Cavaco Silva inventou a bomba atómica em diferido. Devia ter usado a bomba atómica normal
Uma mudança de regime?
Editorial/ Público
O Presidente da República decidiu tentar ultrapassar o impasse político aberto pelos desentendimentos entre os partidos da maioria acrescentando um problema novo ao problema que já existia. Decidiu tomar o poder. E impôs uma agenda aos três partidos do arco da governação, como se estes não tivessem a legitimidade do voto. As consequências desse gesto são imprevisíveis. Em vez de agir dentro do quadro existente, marcando eleições - como este jornal defende -, ou aceitando a remodelação proposta pelo Governo -, procurou uma solução aparentemente salomónica. Justificou a não marcação de eleições para Setembro com o Orçamento do Estado, os problemas que surgiram com a aplicação do memorando e as dúvidas em que do escrutínio popular resultasse uma solução clara. Mas defendeu que as eleições devem ser o resultado de um acordo que deve compreender um calendário eleitoral. Por outras palavras, o Governo de Passos Coelho, cuja remodelação ele não aceitou, deixou de existir hoje. Passou a ser um governo de gestão, com um horizonte de quase um ano pela frente. O Presidente foi mais longe. Ao exigir um compromisso de salvação nacional aos três partidos do arco da governação, Cavaco Silva disse que estes devem entender-se e subscrever um programa de governo para entrar em vigor antes das eleições e para continuar a ser aplicado depois das eleições. Por outras palavras, os portugueses que votarem no PSD, no CDS ou no PS estarão a votar no mesmo programa de governo.
Os acordos de regime são saudáveis e necessários, mas não podem ser impostos com base num desacordo de regime, em que o Presidente ultrapassa os limites do seu poder e anula o poder dos partidos, aproveitando-se da extrema fragilidade em que os partidos da coligação se encontram.
Escreveu-se aqui, há dias, que para subscrever o acordo entre PSD e CDS, Cavaco Silva, um político que um dia disse raramente ter dúvidas, tinha de estar absolutamente certo quanto à viabilidade desse entendimento. Não estava. Mais uma vez, desautorizou por completo o primeiro-ministro, que passou a dirigir um governo com contrato a termo certo. Cavaco disse, em contrapartida, não ter dúvidas de que a solução que defende é a melhor para o país. Mas acordos de regime são negociados com os partidos e não impostos de cima, para mais tutelados por uma figura de prestígio, como Cavaco sugeriu. Se os partidos aceitarem o acordo nestes termos (já disseram que estão disponíveis para falar com o Presidente) abdicam do seu poder. Se não aceitarem, Belém fica sem instrumentos para gerir a crise que criou. Cavaco Silva quis chamar a si o poder, em vez de convocar novas eleições. Os riscos que decidiu correr para evitar os riscos que julga existirem num acto eleitoral são excessivos e inúteis. E consubstanciam uma tentativa de mudança da natureza do regime. Cavaco Silva inventou a bomba atómica ao retardador. Teria sido preferível usar a bomba atómica normal. É bem menos destrutiva.
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