Os partidos responderam com cautela ao desafio de Cavaco. Mas o intervalo promete ser breve
A crise vai para intervalo
Editorial/Público
A contagem decrescente está em marcha. Um dia depois de ter lançado a bomba, o Presidente da República ouviu as primeiras respostas dos três partidos que quer ver a assinarem um pacto de regime que definiu. Cavaco não perdeu tempo e ontem mesmo ouviu os líderes do PSD, CDS e PS. Mostrando que estava a falar a sério quando disse que as decisões essenciais serão tomadas nos próximos dias. Num primeiro momento, conseguiu que sociais-democratas e centristas não lhe devolvessem a estalada de terem visto encurtado o prazo de validade da coligação que apoiam. E obteve sinais de boa vontade do PS, dentro das balizas expectáveis do lado socialista: sim ao diálogo, não ao apoio a um governo que não saia de eleições.
Por outras palavras a crise foi para intervalo, logo após os primeiros minutos de jogo. Mas será um intervalo efémero. A disponibilidade para o diálogo dos três partidos significa apenas que PSD e CDS decidiram não hostilizar o Presidente que os deslegitimou - o PS não tem razões para atacar a iniciativa de Cavaco Silva. Isto significa que, à partida, será difícil resistir à pressão do Presidente, que espera contar com o apoio dos eleitores ao seu apelo à unidade. E qualquer um dos partidos pode dizer, sem qualquer problema, que sempre defendeu o diálogo e os acordos abrangentes. O problema é que nunca conseguiram chegar a acordo. E não é garantido que estejam perto de o conseguir agora. PSD e CDS já disseram, aliás, que não querem eleições antecipadas e querem ver legitimado o Governo que Cavaco Silva rejeitou, recusando-se sequer a mencioná-lo na sua declaração ao país. Agora, é preciso saber se estão todos de acordo sobre o mesmo acordo... Nas entrelinhas é possível ler cautelas e posições defensivas. E pouco entusiasmo. O compromisso vem longe. A crise política segue dentro de momentos.
Dez enunciados para um ensaio de cavacologia
Por José Manuel Fernandes
12/07/2013 in Público
O Presidente fez bem ao exigir um entendimento entre os três partidos do memorando. Mas é porventura demasiado tarde
Raras vezes uma intervenção política me deixou tão desconcertado como a que Cavaco Silva fez na quarta-feira à noite. Porque não percebi logo qual o plano do Presidente. Se é que ele tinha, ou tem, um plano. Por etapas, dediquei-me então a um ensaio de cavacologia. E de cavacologia aplicada ao que entendo ser, neste momento, o melhor para o país.
1. Cavaco Silva começou por explicar por que é que não convocava já eleições e expôs todos os inconvenientes de o fazer. Compreendo a decisão e concordo com cada um dos argumentos que apresentou - não sei é se o caminho que ontem se iniciou evita os males que ele enunciou, mas dou o benefício da dúvida. A minha maior dúvida é a de saber como se evita a instabilidade de se ter anunciado que, na prática, podemos estar já a entrar numa longa campanha pré-eleitoral que durará até Junho de 2014.
2. Sempre defendi que era importante manter um acordo alargado aos "três partidos do memorando" durante a fase do resgate, e até cheguei a defender que talvez tivesse sido bom ter o PS no Governo desde o início. Quem sempre assim pensou só pode aplaudir o apelo a um "compromisso de salvação nacional". Mais: só pode lamentar que ele não tivesse chegado mais cedo. A minha dúvida é outra: não sei o que se ganha ao deixar o actual Governo num limbo, pois se é verdade que ele "se encontra na plenitude das suas funções", também não deixa de ser verdade que a crise o deixou paralisado.
3. Para compreender a bizarra situação de o Presidente não ter feito sequer qualquer referência à renovação do acordo PSD-CDS ocorrida no final da semana passada só podia ter dois tipos de explicação: ou se tratava de um "castigo", de um "puxão de orelhas" ou de um "par de estalos", para citar algumas das interpretações que ouvi por estes dias, todas elas mais ou menos psicológicas, ou existiam motivações políticas mais precisas. Ora essas motivações existiam e existem. Cavaco Silva terá sentido o que sentiram milhões de portugueses ao assistir ao espectáculo da crise política: que se tratava de um crime de irresponsabilidade política que não devia ficar sem castigo. Mais: percebeu que, se aceitasse sem pestanejar o que lhe era proposto pela coligação, faria mais do que simplesmente carimbar uma solução a que era alheio, pois comprometer-se-ia com essa solução e ficaria sem qualquer margem de manobra no dia em que alguma coisa corresse mal. A sua convicção parece ter sido a de que alguma coisa acabaria mesmo por correr mal.
4. Escrevi na semana passada que me parecia difícil consertar todo o mal provocado pela demissão de Paulo Portas e esquecer todas as feridas que ela abrira nas relações de confiança no seio do Governo. O acordo entretanto conseguido deveu-se, antes do mais, à capacidade de Passos Coelho para fazer das tripas coração, mas era visível a sua fragilidade. Visível todos os dias. O Presidente não podia fingir que não via as brechas que se abriam por todo o lado, pelo que procurou distanciar-se afirmando que preferia uma solução diferente, se bem que não uma solução alternativa. Já agora, uma solução melhor que até poderá servir de respaldo a uma segunda fase deste executivo.
5. A política é a arte do compromisso e a ciência do timing correcto. Não sei se, apesar das boas intenções, o Presidente não está a falhar em ambas. A falhar no timing, pois suspeito que é demasiado tarde para colar os cacos que meses e meses de acrimónia entre os "partidos do memorando" deixaram no campo de ruínas que é a política portuguesa. E a ter dificuldades no esforço de compromisso, pois, para já e para além das frases formais dos dirigentes partidários, a intervenção de Belém criou sobretudo desconforto e irritação. É isso mau? Conhecendo os partidos portugueses, talvez não.
6. Defender, como defendo, que deve haver um acordo alargado entre o PSD, o CDS e o PS não tem como corolário achar que "não será difícil definir o conteúdo em concreto desse entendimento". Não será difícil? Sobretudo "em concreto"? Com os cortes necessários para o próximo Orçamento? Com as mudanças obrigatórias na administração pública? Com as escolhas dificílimas que há que fazer na política de pensões? O consenso necessário não é apenas em torno da necessidade de colocar em ordem as contas públicas - para isso até já houve consenso quando os três partidos aprovaram o pacto orçamental. O consenso pedido terá de ser muito mais operativo, logo muito mais difícil. É por isso que não alimento grandes esperanças, mas não posso deixar de considerar que o Presidente faz bem em tentar o que parece impossível.
7. Do Presidente esperava-se que clarificasse a situação e balizasse, com precisão, o caminho a seguir. Não sinto que o tivesse conseguido fazer, se bem que não subscreva o histerismo que tenta transformá-lo no novo epicentro da instabilidade. Gostava que tivesse sido mais claro sobre o que pretende com o "compromisso de salvação nacional". Quer um governo em que também entre o PS? Ou apenas que o governo do PSD e do CDS aceite algumas das ideias do PS? Quer um apoio claro ao próximo Orçamento do Estado? Deseja também uma renegociação do memorando? Compreendo que o Presidente queira deixar todas as opções em aberto, mas devia ficar preocupado com as interpretações contraditórias que a sua mensagem teve em Portugal e na imprensa estrangeira. Foi um mau sinal.
8. Não me incomoda que os partidos do arco do poder tenham sido postos entre a espada e a parede. E até aprecio a ideia de que, amarrando-os a um acordo obrigatoriamente impopular, eles sejam confrontados - todos eles - com a necessidade de falaram verdade e de sujarem as mãos na limpeza dos erros que colocaram o país à beira da bancarrota. Tudo o que o Presidente fizer para levar responsáveis políticos que se têm comportado de forma leviana, irresponsável e populista a perceber que o tempo é mesmo de emergência nacional e não de politiquices e cálculos mesquinhos tem o meu aplauso. A minha única reserva é sobre a tentação, que pode existir, de tentar forçar a substituição de direcções partidárias menos do agrado da Presidência.
9. Portugal não tem tempo. Na sua intervenção o Presidente falou de decisões dos "próximos dias", mas não me pareceu que do que disse tenha transparecido um verdadeiro sentido de urgência. O Governo, tal como está, não pode ficar indefinidamente em funções. A troika não espera indefinidamente pela próxima avaliação. O Orçamento do Estado já devia estar a ser elaborado. Tudo pelos motivos que Cavaco apresentou para justificar a não convocação de eleições. Talvez seja neste ponto que resida um dos maiores desafios ao processo desencadeado pelo chefe de Estado. Os mercados não castigaram ontem muito o prolongamento de alguma indefinição, mas essa trégua pode ser sol de pouca dura.
10. Uns pediram a Cavaco que convocasse eleições, mesmo sabendo que isso podia implicar um segundo resgate. Outros pediram-lhe que viabilizasse um novo arranjo ministerial e esquecesse as tropelias de uma semana louca. O Presidente surpreendeu e procurou forçar um acordo mais vasto que se deslassou ao longo dos últimos dois anos. Dentro de alguns dias perceberemos melhor se jogou póquer ou xadrez.
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