas que a lei não reprove, desde que esteja em causa o interesse colectivo, a memória patrimonial e a salvaguarda de um inequívoco bem cultural, que ultrapassa largamente uma abordagem que seja meramente comercial e judicial do assunto. Terão, porventura, essas duas instituições públicas conversado sobre o assunto, na perspectiva de poderem encontrar uma solução? Fica a pergunta."
“O Chiado está em transformação determinada por ciclos económicos e sociológicos …Outrora Zona Chic de Comércio de Alta Qualidade e de Identidade Local em dialéctica permanente com sinergias Literárias e Culturais … Zona de Cafés e Clubes … de Tertúlias e compras Bon Chic Bon Genre … está agora a substituir esta Identidade Centenária por um novo ciclo comercial conduzido por cadeias internacionais dispostas a pagar quantias altíssimas por alugueres.
São as “leis do mercado”dirão muitos … e é verdade que a dinâmica financeira da Oferta-Procura-Oferta determina as transformações …
No entanto, em todas as Cidades Europeias existem Zonas onde estão situados estabelecimentos de valor Patrimonial-Arquitectónico insubstituível, e que precisamente, no seu conjunto, garantem e contribuem para o Carácter e Identidade - Prestigio que definem a Zona e o seu Valor Comercial.
Ora … é aqui que entra como factor determinante o conceito de uma Visão Estratégica, aquilo que se chama Internacionalmente , Urbanismo Comercial.
Não se trata de substituir ou apropriar-se das sinergias comerciais … mas, de estratégicamente aconselhar, estimular pedagógicamente, acompanhar com verdadeiro interesse , ao mesmo tempo que se garante e salvaguarda o Património de interiores e exteriores de importantes e insubstituíveis estabelecimentos Históricos."
António Sérgio Rosa de Carvalho 


Quem deixou morrer a Livraria Sá da Costa?
Uma livraria, queira-se ou não, é sempre mais do que um mero espaço comercial, pois a mercadoria com a qual opera tem a ver com o espírito de quem lê, com a sua visão do mundo, com a sua capacidade de compreender e comunicar com o outro. Ainda mais assim é quando as livrarias têm história e memória e contribuem para singularizar a geografia e a identidade das cidades.
Uma cidade sem livrarias é, em certa e dramática medida, uma cidade morta. Lisboa começou, há muito, por perder os seus cafés de referência, aqueles que foram a "casa" dos modernistas, dos surrealistas, dos neo-realistas e dos outros. Quando esses espaços se transformaram em dependências bancárias, as cidades, com Lisboa à cabeça, puseram os olhos na calçada e entristeceram em silêncio. Depois começaram a fechar as livrarias, designadamente as de bairro, engolidas pela voragem triunfal das grandes superfícies comerciais.
Ainda assim, foram resistindo algumas livrarias de referência, não obstante as grandes dificuldades que as fustigavam. Uma delas era a Livraria Sá da Costa, indissociável de uma longa e brilhante história editorial. Deveria estar a comemorar este ano, com orgulho e alguma solenidade, o seu centenário, recordando o verdadeiro panteão de grandes figuras da nossa vida intelectual que nela faziam tertúlia, alternando com a Bertrand, no outro lado da rua, ali mesmo no coração do Chiado.
Declarada insolvente pelo Tribunal de Comércio de Lisboa, apesar do estoicismo de um punhado de funcionários que, com abnegação e criatividade, a tentaram manter a respirar, promovendo iniciativas que mantivessem vivo o espaço, fecha agora as suas portas, deixando Lisboa e todos quantos amam os livros mais tristes e mais pobres.
Uma assembleia de credores, não tendo aprovado o plano de viabilização apresentado em 2 de Julho passado, lavrou-lhe a sentença de morte.
Foi conturbado o caminho percorrido até se tornar inevitável a execução desta sentença, passando por leilões do fisco e por uma venda judicial. As tentativas efectuadas no sentido de evitar este epílogo dramático revelaram-se infrutíferas. E a dinâmica da cidadania funcionou, tendo sido lançado, com quase mil assinaturas, um manifesto contra o encerramento da Livraria Sá da Costa.
Tendo presente o que aconteceu ainda recentemente em França com o programa de apoio à rede de livrarias de proximidade e às pequenas estruturas do movimento editorial lançado pela ministra da Cultura daquele país, empenhada em preservar uma extensa e bem implantada rede de cerca de 2500 livrarias em todo o território nacional, impõe-se a pergunta: terão a Secretaria de Estado da Cultura e a Câmara de Lisboa analisado devidamente as formas de se evitar este amargo desfecho? Apesar dos severos constrangimentos orçamentais, há sempre formas de mobilizar vontades e encontrar saídas que a lei não reprove, desde que esteja em causa o interesse colectivo, a memória patrimonial e a salvaguarda de um inequívoco bem cultural, que ultrapassa largamente uma abordagem que seja meramente comercial e judicial do assunto. Terão, porventura, essas duas instituições públicas conversado sobre o assunto, na perspectiva de poderem encontrar uma solução? Fica a pergunta.
Se, como escreveu George Steiner, há cafés que definem e fortalecem a identidade das cidades europeias, essa visão não será por certo menos válida para as livrarias históricas, de que Portugal tem ainda alguns magníficos exemplos, com antiguidade, representatividade e visibilidade, inclusive como suportes da promoção turística das cidades.
Se isso estivesse ao seu alcance, não tenho dúvidas de que Fernando Pessoa se levantaria da mesa escultórica concebida por Lagoa Henriques e desceria uns metros para impedir que a Livraria Sá da Costa fechasse, e talvez se lhe juntassem alguns dos seus heterónimos mais conhecidos. Já seria uma pequena multidão.
Ao fechar de vez as portas, a Livraria Sá da Costa entristece e envergonha Lisboa, tornando ainda mais notórios e preocupantes os efeitos desta crise na nossa malha urbana e em particular numa zona de excelência para o turismo. E será conveniente que Pessoa fique firme no bronze da obra que o eterniza, pois ninguém pode prever o que ainda está para vir. E só resta saber se este fechar de portas é mesmo "irrevogável" ou se ainda fica alguma janela entreaberta como acontece mesmo com governos agonizantes.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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